COISA DE MULHER
Eliane Fonseca, Brasil, 2005

A existência de Coisa de Mulher, dirigido por Eliane Fonseca, nos remete aos anos 70. Naquela época, antes da televisão ter incorporado o sexo na teledramaturgia e em seus programas de humor, a revelação em imagens ou em palavras das atividades dos corpos, assim como as “provas” de suas belezas, eram exclusivas de um cinema voltado para centenas de milhares, e até milhões de espectadores. Podia-se mostrar esses corpos tomados por disfunção psicológica, ou apenas na luta por momentos de prazer sem culpa, mas eles ali estavam a expor os impulsos não civilizados, transformando esse não civilizado em cultura.

Em pouco mais de 20 anos, sumiram os sinais dessa produção. Em vez de se mudar o estatuto da representação da sexualidade, como acontece em um Cidade Baixa, de Sergio Machado, simplesmente se varreu das telas os encontros físicos. Coisa de Mulher nos remete a essa questão histórica-cultural porque, em mais de um momento, o filme nos oferece uma reedição das pornochanchadas, daquelas bem sem vergonhas em seu humor. Mas, faz isso reformatando o modelo para o espírito de matinê, sem o qual não haveria condições de exibição nos multiplex.

Pode-se ouvir os velhos diálogos com trocadilhos, as frases com duplo sentido (ou apenas o sentido cômico sexual), essa cultura de uma malícia tola dos humorísticos televisivos. Mas é na imagem que a situação piora. Visual sem nenhuma preocupação com o enquadramento, que parece ser opção movida pelo aleatório e não por uma decisão com um mínimo de planejamento. Se tudo parece excessivamente artificial, como se algumas cenas fossem esquetes de programa de auditório, parte da causa é a luz de contrastes atenuados, acentuando a aparência de comédia de estúdio, filmada às pressas e de qualquer jeito. Assim parece. Cada dormitório e ambiente do filme deixa claro ter sido preparado para a filmagem, sem nada trazer de uma biogragia sugerida por aqueles lugares.

A intenção é clara: fazer humor sobre o universo da classe média com um tipo de deboche e de vulgaridade antes presentes nos filmes populares, mas agora sem a selvageria do mau gosto e sem o prazer pela esculhambação das produções carnais da Boca do Lixo. Coisa de Mulher substitui a grosseria autêntica por uma grosseria programada para ser industrializada. Segue a cartilha do pornô verborrágico com pouca atenção aos corpos, já trilhada recentemente por Sexo, Amor e Traição e Os Normais. Ou seja: a novidade do humor no cinema brasileiro é falar de sexo e de adultério com senso de banalidade e tentar nos seduzir sobre a graça dessa cultura do sexo-debate e do sexo-fofoca. Nada mais assexuado.

Nesses casos, o sexo, ao ser tratado como piadinha o tempo todo, infantiliza-se. Falar de sexo seria ali colocado como um sintoma de avanço cultural, quando, na representação desse avanço, temos um retrocesso a um pudor apenas mais desbocado. Normalizar a sexualidade não significa tirar dela qualquer caráter de rompimento e transgressão, como se o encontro entre os corpos tivesse a importância de uma caminhada no quarteirão. Só pelo fato de eleger o sexo como campo de comicidade Coisa de Mulher e seus antecedentes mostram a mentalidade um tanto caipira dessa eleição. É como se, falando “daquilo”, houvesse subversão. E se não há nenhuma subversão, então a comédia, gênero muito vinculado à quebra de uma ordem dada como correta, está aleijada de seu motor. É o caso de Coisa de Mulher – e dos outros casos mencionados.

Não há nem sequer possibilidade de uma insinuação mínima de erotismo, de manifestação do desejo, de verdade das palavras e sentimentos. Trabalha-se apenas em cima de uma mentirinha para ser engraçadinha.Em cima das palavras. O sexo passa a ser mais comentado que praticado entre os personagens e, quando praticado, é menos uma descarga de energia vivida por eles e, em linhas gerais, mais pretexto para repetição de uma intriga (amiga que trai amiga). E essa intriga vai se resolver em mais uma sessão de conversa. Coisa de Mulher prioriza a confissão às ações, o relatório ao prazer.

