A existência de Coisa
de Mulher, dirigido por Eliane Fonseca, nos remete
aos anos 70. Naquela época, antes da televisão ter incorporado
o sexo na teledramaturgia e em seus programas de humor,
a revelação em imagens ou em palavras das atividades
dos corpos, assim como as “provas” de suas belezas,
eram exclusivas de um cinema voltado para centenas de
milhares, e até milhões de espectadores. Podia-se mostrar
esses corpos tomados por disfunção psicológica, ou apenas
na luta por momentos de prazer sem culpa, mas eles ali
estavam a expor os impulsos não civilizados, transformando
esse não civilizado em cultura.
Em pouco mais de 20 anos, sumiram os sinais dessa produção.
Em vez de se mudar o estatuto da representação da sexualidade,
como acontece em um Cidade Baixa, de Sergio Machado,
simplesmente se varreu das telas os encontros físicos.
Coisa de Mulher nos remete a essa questão histórica-cultural
porque, em mais de um momento, o filme nos oferece uma
reedição das pornochanchadas, daquelas bem sem vergonhas
em seu humor. Mas, faz isso reformatando o modelo para
o espírito de matinê, sem o qual não haveria condições
de exibição nos multiplex.
Pode-se ouvir os velhos diálogos com trocadilhos, as
frases com duplo sentido (ou apenas o sentido cômico
sexual), essa cultura de uma malícia tola dos humorísticos
televisivos. Mas é na imagem que a situação piora. Visual
sem nenhuma preocupação com o enquadramento, que parece
ser opção movida pelo aleatório e não por uma decisão
com um mínimo de planejamento. Se tudo parece excessivamente
artificial, como se algumas cenas fossem esquetes de
programa de auditório, parte da causa é a luz de contrastes
atenuados, acentuando a aparência de comédia de estúdio,
filmada às pressas e de qualquer jeito. Assim parece.
Cada dormitório e ambiente do filme deixa claro ter
sido preparado para a filmagem, sem nada trazer de uma
biogragia sugerida por aqueles lugares.
A intenção é clara: fazer humor sobre o universo da
classe média com um tipo de deboche e de vulgaridade
antes presentes nos filmes populares, mas agora sem
a selvageria do mau gosto e sem o prazer pela esculhambação
das produções carnais da Boca do Lixo. Coisa de Mulher
substitui a grosseria autêntica por uma grosseria programada
para ser industrializada. Segue a cartilha do pornô
verborrágico com pouca atenção aos corpos, já trilhada
recentemente por Sexo, Amor e Traição e Os Normais.
Ou seja: a novidade do humor no cinema brasileiro é
falar de sexo e de adultério com senso de banalidade
e tentar nos seduzir sobre a graça dessa cultura do
sexo-debate e do sexo-fofoca. Nada mais assexuado.
Nesses casos, o sexo, ao ser tratado como piadinha o
tempo todo, infantiliza-se. Falar de sexo seria ali
colocado como um sintoma de avanço cultural, quando,
na representação desse avanço, temos um retrocesso a
um pudor apenas mais desbocado. Normalizar a sexualidade
não significa tirar dela qualquer caráter de rompimento
e transgressão, como se o encontro entre os corpos tivesse
a importância de uma caminhada no quarteirão. Só pelo
fato de eleger o sexo como campo de comicidade
Coisa de Mulher e seus antecedentes mostram a mentalidade
um tanto caipira dessa eleição. É como se, falando “daquilo”,
houvesse subversão. E se não há nenhuma subversão, então
a comédia, gênero muito vinculado à quebra de uma ordem
dada como correta, está aleijada de seu motor. É o caso
de Coisa de Mulher
– e dos outros casos mencionados.
Não há nem sequer possibilidade de uma insinuação mínima
de erotismo, de manifestação do desejo, de verdade das
palavras e sentimentos. Trabalha-se apenas em cima de
uma mentirinha para ser engraçadinha.Em cima das palavras.
O sexo passa a ser mais comentado que praticado entre
os personagens e, quando praticado, é menos uma descarga
de energia vivida por eles e, em linhas gerais, mais
pretexto para repetição de uma intriga (amiga que trai
amiga). E essa intriga vai se resolver em mais uma sessão
de conversa. Coisa
de Mulher prioriza a confissão às ações, o relatório
ao prazer.
Estamos em uma aproximação caricata e generalizante
com as especificidades da mulher urbana acima dos 30,
tratada ali em sua condição de solteira ou encalhada,
com uma sexualidade solta demais ou presa em excesso,
sempre atrás de auto-aceitação como é em seu mundo.
