Pablo,
guerrilheiro latino-americano, e Zumbi, líber
negro rebelde, unem-se para libertar o continente africano
a ferro, fogo e sangue. No processo revolucionário
que desencadeiam, eles enfrentam o mercenário
alemão que, auxiliado pelo agente norte-americano
e pelo assessor português, governa em nome da
misteriosa Marlene. Observados pelo onipresente pregador
messiânico interpretado por Jean-Pierre Léaud,
que tanto denuncia a chegada da besta sacrílega
capaz de derrotar os santos, quanto anuncia os dois
insurgentes como emissários da justiça
divina, os personagens que se digladiam em O Leão
de Sete Cabeças encarnam quinhentos anos
de dominação branca sobra a África
que, do colonialismo ao imperialismo, modifica-se para
continuar sempre a mesma.
O Leão de Sete Cabeças é
a primeira produção de Glauber Rocha no
exílio. De acordo com o próprio cineasta,
trata-se de "uma história geral do colonialismo
euro-americano na África, uma epopéia
africana, preocupada em pensar do ponto de vista do
homem do Terceiro Mundo, por oposição
aos filmes comerciais que tratam de safáris,
ao tipo de concepção dos brancos em relação
àquele continente. É uma teoria sobre
a possibilidade de um cinema político. Escolhi
a África porque me pareceu um continente com
problemas semelhantes aos do Brasil". De fato, já
no início do longa-metragem, Zumbi relembra aos
espectadores o começo do martírio africano
com a vinda do colonizador europeu, que escravizou as
diversas nações ("tribo" é termo
pejorativo e eurocêntrico) e as enviou para as
lavouras de tabaco, de algodão, de cacau e de
cana-de-açúcar da América, desestruturando
os núcleos familiares, as relações
sociais e toda a economia de subsistência local.
No contato do o continente negro com os mercadores brancos,
nasce o Terceiro Mundo e o subdesenvolvimento: África,
América Latina e Ásia transformadas em
fornecedores de matérias-primas e de trabalho
barato para as potências do hemisfério
norte, conectadas e articuladas entre si pelo comércio
global capitalista criado e difundido a princípio
por Portugal e Espanha, depois pela Holanda e pela Inglaterra
e, finalmente, apropriado pelos EUA no curso do século
XX.
Se o agente norte-americano reclama dos governos da
África ao compará-los com os da América
Latina (onde ele precisa apenas se queixar do Estado
para que um outro inteiramente novo apareça e
o substitua), é porque o continente africano
sofreu a exploração mais violenta e desumana,
a ponto de se encontrar privado dos mecanismos ocidentais
que visam à manutenção da ordem
capitalista, ou seja, a democracia e o estado de direito.
Sem que as instituições originárias
da Europa consigam se firmar, e impossibilitados de
propagar suas tradições culturais, econômicas,
políticas e sociais – consideradas bárbaras,
incultas e incivilizadas pelos conquistadores –, resta
aos povos da África somente a escravidão,
estrutura de controle da qual O Leão de Sete
Cabeças parte. Entretanto, no vasto painel
histórico montado por Glauber Rocha, apresentam-se
igualmente as diversas mutações por que
atravessam as estratégias de poder exercidas
pelos colonizadores. Assim, enquanto o mercenário
alemão e seu aliado português remetem ao
passado colonial, o agente dos EUA aponta para o presente
imperialista: como resultados dos "novos tempos", Xobu,
líder da burguesia nacional, é feito presidente,
embora a incapacidade do marionete em sufocar as revoltas
dos trabalhadores – mesmo com os reformistas clamando
pelo bom senso e pelo fim dos radicalismos – acabe por
favorecer o uso da força militar, na seqüência
em que civis são assassinados, pelas costas,
a tiros de metralhadora.
Em Um Filme Falado, Manoel de Oliveira compreende
a História não como a sucessão
cronológica de eventos restritos e isolados,
mas sim enquanto a fusão de todos os acontecimentos
e temporalidades que originam o presente e que com ele
co-existem, sob a forma de memórias e de reminiscências.
Para Glauber Rocha, em O Leão de Sete Cabeças,
também está em jogo a capacidade de impregnação
do Tempo (que pode ser vista na obra de Rithy Panh,
em que as feridas abertas pela máquina de matar
do Khmer Vermelho permanecem latejando no Camboja contemporâneo):
são os quinhentos anos de colonização
e de massacre sistemático euro-americano na África
que se acumulam e que, ao deixarem marcas irrevogáveis,
dão o rosto da miséria absoluta e da ofensa
estrangeira com que as nações africanas
convivem atualmente. O cineasta poderia somente "documentar"
o desenrolar dos fatos em alguma ex-colônia –
por exemplo, a transformação do ex-Congo
francês (independente em 1960), onde se realizaram
as filmagens, na República Popular do Congo em
1970, de orientação leninista, não
sem antes que dois presidentes fossem depostos por golpes
militares. No entanto, ele prefere colocar lado a lado
os vários protagonistas dos processos de submissão
e de libertação do continente africano,
conforme já indica o título original do
filme, Der Leone Have Sept Cabeças,
que mistura as línguas dos países conquistadores.
Por conseguinte, mesmo que flerte com a dialética
marxista, ao contrapor ricos e pobres, negros e brancos,
norte e sul, europeus e africanos, O Leão
de Sete Cabeças a ultrapassa, visto que se
abre para a multiplicidade de tempos, de personagens
e de eventos, sejam eles atuais ou virtuais, que compõem
a História geral da África que Glauber
Rocha pretende contar.
Se a História da África narrada por Glauber
Rocha ultrapassa a dialética materialista, ela
igualmente deixa para trás a simples noção
de alegoria política. O cineasta já havia
explorado os limites, problemas e impossibilidades do
cinema alegórico (ao contrário de Cacá
Diegues em Os Herdeiros, ou Walter Lima Jr. em
Brasil Ano 2000) – que necessita da construção
de um espaço mitificado, portanto fora do Tempo
e sujeito ao Destino, onde a ação humana
e a transformação que dela decorre não
têm vez – tanto em Terra em Transe (o desespero
do herói ao descobrir que nada pode fazer para
a alterar a realidade que se impõe), quanto em
O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro
(o sertão de Antônio das Mortes, onde Deus
e Diabo se enfrentam, em vias de ser substituída
pelo país moderno das rodovias e dos postos de
gasolina). Em O Leão de Sete Cabeças,
embora os personagens tenham presenças teatrais
– teatralidade sempre posta em perspectiva pelo registro
documental do ambiente e dos figurantes africanos, que
no mais das vezes se restringem a assistir às
encenações, conferindo estranheza aos
longos planos-seqüência que constituem o
filme –, a África torna-se o lugar no qual as
forças sociais, econômicas, políticas
e culturais envolvidas no processo colonial interagem
e se alteram mutuamente: no continente que o cineasta
revela, não existem mitos estáticos ou
retóricas mortas, pois vida e morte fervilham
a cada canto, seja nos festejos que coroam a liderança
de Zumbi, seja nas manifestações anti-imperialistas
comandadas pelo guerrilheiro Pablo, seja nos olhares
estupefatos das crianças que observam a marcha
dos soldados invasores, de metralhadoras em punho.
Na epopéia de O Leão de Sete Cabeças,
diferente de Terra em Transe, a revolução
não somente é possível como também
provável: enquanto Marlene é crucificada,
africanos saem das matas para tomar definitivamente
o poder. O canto que entoam é a voz mesma do
subdesenvolvimento: "Oh África, oh África...".
Paulo Ricardo de Almeida
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