É mais difícil do que parece
definir com exatidão aquilo que se chama de Bossa Nova
– se é um movimento cultural próprio de uma geração,
se é apenas uma batida de violão e uma maneira diferente
de tocar o samba, se define uma determinada postura
estética ou mesmo se é tudo isso e um pouco mais (ou
um pouco menos, segundo suas próprias regras). Ao considerarmos
válidas as noções de que Bossa Nova define-se pelo violão
e pelo canto de João Gilberto e, ao mesmo tempo, pela
produção musical de um certo grupo ao longo de alguns
anos, surge então o problema de precisão na definição
de Bossa Nova: a produção de um único artista é (naturalmente,
e com certeza neste caso) mais coerente do que a produção
de um grupo, de uma geração. Portanto, analisar a Bossa
Nova como o resultado da produção de João Gilberto,
e a influência que teve, apresenta um sentido, enquanto
analisá-la como movimento de uma geração tem outro sentido,
um tanto diverso.
Coisa mais linda, de Paulo Thiago, apresenta
vários momentos agradáveis e repete didaticamente algumas
das idéias mais interessantes sobre essa tal de Bossa
Nova, mas limita-se a partir do momento em que procura
ignorar este problema de definição do seu objeto retratado
e, a partir daí, torna-se de certa maneira a tentativa
de conciliar, num olhar panorâmico e superficial, ambas
as versões. Assim, acaba por trair ambos os espíritos:
se não tem o rigor e a inventividade da arte de João
Gilberto, tampouco consegue manter a atmosfera de simplicidade
e amizade próprios do grupo e do momento histórico.
Como filme, não apresenta o rigor de uma análise séria
dos sentidos e significados que a Bossa Nova ganhou
nem consegue, em meio aos seus infindáveis letreiros
explicativos, criar o clima de “crônica de uma época”.
No entanto, se breca no meio do caminho, perdido entre
a crônica de uma época e a análise de uma estética,
o filme traz consigo alguns momentos realmente emocionantes
soltos em meio à sua narração. Mal comparando, é como
um conjunto dos anos 50 que, mesmo tocando a música
mais careta, inclui em seu elenco algumas feras capazes
de trazer brilhos eventuais a certas gravações, como
grandes solistas perdidos em meio a uma orquestração
bem-comportada e nada original.
É pena que assim o seja, uma vez que ambos os caminhos
merecem um ou muitos outros filmes. Na verdade, é como
crônica de uma geração, quase como filme de família,
que Coisa mais linda se sai melhor. O filme menor,
da relação de causos e amizades, é mais interessante
do que a revisão didática dos lugares-comuns históricos
– melhor seria que o filme se dedicasse a ser somente
um filme de galera assumido, um “Carlinhos
& Menesca”, libertando-se dos chatíssimos e
intermináveis letreiros pretensamente explicativos (do
tipo “João Donato nasceu no Acre”...). Lyra e Menescal
são personagens interessantes, ainda que se revelem
muito pouco e tenham relações diferentes com a geografia
apresentada – quando são levados de um lado para o outro,
como se fossem os cicerones do filme (sendo mais interessantes,
na verdade, como personagens em seus próprios depoimentos),
Menescal parece se sentir bem mais à vontade, seja no
cais ou no anfiteatro da UFRJ. Já o filme maior
pretendido, por ser inviável, apresenta um resultado
banal, como logo se torna evidente – Donato, Johnny
Alf, Marcos Valle, Alaíde Costa (para citar exemplos
de artistas que, por si só, já merecem grande atenção)
são vistos apenas de relance, às vezes tendo tempo para
tocar uma música bonita, contextualizados pelos onipresentes
letreiros. Dezenas de outros nem são citados, quase
nenhum instrumentista – trata-se de um panorama que
não cita Milton Banana nem Edison Machado, por exemplo.
E, na verdade, isso não importa, uma vez que os retratados
“à distância” João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de
Moraes são muita areia para o caminhãozinho de Coisa
mais linda, que prefere girar em torno dos velhos
clichês (e mitificações, “historinhas folclóricas”,
no caso de João Gilberto) nos perfis traçados. Não há
dúvida de que os depoimentos de Paulo Jobim sobre Tom
e de Otávio Terceiro sobre João são interessantíssimos
– mas cada um deles é apenas um pequeno pedaço de uma
história gigantesca que Coisa mais linda mal
entrevê, através de mais uns poucos comentários (os
de Menescal, o de Durval Ferreira, o de Nelson Motta).
Muitos assuntos interessantes uma revisão da Bossa Nova
pode encontrar, sobretudo se não tiver receio de confrontar
os contrários nem de especular significados. Mas Coisa
mais linda prefere não correr o risco de ser original
– ao contrário dos músicos do movimento, a narrativa
do filme parece não gostar de dissonâncias.
Isto não tira do filme o mérito, no entanto, de registrar
alguns instantes admiráveis – os melhores que Paulo
Thiago filmou nos últimos anos, com certeza. Mas, como
se sabe, entre as principais lições de João Gilberto
estão o rigor e a concisão. Em certos momentos Coisa
mais linda encontra seus personagens – é pena que
não se concentre neles em nome de um repetitivo e superficial
retrato pretensamente mais amplo.
Daniel Caetano
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