Estamos em uma aproximação caricata e generalizante com as especificidades da mulher urbana acima dos 30, tratada ali em sua condição de solteira ou encalhada, com uma sexualidade solta demais ou presa em excesso, sempre atrás de auto-aceitação como é em seu mundo. É o mesmo universo de conflitos esvaziados exposto em Sex and the City e Bridget Jones. Para se mostrar a variedade do planeta mulher, trabalha-se em cima de estereótipos diferentes, de modo a se compor, pela soma das diferenças, uma heterogeneidade sintética. Essa heterogeneidade contempla a migrante de sotaque caipira, que vai trabalhar em sex shop e virar inventora de vibradores turbinados, mas também incorpora a lésbica descolada. Cada pessoa é um símbolo de um determinado comportamento e atitude de mulher atual. Ou é para acreditar na autonomia de alguma personagem ali?

Todas querem posar de mulheres comuns: Adriane Galisteu se faz de cabelereira doida para engravidar. Mas essa busca do comum, fake em qualquer sentido, apenas busca tornar o quadro familiar. Cada uma dali pode ser, em versão imbecilizada, reflexo da espectadora. Assim o filme se coloca: não se percebe fascínio ou encanto pelas mulheres em nenhum momento, apenas desprezo e uma visão anedótica, de quem deseja atrair atenção para os personagens pelo patético deles. Esse tratamento difere Coisa de Mulher de Feminices, de Domingos Oliveira, no qual a teatralização da “intimidade em grupo”, longe de emancipar as personagens de seus modelos de comportamento da mulher contemporânea culta e com algum grau de neurose, revela respeito pela diferença homem-mulher, carinho mesmo, sem deixar de estabelecer fronteiras de gênero sexual.

Coisa de Mulher é de outra linha. Sua operação cinematográfica-mercadológica pode servir de objeto para especulações mais amplas. Teria a classe média consumidora de ingressos aderido à chanchada, após décadas de formação audiovisual diante da teledramaturgia carnavalizada , ou o filme estaria mesmo sendo endereçado às classes C/D? Há sentido ainda de se distinguir a separação por classes dos consumidores de filmes diferentes ou essa segmentação econômica-social levaria em conta apenas sutilezas das classes A/B? Partindo de premissa de que toda comédia responde a algo de seu tempo e de sua cultura, sabemos a qual universo se refere e às quais questões reage Coisa de Mulher. Mas a quem se dirige? Essa pergunta insistiu em ecoar pela percepção do crítico em várias passagens.

Coisa de Mulher busca o kitsch, não sem paródia desse kitsch, estabelecendo assim, com seus personagens e situações, uma relação de superioridade debochada, de uma inteligência que, para fazer o “popular-massivo” do atual contexto elitista do consumo de cinema, brinca de ser popularesco mas sem acreditar em sua opção – tampouco brigando criticamente com ela. Temos lá uma fórmula sendo seguida com a convicção e a energia de um burocrata em vias de se aposentar. Se existe uma caça à piada, há desprezo pelo cinema, pela imagem, pelos espaços privados ou compartilhados, pela movimentação dos corpos nesses espaços, pelos cortes, por todos os componentes da forma. Não se trata apenas de um filme feio de se ver, porque, a rigor, o feio pode ser filmado com potência estética. Coisa de Mulher é feio e sorumbático. Estamos em uma linha de produção, a de Diler Trindade, que trata cinema como sapato de segunda. Parece haver uma suposição, nessa estratégia, de que, se é para ter apelo “popular” (mesmo se for para a classe média), qualquer sofisticação tem de ser evitada. A TV Globo faz melhor em qualquer de suas linhas de atuação (novela, série, programas).

E isso não significa que, entre os filmes brasileiros recentemente lançados ou prestes a chegar ao circuito, não haja casos iguais, do mesmo nível, com propostas e ambições diferentes, mas resultados pífios. Em setembro de 2005, por coincidência de agenda de lançamentos, o quadro é desanimador: Gaijin 2, de Tizuka Yamasaki, Sal de Prata, de Carlos Gerbase, Diário de um Novo Mundo, de Paulo Nascimento, Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo. Todos exemplos de um cinema de roteiro ou de produção, sem nenhuma ambição na forma de relação do diretor com seus espaços, com seus seres e com seu mundo dramático. Parecem trabalhos que existem demais antes do set, ou, em outro pólo, ressentem-se de ter um programa estético mínimo. Coisa de Mulher é um deles. Não o pior. Está alinhado com um segmento da produção desse momento.

Cléber Eduardo