CLARO
Glauber Rocha, Claro, Itália, 1975

Filmado em duas semanas durante a primavera romana, Claro se mostra um filme de transição e também de síntese na obra de Glauber Rocha. Nele se encontram tanto traços estilísticos de seus longas de ficção anteriores como estratégias documentais e intervenções do próprio cineasta que irão marcar os documentários Di, Jorjamado no Cinema (ambos de 1977) e seu quadro no programa Abertura (entre fevereiro e outubro de 1979).

Ainda que procedimentos de documentário e ficção se entrelacem ao longo do filme, é possível dividi-lo em três partes, conforme a abordagem que cada uma delas privilegia: o tratamento mais documental na primeira e terceira partes, o tratamento mais ficcional na segunda. Uma constante, porém, é a presença em cena da atriz francesa Juliet Berto, mulher do cineasta na época. Nesse núcleo ficcional da segunda parte, se concentram os diálogos e discursos de personagens que funcionam como encarnações de conceitos sociais, ideológicos, sexuais, psicanalíticos. Juliet Berto incorpora aqui a figura do intelectual, ecoando nas suas falas a voz do diretor. Tanto a composição alegórica dos personagens quanto a opção em geral pelos planos fixos (ou pela câmera fixa que se aproxima e recua por meio de zooms) e o estilo declamatório dos atores remetem aos longas de ficção que precedem Claro, sobretudo aos traços estilísticos de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), Der Leone Have Sept Cabeças e Cabezas cortadas (ambos de 1970). Talvez por retornar a uma concepção de mise-en-scène e a alegorias políticas já elaboradas em filmes anteriores, esse núcleo ficcional não provoca a mesma empolgação das seqüências documentais, deslumbrantes em seu frescor, inventividade e beleza.

Na primeira parte, trata-se logo de subverter o apelo turístico da cidade de Roma. Juliet Berto circula pelas ruínas romanas e rola pelo chão diante do Coliseu, enquanto Glauber dá uma ajudinha empurrando-a com o pé e saltando sobre seu corpo. A nova atração logo se impõe: os turistas esquecem as ruínas com seus tantos séculos de cultura e civilização para fotografar o casal em atitudes bárbaras. A próxima parada nesse inusitado city tour é na praça do Capitólio, dominada pela estátua do imperador Marco Aurelio, montado em um cavalo. A voz over de Glauber, que depois aparece falando para um microfone enquanto caminha entre monumentos, discorre em italiano sobre "a sede do imperialismo, fixado aqui debaixo das patas desse cavalo, um cavalo monstruoso [...] o centro era aqui". Em seguida, na praça do Vaticano, Berto caminha entre os turistas; circula entre os desconfiados participantes de um cortejo, engalanados com figurinos de época; segue os passos de um religioso (no que é afastada pelos acompanhantes); e por fim, voltada para a janela de onde o papa abençoa os fiéis e enquadrada num plongé que pode bem ser uma subjetiva do sumo pontífice, abre a boca no tradicional gesto para receber a hóstia da comunhão. Concluído o passeio antiturístico por Roma, têm início as seqüências ficcionais.

Na terceira parte, volta-se aos cenários romanos, agora para circular por outros espaços, outras manifestações. Ao formalismo antiquado do cortejo visto no Vaticano, se contrapõe a contemporaneidade de passeatas e comícios comunistas, além de uma exibição de filmes em praça pública. Brincando com a bobina do projetor, Juliet Berto conversa com um dos organizadores, insistindo na idéia de "cinema manifesto" e citando cineastas como Straub, Godard, Eisenstein, Visconti. Outra religião: ao ouvir o nome de Rossellini, ela faz o sinal da cruz. Numa varanda emoldurada por plantas, com roupas estendidas num varal ao fundo, Berto ouve uma moradora contar a história do bairro pobre em que vive, foco de resistência política. Entre os casebres da periferia romana, Glauber e Berto entrevistam moradores, mas ao som de suas vozes se superpõe a música de Villa-Lobos. Logo também as imagens aparecem em superposição, formando uma bela composição polifônica de sons e imagens.

Depois das ruas, a casa. No apartamento do casal, cheio de plantas e flores, com uma luminosa janela ao fundo, Glauber na cadeia de balanço se debruça para falar ao telefone, saindo de quadro. Ouve discos brasileiros, manda aumentar a música com gestos de maestro/diretor. Primeiro se ouve a marchinha "Espanhola" (1945), de Benedito Lacerda e Haroldo Lobo: "Espanhola / Eu quero quero quero ver você sambar / Joga fora a castanhola / Que eu lhe dou um pandeiro pra brincar [...]". Sempre gesticulando, manda trocar a música. Entra "Primavera no Rio" (1934), de João de Barro, cantada por Carmen Miranda: "Rio, dos meus sonhos dourados / Berço dos namorados, cidade da luz [...] Rio, é cidade-desejo / Tens a ardência de um beijo em cada arrebol". Continua a falar no telefone, soltando frases isoladas: "trabalho de massa"... "a metade do povo é revolucionária"... "claro, claro"... "a casa, a rua"... "também pode ser retórico ou dialético". Quando entra o refrão da música, começa a cantar junto, segurando o telefone e se divertindo com a cena: "O Rio amanheceu cantando / Toda a cidade amanheceu em flor / E os namorados vêm pra rua em bando / porque a Primavera é a estação do amor".

