O LEÃO DE SETE CABEÇAS
Glauber Rocha, Der Leone Have Sept Cabeças, Congo/França/Itália, 1970

Pablo, guerrilheiro latino-americano, e Zumbi, líber negro rebelde, unem-se para libertar o continente africano a ferro, fogo e sangue. No processo revolucionário que desencadeiam, eles enfrentam o mercenário alemão que, auxiliado pelo agente norte-americano e pelo assessor português, governa em nome da misteriosa Marlene. Observados pelo onipresente pregador messiânico interpretado por Jean-Pierre Léaud, que tanto denuncia a chegada da besta sacrílega capaz de derrotar os santos, quanto anuncia os dois insurgentes como emissários da justiça divina, os personagens que se digladiam em O Leão de Sete Cabeças encarnam quinhentos anos de dominação branca sobra a África que, do colonialismo ao imperialismo, modifica-se para continuar sempre a mesma.

O Leão de Sete Cabeças é a primeira produção de Glauber Rocha no exílio. De acordo com o próprio cineasta, trata-se de "uma história geral do colonialismo euro-americano na África, uma epopéia africana, preocupada em pensar do ponto de vista do homem do Terceiro Mundo, por oposição aos filmes comerciais que tratam de safáris, ao tipo de concepção dos brancos em relação àquele continente. É uma teoria sobre a possibilidade de um cinema político. Escolhi a África porque me pareceu um continente com problemas semelhantes aos do Brasil". De fato, já no início do longa-metragem, Zumbi relembra aos espectadores o começo do martírio africano com a vinda do colonizador europeu, que escravizou as diversas nações ("tribo" é termo pejorativo e eurocêntrico) e as enviou para as lavouras de tabaco, de algodão, de cacau e de cana-de-açúcar da América, desestruturando os núcleos familiares, as relações sociais e toda a economia de subsistência local. No contato do o continente negro com os mercadores brancos, nasce o Terceiro Mundo e o subdesenvolvimento: África, América Latina e Ásia transformadas em fornecedores de matérias-primas e de trabalho barato para as potências do hemisfério norte, conectadas e articuladas entre si pelo comércio global capitalista criado e difundido a princípio por Portugal e Espanha, depois pela Holanda e pela Inglaterra e, finalmente, apropriado pelos EUA no curso do século XX.

Se o agente norte-americano reclama dos governos da África ao compará-los com os da América Latina (onde ele precisa apenas se queixar do Estado para que um outro inteiramente novo apareça e o substitua), é porque o continente africano sofreu a exploração mais violenta e desumana, a ponto de se encontrar privado dos mecanismos ocidentais que visam à manutenção da ordem capitalista, ou seja, a democracia e o estado de direito. Sem que as instituições originárias da Europa consigam se firmar, e impossibilitados de propagar suas tradições culturais, econômicas, políticas e sociais – consideradas bárbaras, incultas e incivilizadas pelos conquistadores –, resta aos povos da África somente a escravidão, estrutura de controle da qual O Leão de Sete Cabeças parte. Entretanto, no vasto painel histórico montado por Glauber Rocha, apresentam-se igualmente as diversas mutações por que atravessam as estratégias de poder exercidas pelos colonizadores. Assim, enquanto o mercenário alemão e seu aliado português remetem ao passado colonial, o agente dos EUA aponta para o presente imperialista: como resultados dos "novos tempos", Xobu, líder da burguesia nacional, é feito presidente, embora a incapacidade do marionete em sufocar as revoltas dos trabalhadores – mesmo com os reformistas clamando pelo bom senso e pelo fim dos radicalismos – acabe por favorecer o uso da força militar, na seqüência em que civis são assassinados, pelas costas, a tiros de metralhadora.

Em Um Filme Falado, Manoel de Oliveira compreende a História não como a sucessão cronológica de eventos restritos e isolados, mas sim enquanto a fusão de todos os acontecimentos e temporalidades que originam o presente e que com ele co-existem, sob a forma de memórias e de reminiscências. Para Glauber Rocha, em O Leão de Sete Cabeças, também está em jogo a capacidade de impregnação do Tempo (que pode ser vista na obra de Rithy Panh, em que as feridas abertas pela máquina de matar do Khmer Vermelho permanecem latejando no Camboja contemporâneo): são os quinhentos anos de colonização e de massacre sistemático euro-americano na África que se acumulam e que, ao deixarem marcas irrevogáveis, dão o rosto da miséria absoluta e da ofensa estrangeira com que as nações africanas convivem atualmente. O cineasta poderia somente "documentar" o desenrolar dos fatos em alguma ex-colônia – por exemplo, a transformação do ex-Congo francês (independente em 1960), onde se realizaram as filmagens, na República Popular do Congo em 1970, de orientação leninista, não sem antes que dois presidentes fossem depostos por golpes militares. No entanto, ele prefere colocar lado a lado os vários protagonistas dos processos de submissão e de libertação do continente africano, conforme já indica o título original do filme, Der Leone Have Sept Cabeças, que mistura as línguas dos países conquistadores. Por conseguinte, mesmo que flerte com a dialética marxista, ao contrapor ricos e pobres, negros e brancos, norte e sul, europeus e africanos, O Leão de Sete Cabeças a ultrapassa, visto que se abre para a multiplicidade de tempos, de personagens e de eventos, sejam eles atuais ou virtuais, que compõem a História geral da África que Glauber Rocha pretende contar.

Se a História da África narrada por Glauber Rocha ultrapassa a dialética materialista, ela igualmente deixa para trás a simples noção de alegoria política. O cineasta já havia explorado os limites, problemas e impossibilidades do cinema alegórico (ao contrário de Cacá Diegues em Os Herdeiros, ou Walter Lima Jr. em Brasil Ano 2000) – que necessita da construção de um espaço mitificado, portanto fora do Tempo e sujeito ao Destino, onde a ação humana e a transformação que dela decorre não têm vez – tanto em Terra em Transe (o desespero do herói ao descobrir que nada pode fazer para a alterar a realidade que se impõe), quanto em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (o sertão de Antônio das Mortes, onde Deus e Diabo se enfrentam, em vias de ser substituída pelo país moderno das rodovias e dos postos de gasolina). Em O Leão de Sete Cabeças, embora os personagens tenham presenças teatrais – teatralidade sempre posta em perspectiva pelo registro documental do ambiente e dos figurantes africanos, que no mais das vezes se restringem a assistir às encenações, conferindo estranheza aos longos planos-seqüência que constituem o filme –, a África torna-se o lugar no qual as forças sociais, econômicas, políticas e culturais envolvidas no processo colonial interagem e se alteram mutuamente: no continente que o cineasta revela, não existem mitos estáticos ou retóricas mortas, pois vida e morte fervilham a cada canto, seja nos festejos que coroam a liderança de Zumbi, seja nas manifestações anti-imperialistas comandadas pelo guerrilheiro Pablo, seja nos olhares estupefatos das crianças que observam a marcha dos soldados invasores, de metralhadoras em punho.

Na epopéia de O Leão de Sete Cabeças, diferente de Terra em Transe, a revolução não somente é possível como também provável: enquanto Marlene é crucificada, africanos saem das matas para tomar definitivamente o poder. O canto que entoam é a voz mesma do subdesenvolvimento: "Oh África, oh África...".


Paulo Ricardo de Almeida