COISA MAIS LINDA
Paulo Thiago, Brasil, 2005

É mais difícil do que parece definir com exatidão aquilo que se chama de Bossa Nova – se é um movimento cultural próprio de uma geração, se é apenas uma batida de violão e uma maneira diferente de tocar o samba, se define uma determinada postura estética ou mesmo se é tudo isso e um pouco mais (ou um pouco menos, segundo suas próprias regras). Ao considerarmos válidas as noções de que Bossa Nova define-se pelo violão e pelo canto de João Gilberto e, ao mesmo tempo, pela produção musical de um certo grupo ao longo de alguns anos, surge então o problema de precisão na definição de Bossa Nova: a produção de um único artista é (naturalmente, e com certeza neste caso) mais coerente do que a produção de um grupo, de uma geração. Portanto, analisar a Bossa Nova como o resultado da produção de João Gilberto, e a influência que teve, apresenta um sentido, enquanto analisá-la como movimento de uma geração tem outro sentido, um tanto diverso.

Coisa mais linda, de Paulo Thiago, apresenta vários momentos agradáveis e repete didaticamente algumas das idéias mais interessantes sobre essa tal de Bossa Nova, mas limita-se a partir do momento em que procura ignorar este problema de definição do seu objeto retratado e, a partir daí, torna-se de certa maneira a tentativa de conciliar, num olhar panorâmico e superficial, ambas as versões. Assim, acaba por trair ambos os espíritos: se não tem o rigor e a inventividade da arte de João Gilberto, tampouco consegue manter a atmosfera de simplicidade e amizade próprios do grupo e do momento histórico. Como filme, não apresenta o rigor de uma análise séria dos sentidos e significados que a Bossa Nova ganhou nem consegue, em meio aos seus infindáveis letreiros explicativos, criar o clima de “crônica de uma época”. No entanto, se breca no meio do caminho, perdido entre a crônica de uma época e a análise de uma estética, o filme traz consigo alguns momentos realmente emocionantes soltos em meio à sua narração. Mal comparando, é como um conjunto dos anos 50 que, mesmo tocando a música mais careta, inclui em seu elenco algumas feras capazes de trazer brilhos eventuais a certas gravações, como grandes solistas perdidos em meio a uma orquestração bem-comportada e nada original.

É pena que assim o seja, uma vez que ambos os caminhos merecem um ou muitos outros filmes. Na verdade, é como crônica de uma geração, quase como filme de família, que Coisa mais linda se sai melhor. O filme menor, da relação de causos e amizades, é mais interessante do que a revisão didática dos lugares-comuns históricos – melhor seria que o filme se dedicasse a ser somente um filme de galera assumido, um “Carlinhos & Menesca”, libertando-se dos chatíssimos e intermináveis letreiros pretensamente explicativos (do tipo “João Donato nasceu no Acre”...). Lyra e Menescal são personagens interessantes, ainda que se revelem muito pouco e tenham relações diferentes com a geografia apresentada – quando são levados de um lado para o outro, como se fossem os cicerones do filme (sendo mais interessantes, na verdade, como personagens em seus próprios depoimentos), Menescal parece se sentir bem mais à vontade, seja no cais ou no anfiteatro da UFRJ. Já o filme maior pretendido, por ser inviável, apresenta um resultado banal, como logo se torna evidente – Donato, Johnny Alf, Marcos Valle, Alaíde Costa (para citar exemplos de artistas que, por si só, já merecem grande atenção) são vistos apenas de relance, às vezes tendo tempo para tocar uma música bonita, contextualizados pelos onipresentes letreiros. Dezenas de outros nem são citados, quase nenhum instrumentista – trata-se de um panorama que não cita Milton Banana nem Edison Machado, por exemplo.

E, na verdade, isso não importa, uma vez que os retratados “à distância” João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes são muita areia para o caminhãozinho de Coisa mais linda, que prefere girar em torno dos velhos clichês (e mitificações, “historinhas folclóricas”, no caso de João Gilberto) nos perfis traçados. Não há dúvida de que os depoimentos de Paulo Jobim sobre Tom e de Otávio Terceiro sobre João são interessantíssimos – mas cada um deles é apenas um pequeno pedaço de uma história gigantesca que Coisa mais linda mal entrevê, através de mais uns poucos comentários (os de Menescal, o de Durval Ferreira, o de Nelson Motta). Muitos assuntos interessantes uma revisão da Bossa Nova pode encontrar, sobretudo se não tiver receio de confrontar os contrários nem de especular significados. Mas Coisa mais linda prefere não correr o risco de ser original – ao contrário dos músicos do movimento, a narrativa do filme parece não gostar de dissonâncias.

Isto não tira do filme o mérito, no entanto, de registrar alguns instantes admiráveis – os melhores que Paulo Thiago filmou nos últimos anos, com certeza. Mas, como se sabe, entre as principais lições de João Gilberto estão o rigor e a concisão. Em certos momentos Coisa mais linda encontra seus personagens – é pena que não se concentre neles em nome de um repetitivo e superficial retrato pretensamente mais amplo.

Daniel Caetano