Filmado
em duas semanas durante a primavera romana, Claro
se mostra um filme de transição e também
de síntese na obra de Glauber Rocha. Nele se
encontram tanto traços estilísticos de
seus longas de ficção anteriores como
estratégias documentais e intervenções
do próprio cineasta que irão marcar os
documentários Di, Jorjamado no Cinema
(ambos de 1977) e seu quadro no programa Abertura
(entre fevereiro e outubro de 1979).
Ainda que procedimentos de documentário e ficção
se entrelacem ao longo do filme, é possível
dividi-lo em três partes, conforme a abordagem
que cada uma delas privilegia: o tratamento mais documental
na primeira e terceira partes, o tratamento mais ficcional
na segunda. Uma constante, porém, é a
presença em cena da atriz francesa Juliet Berto,
mulher do cineasta na época. Nesse núcleo
ficcional da segunda parte, se concentram os diálogos
e discursos de personagens que funcionam como encarnações
de conceitos sociais, ideológicos, sexuais, psicanalíticos.
Juliet Berto incorpora aqui a figura do intelectual,
ecoando nas suas falas a voz do diretor. Tanto a composição
alegórica dos personagens quanto a opção
em geral pelos planos fixos (ou pela câmera fixa
que se aproxima e recua por meio de zooms) e
o estilo declamatório dos atores remetem aos
longas de ficção que precedem Claro,
sobretudo aos traços estilísticos de O
Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969),
Der Leone Have Sept Cabeças e Cabezas
cortadas (ambos de 1970). Talvez por retornar a
uma concepção de mise-en-scène
e a alegorias políticas já elaboradas
em filmes anteriores, esse núcleo ficcional não
provoca a mesma empolgação das seqüências
documentais, deslumbrantes em seu frescor, inventividade
e beleza.
Na primeira parte, trata-se logo de subverter o apelo
turístico da cidade de Roma. Juliet Berto circula
pelas ruínas romanas e rola pelo chão
diante do Coliseu, enquanto Glauber dá uma ajudinha
empurrando-a com o pé e saltando sobre seu corpo.
A nova atração logo se impõe: os
turistas esquecem as ruínas com seus tantos séculos
de cultura e civilização para fotografar
o casal em atitudes bárbaras. A próxima
parada nesse inusitado city tour é na
praça do Capitólio, dominada pela estátua
do imperador Marco Aurelio, montado em um cavalo. A
voz over de Glauber, que depois aparece falando
para um microfone enquanto caminha entre monumentos,
discorre em italiano sobre "a sede do imperialismo,
fixado aqui debaixo das patas desse cavalo, um cavalo
monstruoso [...] o centro era aqui". Em seguida, na
praça do Vaticano, Berto caminha entre os turistas;
circula entre os desconfiados participantes de um cortejo,
engalanados com figurinos de época; segue os
passos de um religioso (no que é afastada pelos
acompanhantes); e por fim, voltada para a janela de
onde o papa abençoa os fiéis e enquadrada
num plongé que pode bem ser uma subjetiva
do sumo pontífice, abre a boca no tradicional
gesto para receber a hóstia da comunhão.
Concluído o passeio antiturístico por
Roma, têm início as seqüências
ficcionais.
Na terceira parte, volta-se aos cenários romanos,
agora para circular por outros espaços, outras
manifestações. Ao formalismo antiquado
do cortejo visto no Vaticano, se contrapõe a
contemporaneidade de passeatas e comícios comunistas,
além de uma exibição de filmes
em praça pública. Brincando com a bobina
do projetor, Juliet Berto conversa com um dos organizadores,
insistindo na idéia de "cinema manifesto" e citando
cineastas como Straub, Godard, Eisenstein, Visconti.
Outra religião: ao ouvir o nome de Rossellini,
ela faz o sinal da cruz. Numa varanda emoldurada por
plantas, com roupas estendidas num varal ao fundo, Berto
ouve uma moradora contar a história do bairro
pobre em que vive, foco de resistência política.
Entre os casebres da periferia romana, Glauber e Berto
entrevistam moradores, mas ao som de suas vozes se superpõe
a música de Villa-Lobos. Logo também as
imagens aparecem em superposição, formando
uma bela composição polifônica de
sons e imagens.
