Á época do lançamento de Um
Convidado Bem Trapalhão, Pascal Bonitzer,
obcecado com as questões políticas que
se incrustavam ao universo artístico (crítica
inclusa) naquele momento, escreveu nos Cahiers du Cinéma:
"Um ator que simboliza o terceiro-mundo destrói
uma mansão que simboliza Hollywood – uma alegoria
da revolução que vai revolucionar o cinema".
1968, portanto, não rendeu apenas a precipitação
de uma série de propostas vanguardistas e militantes
no cinema: o sentimento de que muita coisa acontecia
simultaneamente – e de que a única forma de captar
essa ebulição era através de uma
representação da desordem – pode ter inspirado
também uma brilhante comédia de Blake
Edwards. Embora o diretor diga que estava apenas querendo
encenar algumas gags ao lado de Peter Sellers – e que
no máximo queria mostrar uma outra forma de fazer
cinema, um novo alicerce de comédia (e essa sacudida
na estrutura já não seria uma sugestão
de revolução estética?) –, a análise
de Bonitzer é no mínimo uma maneira muito
interessante de dizer que o cinema, no final dos anos
60, se achava já embrenhado pelas vias mais inusitadas.
Um Convidado Bem Trapalhão foi o filme
em que Edwards experimentou uma incrível liberdade
de criação, falando de dentro de Hollywood
– ou seja, um filme implosivo – como se estivesse ao
mesmo tempo satisfeito e profundamente desdenhoso em
relação a tudo que aquele universo representava.
Não havia roteiro para o filme, apenas linhas
gerais de ação e de descrição
dos personagens, anotações a partir das
quais tudo era improvisado. A clássica cena da
festa em Bonequinha de Luxo, em 1961, já
tinha sido em grande parte improvisada, como um momento
encantado em que se pressagiava o prazer indescritível
que seria acompanhar passo a passo – quase em "tempo
real" – a festa de Um Convidado Bem Trapalhão.
No prólogo deste filme, Hrundi Bakshi (Peter
Sellers), o ator indiano (o tal símbolo do terceiro-mundo)
que compõe o elenco de uma superprodução
hollywoodiana como extra, descansa o pé sobre
um detonador e dinamita o set de filmagem antes mesmo
da câmera estar ligada (uma revolução
distraída?), o que leva o diretor do filme dentro
do filme ao desespero. Na cena seguinte, uma falha na
telecomunicação faz com que Hrundi, ao
invés de ser despedido e denunciado para a comunidade
cinematográfica como um desastre ambulante, seja
convidado para um evento da alta roda de Hollywood.
Após se transportar para a festa, a narrativa
se desenvolve e se conclui praticamente sem fazer elipses
temporais. As únicas elipses são de espaço
– pois Edwards certamente escolhe aquilo que deve e
que não deve mostrar com fins cômicos milimetricamente
programados. É explorando essa duração
total dos eventos que Edwards levará até
o limite, por exemplo, o efeito cômico da agonia
de Hrundi ao encontrar o banheiro ocupado e ficar rodando
a casa toda procurando algum lugar para aliviar a bexiga.
Essa seqüência dá uma amostra quase
completa do que o filme tem de especial: a mestria da
duração, o trabalho precioso com o espaço
(uma casa modernosa que remete à sátira
arquitetônica de Meu Tio – e Jacques Tati
é uma influência confessa), a lógica
de acúmulo (gags se somando até não
caberem mais nos limites do filme e este transbordar
de vez), a função dramática que
os objetos adquirem (a estátua de um anjo urinando
e o sistema de irrigação do jardim intensificando
o desconforto de Hrundi). No meio dessa angustiante
e fantástica excursão, quase uma encenação
daquele pesadelo em que queremos ir ao banheiro e ocorre
sempre algo que impede, a linda Michele Monet (Claudine
Longet), a atriz francesa que se interessa por Hrundi
assim que o conhece, canta uma música ao violão
enquanto o personagem de Sellers se contorce junto a
uma pilastra, tentando mostrar que está apreciando
a canção, mas no fundo apertadíssimo
para fazer xixi. Para fechar a seqüência,
Sellers acha finalmente um banheiro desocupado no segundo
andar da casa e passa maus momentos ao se desentender
com a descarga.
Não importa o quão simples ou – melhor
ainda – desinteressante seja a situação,
Blake Edwards sempre acha um jeito especial de compor
as gags. Apesar de ser um cineasta surgido já
numa etapa avançada do pós-guerra, ele
não fez parte da Nova Hollywood (aquela de Scorsese,
Coppola, De Palma, Spielberg). Em texto publicado na
Senses of Cinema, June Werrett explica bem essa posição
de Edwards ao mesmo tempo prolongando o classicismo
e incorporando formas modernas de explorar a cor, a
iluminação e a concepção
de atmosfera. Ele chega a ser visto por alguns como
uma extensão moderna de Ernst Lubitsch (e de
fato desde filmes como Ninotchka e A Viúva
Alegre não se viam tantas portas abrindo
e fechando repetidamente, num verdadeiro balé
de comédia física). Um Convidado Bem
Trapalhão é um excelente exemplo desse
prolongamento do clássico através de um
instrumental estético moderno. Trata-se, também,
de uma das mais elegantes comédias vulgares de
todos os tempos: o slapstick mais autêntico
divide o quadro com uma sofisticação inabalável.
A trilha de Henri Mancini, que uma bandinha de jazz
toca na festa, traduz com precisão o clima agradável
do filme, contribuindo para uma estética lounge.
Mas essa ambiência em que tudo a princípio
parece equilibrado, relaxante, começa a ceder
espaço ao caos. No final, quando chegam os amigos
da filha da dona da casa (acompanhados de um elefante
pintado com mensagens de protesto pacífico),
a mansão já se tornou um parque de diversões
cujos brinquedos fugiram ao controle e ficam dando voltas
e voltas com seus passageiros. Figuras doces em meio
aos tubarões da indústria cinematográfica,
Hrundi e Michele escapam pela manhã e saem no
carrinho engraçado do indiano. Para fazer jus
à ambigüidade da aproximação
entre homens e mulheres na obra de Edwards, eles não
trocam um beijo, apenas se despedem parecendo tanto
dois bons amigos quanto amantes em potencial. Naquela
magnífica cena da confusão no final da
festa, mesmo que a despeito das intenções
de Edwards, a revolução já estava
feita – para o bem do cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD: Warner)
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