No que consiste a elegância, cinematograficamente
falando? Que tipo de atitudes deverão ser tomadas
para alcançá-la? Que ângulos devem
ser utilizados e quais devem ser evitados? Que ritmo
melhor condiz com essa qualidade? Difícil encontrar
respostas para tais perguntas, mas se há um filme
que auxilia consideravelmente nesta tarefa é
exatamente Bonequinha de Luxo. Há, durante
todo o decorrer do filme, uma graça no fluir
das coisas que não poderia encontrar melhor expressão
que em sua protagonista, Audrey Hepburn. Logo na primeira
cena ela toma seu café da manhã em frente
à vitrine da Tiffany’s e cada um de seus gestos
parece constituir novas cenas por si só; fragmentos
de beleza que nunca se afrouxam demais prejudicando
a atenção do quadro. Encontra-se um tipo
de equilíbrio quase impossível, só
obtido graças à maneira como o diretor
articula suas imagens. Esta necessidade de coesão,
mesmo sendo obtida de maneira leve e desembaraçada,
parece ser extremamente cara desde o início.
Esta unidade buscada em cada uma de suas cenas passa
prioritariamente pelo esforço em se manter um
fluxo de imagens em movimento, buscando não interrompê-lo
de forma alguma. Uma tarefa impossível, tendo
em vista que o próprio corte é, antes
de mais nada, uma ferramenta de interrupção,
além de que a mera disposição das
coisas dentro do quadro traz uma infinidade de dados
estáticos que não podem ser ignorados
mesmo com tantos elementos dinâmicos passando
de um lado para o outro. Portanto, se há uma
vontade em manter um movimento, ela passa necessariamente
pelo interesse de construir a ilusão do
mesmo. O trabalho com a profundidade de campo passa
a ser essencial dentro deste cenário, buscando
minimizar tanto quanto conveniente os cortes que travassem
este processo. Insistindo em sua utilização
em momentos e formas das mais diversas, Edwards acaba
conseguindo algo mais profundo que a simples supressão
dos cortes; provoca um verdadeiro balé de corpos
que mesmo em situações ou espaços
distintos, ao dividirem o mesmo quadro, parecem responder
aos movimentos uns dos outros. Há uma sincronia
que não passa despercebida, mas ao mesmo tempo
não chama atenção demais para si
própria já que isto frustraria, por si
só todo o efeito desejado. Bonequinha de Luxo
é um filme marcado pelo equilibro e proporcionalidade
de formas, e da sobriedade com a qual se alcança
isso se desprende grande parte de sua elegância.
Mesmo nos inevitáveis momentos em que o corte
se faz necessário, ele parece nunca surgir repentinamente,
incorporando-se ao projeto formal do filme de forma
que aperfeiçoa ou possibilita a continuidade
desta movimentação de corpos que se pretende
alcançar. O corte subverte o estado de concessão
técnica que normalmente esse tipo de projeto
dá (Festim Diabólico) e passa a
funcionar como ferramenta de continuidade, e não
de quebra, oferecendo a resposta mais natural possível
a uma provocação iniciada em um plano
anterior. A própria utilização
do cenário em que se passa a maior parte do filme,
um pequeno prédio, é fundamental para
entender a proposta de Blake Edwards. Paredes e portas
separam os ambientes, mas há uma tremenda facilidade
de circulação dentro daqueles espaços:
invade-se o apartamento do vizinho pela escada de incêndio
sem o menor entrave; as portas se abrem sem muita dificuldade;
e durante festas lotadas o fluxo de pessoas não
cessa, independentemente das limitações
espaciais. Sempre há uma saída, um caminho
que se pode seguir sem a necessidade de parar, por isso
as pessoas insistem em passar de um cômodo para
o outro. Esta é a lógica que também
rege os cortes espalhados pelo filme: quando o espaço
contido em um plano já deu tudo que tinha para
dar, é necessário passar para outro impossibilitando
qualquer sinal de saturação. O corte entra
como mecanismo de propulsão, impelindo o movimento
e mantendo uma unidade entre as imagens só possíveis
quando realizados na hora adequada. Questão de
timing, e esta sempre foi a especialidade de
Edwards, que parte do mesmo procedimento para valorizar
gags absurdas e certeiras. A cena da festa é
sem dúvida um dos maiores momentos de sua carreira
e não há como não imaginá-la
como a gênese de Um Convidado Bem Trapalhão,
filme que só rodaria sete anos depois, levando
várias das idéias lançadas aqui
ao limite.
Em certas situações pode-se estranhar
o fato de que alguns movimentos mais aparentes estejam
sendo interrompidos, entretanto, se isto ocorre é
por que não há leviandade nesta vontade
do diretor em filmar as coisas passando de um lado para
o outro. Se Holly (Audrey Hepburn) fecha a porta para
seu acompanhante que, bêbado, quase a põe
abaixo é porque só assim ela pode fugir
dali e ir ao apartamento de Paul (George Peppard). Há
escolhas sendo feitas, movimentos que o interessa colocar
diante da câmera mais que os outros. No fim das
contas mesmo estas raras interrupções
aparentemente mais bruscas não passam de meros
desvios que garantem a manutenção de uma
outra série de ações escolhida.
Quão capaz é Edwards de fazer estas escolhas
é algo comprovado em todas as cenas do filme,
mas especialmente na mais antológica delas: Paul
observa Holly cantando "Moon River" na escada
de incêndio. A própria narrativa parece
ser esquecida em algum lugar qualquer e a câmera
simplesmente pára e se concentra ali. Consegue-se
criar um instante em que um mero dedilhar de Hepburn
em um banjo é o único movimento que realmente
merece atenção. Nada mais justo: poucas
cenas na história do cinema são de uma
beleza tão pura e necessária.
José Roberto Rocha
(DVD: Paramount)
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