Depois das ruas, a casa. No apartamento do casal, cheio
de plantas e flores, com uma luminosa janela ao fundo,
Glauber na cadeia de balanço se debruça
para falar ao telefone, saindo de quadro. Ouve discos
brasileiros, manda aumentar a música com gestos
de maestro/diretor. Primeiro se ouve a marchinha "Espanhola"
(1945), de Benedito Lacerda e Haroldo Lobo: "Espanhola
/ Eu quero quero quero ver você sambar / Joga
fora a castanhola / Que eu lhe dou um pandeiro pra brincar
[...]". Sempre gesticulando, manda trocar a música.
Entra "Primavera no Rio" (1934), de João de Barro,
cantada por Carmen Miranda: "Rio, dos meus sonhos dourados
/ Berço dos namorados, cidade da luz [...] Rio,
é cidade-desejo / Tens a ardência de um
beijo em cada arrebol". Continua a falar no telefone,
soltando frases isoladas: "trabalho de massa"... "a
metade do povo é revolucionária"... "claro,
claro"... "a casa, a rua"... "também pode ser
retórico ou dialético". Quando entra o
refrão da música, começa a cantar
junto, segurando o telefone e se divertindo com a cena:
"O Rio amanheceu cantando / Toda a cidade amanheceu
em flor / E os namorados vêm pra rua em bando
/ porque a Primavera é a estação
do amor".
Mais um disco, desta vez Gal Costa cantando "Índia"
(de Manuel Ortiz Guerrero e José Asunción
Flores, versão em português de Jose Fortuna),
com arranjo de Rogério Duprat, na gravação
de 1973. Glauber acende cigarro numa vela, Berto vem
se juntar a ele, fumando quando ele lhe estende o cigarro.
Seus rostos estão parcialmente cobertos, recortados
pela silhueta das flores em primeiro plano. Ainda com
a música, Berto come pétalas de rosas
da mão de Glauber. Na seqüência seguinte,
a última, uma superposição de planos,
com um samba de roda na trilha, mostra detalhes de um
quadro e o rosto de uma mulher com ornamentos orientais.
Entre seu rosto e a câmera, Glauber vai exibindo
exemplares de jornais e revistas, desde fotos e ilustrações
eróticas da Playboy até a capa
da Time com a manchete "The victor", sobre foto
do líder vietnamita Ho Chi Minh (salvo engano),
e uma tarja no canto esquerdo: "The bitter end".
Claro é filme de circulação,
movido pelo fascínio em explorar a permeabilidade
das fronteiras. Glauber desmonta a noção
mais tradicional de centro. Deixa de lado a contraposição
geográfica entre primeiro e terceiro mundo para
reforçar o tanto que existe de contaminação,
de circulação (racial, cultural, ideológica,
amorosa) entre eles. O terceiro mundo invade a
Europa, tanto na miséria da periferia romana,
tão reconhecível para um brasileiro, quanto
na presença de um artista intelectual como Glauber,
transformando Roma em cidade baiana, africana, Rio de
Janeiro na primavera. Enquanto isso, numa inversão
de forças e de probabilidades, um país
de periferia desmonta o império. Em 1975, depois
de ganhar a guerra contra os Estados Unidos, Ho Chi
Minh unifica o país sob um governo comunista.
O centro se pulveriza. Se o capital atravessa continentes,
fazendo de qualquer lugar sua sede, também o
terceiro mundo e a periferia se disseminam e invadem
os redutos do primeiro mundo. "A periferia avança
para o centro", escreve Glauber ao crítico Jean
Louis Bory, que em artigo no Nouvel Observateur
havia considerado Claro "insuportável".
Na Roma que o filme desvenda, vêm à rua
em bando não só os namorados, como na
canção, mas também imigrantes,
turistas, cineastas, proletários, policiais,
comunistas, burgueses, africanos, católicos,
sindicalistas, espectadores...
A própria trajetória de Glauber, circulando
pela América Latina, Europa, África e
Estados Unidos, espelha esse movimento. Não estranha,
portanto, sua presença em cena, assumindo ora
a persona pública, dando declarações
em italiano, ora no posto de repórter que se
torna ele mesmo notícia, ou ainda em situações
domésticas. É a primeira vez, em filme
assinado por ele, que Glauber se coloca diante da câmera.
