A partir do lançamento de An
Alan Smithee Film: Burn Hollywood Burn, o Director’s
Guild of America – sindicato dos diretores norte-americanos
– decidiu que o pseudônimo utilizado por cineastas que
retiravam seus nomes dos créditos deixara de ser efetivo.
Já sem contar com o procedimento que preserva o “autor”
nos casos em que há discordância sobre o produto final,
azar de Walter Salles que, contratado para refilmar
Honogurai mizu no soko kara, teve que assinar
Água Negra, mesmo sem ter direito ao corte final
do filme. A estréia de Salles como diretor de aluguel
nos EUA permite, porém, uma visão mais clara de falhas
já marcantes em seus filmes precedentes. Antes camufladas
pelo material de origem nobre, pelas boas intenções
e pelo “humanismo”, se evidenciam aqui a ojeriza pelo
cinema de gênero (e a tentativa intelectualizante de
melhorá-lo), a incapacidade de colocar o espaço em jogo
para dar vida à narrativa e a pobreza visual (que se
reflete na fotografia-clichê de Affonso Beato e nos
enquadramentos desprovidos de sentido), que terminam
por, perdoando o trocadilho, afogar Água Negra.
Enquanto disputa com ex-marido a guarda da filha de
seis anos, após divórcio recente, Dahlia se muda com
a garota para a ilha de Jersey, parte mais pobre de
Nova York e imediatamente ao lado de Manhattan. Em virtude
das dificuldades financeiras pelas quais atravessa,
aluga apartamento caindo aos pedaços em conjunto habitacional
que (para os padrões americanos) beira ao cortiço, onde
misteriosa goteira de água negra, no teto do quarto,
relaciona-se com o sumiço de criança, abandonada pelos
pais, que morava no andar de cima. Apesar de baseado
no original japonês de Hideo Nakata – mesmo criador
de Ringu –, Água Negra, porém, concentra-se
menos no terror sobrenatural e nos elementos fantásticos
da narrativa e mais no drama psicológico e familiar
de Dahlia. Assim, embora o fantasma da menina desaparecida
vague pelo prédio em decomposição e atemorize as personagens
recém instaladas, ele apenas contribui para o enlouquecimento
progressivo da heroína, emocionalmente abalada pelas
rejeições que sofreu da mãe, que a odiava, e do ex-marido,
que não hesita em afundá-la na paranóia para conquistar
a guarda da filha.
Ao invés de mais uma narrativa de terror, somente outro
conto moral sobre a dissolução da família. A transformação
que Walter Salles opera em Água Negra, de fato,
permeia sua filmografia, que consiste em retrabalhar
as estruturas convencionais dos gêneros cinematográficos
estabelecidos a fim de “enobrecê-los” e de dar-lhes
“profundidade”, de modo que a obra do cineasta se funda
a partir do desprezo que ele nutre a respeito do material
de origem. A esquizofrenia do diretor se mostra, por
exemplo, em A Grande Arte, única tentativa verdadeira
de realizar um thriller (sob a chancela de estar adaptando
Rubem Fonseca), e, sobretudo, em Central do Brasil
e em Diários de Motocicleta, road movies nos
quais pesam a consciência social e a descoberta afetiva,
respectivamente, do país e da América Latina.
Descoberta afetiva que, seja no Brasil ou na América
do Sul, faz dos lugares visitados por Dora e por Che
Guevara meros cartões postais, belezas plásticas embaladas
para consumo turístico imediato. Assim como em Abril
Despedaçado, em que o sertão da vendetta
é mitificado pela imaginação infantil de Pacu, em Água
Negra Walter Salles volta a provar sua incompetência
em lidar com o espaço: o prédio, que deveria ser o depositário
vivo de memórias, de dores e de sofrimentos latentes,
é apenas mais uma locação morta, reduzida ao óbvio abrir
e fechar de portas comuns aos filmes de terror ruins.
Sempre apresentado através de planos aéreos, o cenário
principal jamais é penetrado pelo cineasta, que prefere
manter distância do organismo que ele teme ganhar vida,
ao mesmo tempo em que seu entorno, a ilha de Jersey,
acaba desaproveitado, pois, salvo a referência de que
possui a melhor escola da cidade, serve para que se
conheça a maior eficiência e rapidez do metrô em relação
ao teleférico.
Mesmo que pouco à vontade com o cinema de gênero, Walter
Salles, paradoxalmente, usa e abusa da fórmula imposta
aos filmes de terror a partir de Alien, O Oitavo
Passageiro. São marcantes, em Água Negra,
a fotografia escura e as cores saturadas, as entradas
e saídas repentinas do quadro, a constância da música
(dos piores momentos de Ângelo Badalamenti, parceiro
habitual de David Lynch) que sempre cresce para exibir
acontecimentos de maior tensão, situações misteriosas
como a máquina de lavar que enguiça ou os passos que
se escutam do apartamento de cima, tudo com o propósito
de gerar sustos fáceis nos espectadores desavisados.
Na preguiça geral com que o diretor conduz sua estréia
em Hollywood, sobram para John C. Reilly e para Tim
Roth papéis sem função dramática – este último, na pele
do advogado solitário, cujo aparente relacionamento
afetivo com Dahlia não avança – e, para Pete Postlethwaite,
show de canastrice, a presença como porteiro que tudo
sabe e nada diz, espécie de bicho-papão mal-humorado.
Walter Salles jamais define o que Água Negra
quer ser quando crescer: apesar do foco principal no
drama psicológico de Dahlia, ora ele também apela para
o terror sobrenatural, ora flerta com o suspense barato
(os garotos que andam pelo prédio). E pensar que o gênero
já proporcionou exemplos de excelência como O Iluminado,
de Stanley Kubrick, ou A Salvo, de Todd Haynes.
Ambos, contudo, apostavam na iluminação total, em que
o quadro inteiro fica à mostra, e no estranhamento que
os personagens sentem com o espaço orgânico – seja o
Hotel Overlook em relação a Jack Nicholson no primeiro
filme; seja a casa, onde algo está errado, da bem comportada
esposa interpretada por Juliane Moore no segundo.
Paulo Ricardo de Almeida
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