BONEQUINHA DE LUXO
Blake Edwards, Breakfast at Tiffany's, EUA, 1961

No que consiste a elegância, cinematograficamente falando? Que tipo de atitudes deverão ser tomadas para alcançá-la? Que ângulos devem ser utilizados e quais devem ser evitados? Que ritmo melhor condiz com essa qualidade? Difícil encontrar respostas para tais perguntas, mas se há um filme que auxilia consideravelmente nesta tarefa é exatamente Bonequinha de Luxo. Há, durante todo o decorrer do filme, uma graça no fluir das coisas que não poderia encontrar melhor expressão que em sua protagonista, Audrey Hepburn. Logo na primeira cena ela toma seu café da manhã em frente à vitrine da Tiffany’s e cada um de seus gestos parece constituir novas cenas por si só; fragmentos de beleza que nunca se afrouxam demais prejudicando a atenção do quadro. Encontra-se um tipo de equilíbrio quase impossível, só obtido graças à maneira como o diretor articula suas imagens. Esta necessidade de coesão, mesmo sendo obtida de maneira leve e desembaraçada, parece ser extremamente cara desde o início.

Esta unidade buscada em cada uma de suas cenas passa prioritariamente pelo esforço em se manter um fluxo de imagens em movimento, buscando não interrompê-lo de forma alguma. Uma tarefa impossível, tendo em vista que o próprio corte é, antes de mais nada, uma ferramenta de interrupção, além de que a mera disposição das coisas dentro do quadro traz uma infinidade de dados estáticos que não podem ser ignorados mesmo com tantos elementos dinâmicos passando de um lado para o outro. Portanto, se há uma vontade em manter um movimento, ela passa necessariamente pelo interesse de construir a ilusão do mesmo. O trabalho com a profundidade de campo passa a ser essencial dentro deste cenário, buscando minimizar tanto quanto conveniente os cortes que travassem este processo. Insistindo em sua utilização em momentos e formas das mais diversas, Edwards acaba conseguindo algo mais profundo que a simples supressão dos cortes; provoca um verdadeiro balé de corpos que mesmo em situações ou espaços distintos, ao dividirem o mesmo quadro, parecem responder aos movimentos uns dos outros. Há uma sincronia que não passa despercebida, mas ao mesmo tempo não chama atenção demais para si própria já que isto frustraria, por si só todo o efeito desejado. Bonequinha de Luxo é um filme marcado pelo equilibro e proporcionalidade de formas, e da sobriedade com a qual se alcança isso se desprende grande parte de sua elegância.

Mesmo nos inevitáveis momentos em que o corte se faz necessário, ele parece nunca surgir repentinamente, incorporando-se ao projeto formal do filme de forma que aperfeiçoa ou possibilita a continuidade desta movimentação de corpos que se pretende alcançar. O corte subverte o estado de concessão técnica que normalmente esse tipo de projeto dá (Festim Diabólico) e passa a funcionar como ferramenta de continuidade, e não de quebra, oferecendo a resposta mais natural possível a uma provocação iniciada em um plano anterior. A própria utilização do cenário em que se passa a maior parte do filme, um pequeno prédio, é fundamental para entender a proposta de Blake Edwards. Paredes e portas separam os ambientes, mas há uma tremenda facilidade de circulação dentro daqueles espaços: invade-se o apartamento do vizinho pela escada de incêndio sem o menor entrave; as portas se abrem sem muita dificuldade; e durante festas lotadas o fluxo de pessoas não cessa, independentemente das limitações espaciais. Sempre há uma saída, um caminho que se pode seguir sem a necessidade de parar, por isso as pessoas insistem em passar de um cômodo para o outro. Esta é a lógica que também rege os cortes espalhados pelo filme: quando o espaço contido em um plano já deu tudo que tinha para dar, é necessário passar para outro impossibilitando qualquer sinal de saturação. O corte entra como mecanismo de propulsão, impelindo o movimento e mantendo uma unidade entre as imagens só possíveis quando realizados na hora adequada. Questão de timing, e esta sempre foi a especialidade de Edwards, que parte do mesmo procedimento para valorizar gags absurdas e certeiras. A cena da festa é sem dúvida um dos maiores momentos de sua carreira e não há como não imaginá-la como a gênese de Um Convidado Bem Trapalhão, filme que só rodaria sete anos depois, levando várias das idéias lançadas aqui ao limite.

Em certas situações pode-se estranhar o fato de que alguns movimentos mais aparentes estejam sendo interrompidos, entretanto, se isto ocorre é por que não há leviandade nesta vontade do diretor em filmar as coisas passando de um lado para o outro. Se Holly (Audrey Hepburn) fecha a porta para seu acompanhante que, bêbado, quase a põe abaixo é porque só assim ela pode fugir dali e ir ao apartamento de Paul (George Peppard). Há escolhas sendo feitas, movimentos que o interessa colocar diante da câmera mais que os outros. No fim das contas mesmo estas raras interrupções aparentemente mais bruscas não passam de meros desvios que garantem a manutenção de uma outra série de ações escolhida. Quão capaz é Edwards de fazer estas escolhas é algo comprovado em todas as cenas do filme, mas especialmente na mais antológica delas: Paul observa Holly cantando "Moon River" na escada de incêndio. A própria narrativa parece ser esquecida em algum lugar qualquer e a câmera simplesmente pára e se concentra ali. Consegue-se criar um instante em que um mero dedilhar de Hepburn em um banjo é o único movimento que realmente merece atenção. Nada mais justo: poucas cenas na história do cinema são de uma beleza tão pura e necessária.


José Roberto Rocha

(DVD: Paramount)