Claro, no entanto, leva adiante uma experiência
anterior fundamental nesse processo: a participação
do cineasta no documentário português As
Armas e o Povo (1974), realização
coletiva envolvendo diversos diretores, que filmaram
entre o 25 de abril da Revolução dos Cravos
e a celebração do primeiro de maio com
o país livre da ditadura salazarista. Nas cenas
em que dirige e participa, Glauber faz entrevistas durante
a manifestação e se desloca até
um bairro pobre da periferia de Lisboa, onde conversa
e provoca os moradores. São procedimentos e trajetos
que retoma em Claro (surpreende, em particular,
a semelhança nas seqüências filmadas
nas periferias de Roma e Lisboa) e que voltarão
a ser explorados nos documentários posteriores
e no quadro do programa "Abertura".
No deslizamento de fronteiras que o filme articula,
sobressai a seqüência "doméstica",
com Glauber e Juliet Berto em casa, ouvindo discos brasileiros.
São apenas três planos e três músicas
que, no entanto, expressam com excepcional simplicidade
e beleza muitas das idéias que estruturam Claro.
Ao mesmo tempo, a seqüência surpreende pela
singularidade dentro da obra de um cineasta que, apesar
da imensa exposição pública, não
costumava franquear sua intimidade e incorporá-la
como material fílmico. A inserção
da esfera doméstica no filme se afigura como
um possível desdobramento das experiências
com super 8, filmando viagens na companhia de namoradas
e da família: Letícia e Mossa no Marrocos
(1971); Paloma, Paloma (1972), registrando o
encontro em Punta del Este da família Rocha (a
mãe dona Lúcia, a filha Paloma, a irmã
Anecy e o cunhado Walter Lima Junior); imagens da viagem
pelo Egito com Juliet Berto (1974). Essas filmagens
também repercutem em Claro na medida em
que se acompanha as andanças de Glauber e Berto
por Roma, em constante subversão do traçado
e do comportamento turístico tradicional.
No momento doméstico que conjuga a casa e o mundo,
Glauber está em seu apartamento romano, falando
em italiano ao telefone, ouvindo discos brasileiros,
ao lado da esposa francesa, que é também
"chinesa" ("casei com La Chinoise, de Godard",
anuncia aos amigos ) ou ainda "vietnamita", como a atriz
aparece nas encenações pop sobre
o conflito no Vietnã, no mesmo filme de Godard,
portando uma cúpula de abajur à guisa
de chapéu oriental e sob a mira do tigre da Esso
desenhado na parede. As canções tocadas
no aparelho de som só vêm acentuar o embaralhamento
geográfico e de referências culturais.
A marchinha brasileira deseja que a espanhola largue
as castanholas e caia no samba. Nesse filme político
que é vigoroso exercício de "cinema manifesto",
a primavera romana ganha como trilha sonora um hino
às belezas do Rio de Janeiro e ao encantamento
provocado pela estação entre seus moradores:
"Primavera no Rio", canção que faz parte
de um dos números do musical Alô, Alô,
Brasil (Wallace Downey, João de Barro, Alberto
Ribeiro, 1935), gênese das chanchadas combatidas
pelo Cinema Novo em seus primeiros anos. Uma guarânia
paraguaia em recriação tropicalista por
Gal Costa e Rogério Duprat embala o idílio
amoroso do casal, numa espécie de versão
glauberiana das coreografias de flerte e erotismo conduzidas
por Humberto Mauro em seus filmes. Glauber e Juliet
Berto fazem uma encenação particular da
canção paraguaia: a francesa vira índia,
a "flor do meu Paraguai", e seus "lábios de rosa"
comem pétalas que a mão do amado lhe oferece.
Transitando entre documentário e ficção,
político e pessoal, centro e periferia, Glauber
inscreve sua trajetória no fluxo das mudanças
que acontecem pelo mundo. Como todo imperador que se
preze, Glauber não quer nada menos do que conquistar
Roma. Claro é sua vitória.
Luciana Corrêa de Araújo
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