É o mesmo universo de conflitos esvaziados exposto em
Sex and the City
e Bridget Jones. Para se mostrar a variedade
do planeta mulher, trabalha-se em cima de estereótipos
diferentes, de modo a se compor, pela soma das diferenças,
uma heterogeneidade sintética. Essa heterogeneidade
contempla a migrante de sotaque caipira, que vai trabalhar
em sex shop e virar inventora de vibradores turbinados,
mas também incorpora a lésbica descolada. Cada pessoa
é um símbolo de um determinado comportamento e atitude
de mulher atual. Ou é para acreditar na autonomia de
alguma personagem ali?
Todas querem posar de mulheres comuns: Adriane Galisteu
se faz de cabelereira doida para engravidar. Mas essa
busca do comum, fake em qualquer sentido, apenas
busca tornar o quadro familiar. Cada uma dali pode ser,
em versão imbecilizada, reflexo da espectadora. Assim
o filme se coloca: não se percebe fascínio ou encanto
pelas mulheres em nenhum momento, apenas desprezo e
uma visão anedótica, de quem deseja atrair atenção para
os personagens pelo patético deles. Esse tratamento
difere Coisa de
Mulher de Feminices,
de Domingos Oliveira, no qual a teatralização da “intimidade
em grupo”, longe de emancipar as personagens de seus
modelos de comportamento da mulher contemporânea culta
e com algum grau de neurose, revela respeito pela diferença
homem-mulher, carinho mesmo, sem deixar de estabelecer
fronteiras de gênero sexual.
Coisa de Mulher é de outra linha. Sua operação
cinematográfica-mercadológica pode servir de objeto
para especulações mais amplas. Teria a classe média
consumidora de ingressos aderido à chanchada, após décadas
de formação audiovisual diante da teledramaturgia carnavalizada
, ou o filme estaria mesmo sendo endereçado às classes
C/D? Há sentido ainda de se distinguir a separação por
classes dos consumidores de filmes diferentes ou essa
segmentação econômica-social levaria em conta apenas
sutilezas das classes A/B? Partindo de premissa de que
toda comédia responde a algo de seu tempo e de sua cultura,
sabemos a qual universo se refere e às quais questões
reage Coisa de Mulher. Mas a quem se dirige?
Essa pergunta insistiu em ecoar pela percepção do crítico
em várias passagens.
Coisa de Mulher busca o kitsch,
não sem paródia desse kitsch, estabelecendo assim,
com seus personagens e situações, uma relação de superioridade
debochada, de uma inteligência que, para fazer o “popular-massivo”
do atual contexto elitista do consumo de cinema, brinca
de ser popularesco mas sem acreditar em sua opção –
tampouco brigando criticamente com ela. Temos lá uma
fórmula sendo seguida com a convicção e a energia de
um burocrata em vias de se aposentar. Se existe uma
caça à piada, há desprezo pelo cinema, pela imagem,
pelos espaços privados ou compartilhados, pela movimentação
dos corpos nesses espaços, pelos cortes, por todos os
componentes da forma. Não se trata apenas de um filme
feio de se ver, porque, a rigor, o feio pode ser filmado
com potência estética. Coisa de Mulher é feio e sorumbático. Estamos em uma linha de produção,
a de Diler Trindade, que trata cinema como sapato de
segunda. Parece haver uma suposição, nessa estratégia,
de que, se é para ter apelo “popular” (mesmo se for
para a classe média), qualquer sofisticação tem de ser
evitada. A TV Globo faz melhor em qualquer de suas linhas
de atuação (novela, série, programas).
E isso não significa que, entre os filmes brasileiros
recentemente lançados ou prestes a chegar ao circuito,
não haja casos iguais, do mesmo nível, com propostas
e ambições diferentes, mas resultados pífios. Em setembro
de 2005, por coincidência de agenda de lançamentos,
o quadro é desanimador: Gaijin
2, de Tizuka Yamasaki, Sal
de Prata, de Carlos Gerbase, Diário
de um Novo Mundo, de Paulo Nascimento, Filhas
do Vento, de Joel Zito Araújo. Todos exemplos de
um cinema de roteiro ou de produção, sem nenhuma ambição
na forma de relação do diretor com seus espaços, com
seus seres e com seu mundo dramático. Parecem trabalhos
que existem demais antes do set, ou, em outro pólo,
ressentem-se de ter um programa estético mínimo. Coisa de Mulher é um deles. Não o pior.
Está alinhado com um segmento da produção desse momento.
Cléber Eduardo
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