Mais um disco, desta vez Gal Costa cantando "Índia" (de Manuel Ortiz Guerrero e José Asunción Flores, versão em português de Jose Fortuna), com arranjo de Rogério Duprat, na gravação de 1973. Glauber acende cigarro numa vela, Berto vem se juntar a ele, fumando quando ele lhe estende o cigarro. Seus rostos estão parcialmente cobertos, recortados pela silhueta das flores em primeiro plano. Ainda com a música, Berto come pétalas de rosas da mão de Glauber. Na seqüência seguinte, a última, uma superposição de planos, com um samba de roda na trilha, mostra detalhes de um quadro e o rosto de uma mulher com ornamentos orientais. Entre seu rosto e a câmera, Glauber vai exibindo exemplares de jornais e revistas, desde fotos e ilustrações eróticas da Playboy até a capa da Time com a manchete "The victor", sobre foto do líder vietnamita Ho Chi Minh (salvo engano), e uma tarja no canto esquerdo: "The bitter end".

Claro é filme de circulação, movido pelo fascínio em explorar a permeabilidade das fronteiras. Glauber desmonta a noção mais tradicional de centro. Deixa de lado a contraposição geográfica entre primeiro e terceiro mundo para reforçar o tanto que existe de contaminação, de circulação (racial, cultural, ideológica, amorosa) entre eles. O terceiro mundo invade a Europa, tanto na miséria da periferia romana, tão reconhecível para um brasileiro, quanto na presença de um artista intelectual como Glauber, transformando Roma em cidade baiana, africana, Rio de Janeiro na primavera. Enquanto isso, numa inversão de forças e de probabilidades, um país de periferia desmonta o império. Em 1975, depois de ganhar a guerra contra os Estados Unidos, Ho Chi Minh unifica o país sob um governo comunista. O centro se pulveriza. Se o capital atravessa continentes, fazendo de qualquer lugar sua sede, também o terceiro mundo e a periferia se disseminam e invadem os redutos do primeiro mundo. "A periferia avança para o centro", escreve Glauber ao crítico Jean Louis Bory, que em artigo no Nouvel Observateur havia considerado Claro "insuportável". Na Roma que o filme desvenda, vêm à rua em bando não só os namorados, como na canção, mas também imigrantes, turistas, cineastas, proletários, policiais, comunistas, burgueses, africanos, católicos, sindicalistas, espectadores...

A própria trajetória de Glauber, circulando pela América Latina, Europa, África e Estados Unidos, espelha esse movimento. Não estranha, portanto, sua presença em cena, assumindo ora a persona pública, dando declarações em italiano, ora no posto de repórter que se torna ele mesmo notícia, ou ainda em situações domésticas. É a primeira vez, em filme assinado por ele, que Glauber se coloca diante da câmera. Claro, no entanto, leva adiante uma experiência anterior fundamental nesse processo: a participação do cineasta no documentário português As Armas e o Povo (1974), realização coletiva envolvendo diversos diretores, que filmaram entre o 25 de abril da Revolução dos Cravos e a celebração do primeiro de maio com o país livre da ditadura salazarista. Nas cenas em que dirige e participa, Glauber faz entrevistas durante a manifestação e se desloca até um bairro pobre da periferia de Lisboa, onde conversa e provoca os moradores. São procedimentos e trajetos que retoma em Claro (surpreende, em particular, a semelhança nas seqüências filmadas nas periferias de Roma e Lisboa) e que voltarão a ser explorados nos documentários posteriores e no quadro do programa "Abertura".

No deslizamento de fronteiras que o filme articula, sobressai a seqüência "doméstica", com Glauber e Juliet Berto em casa, ouvindo discos brasileiros. São apenas três planos e três músicas que, no entanto, expressam com excepcional simplicidade e beleza muitas das idéias que estruturam Claro. Ao mesmo tempo, a seqüência surpreende pela singularidade dentro da obra de um cineasta que, apesar da imensa exposição pública, não costumava franquear sua intimidade e incorporá-la como material fílmico. A inserção da esfera doméstica no filme se afigura como um possível desdobramento das experiências com super 8, filmando viagens na companhia de namoradas e da família: Letícia e Mossa no Marrocos (1971); Paloma, Paloma (1972), registrando o encontro em Punta del Este da família Rocha (a mãe dona Lúcia, a filha Paloma, a irmã Anecy e o cunhado Walter Lima Junior); imagens da viagem pelo Egito com Juliet Berto (1974). Essas filmagens também repercutem em Claro na medida em que se acompanha as andanças de Glauber e Berto por Roma, em constante subversão do traçado e do comportamento turístico tradicional.

No momento doméstico que conjuga a casa e o mundo, Glauber está em seu apartamento romano, falando em italiano ao telefone, ouvindo discos brasileiros, ao lado da esposa francesa, que é também "chinesa" ("casei com La Chinoise, de Godard", anuncia aos amigos ) ou ainda "vietnamita", como a atriz aparece nas encenações pop sobre o conflito no Vietnã, no mesmo filme de Godard, portando uma cúpula de abajur à guisa de chapéu oriental e sob a mira do tigre da Esso desenhado na parede. As canções tocadas no aparelho de som só vêm acentuar o embaralhamento geográfico e de referências culturais. A marchinha brasileira deseja que a espanhola largue as castanholas e caia no samba. Nesse filme político que é vigoroso exercício de "cinema manifesto", a primavera romana ganha como trilha sonora um hino às belezas do Rio de Janeiro e ao encantamento provocado pela estação entre seus moradores: "Primavera no Rio", canção que faz parte de um dos números do musical Alô, Alô, Brasil (Wallace Downey, João de Barro, Alberto Ribeiro, 1935), gênese das chanchadas combatidas pelo Cinema Novo em seus primeiros anos. Uma guarânia paraguaia em recriação tropicalista por Gal Costa e Rogério Duprat embala o idílio amoroso do casal, numa espécie de versão glauberiana das coreografias de flerte e erotismo conduzidas por Humberto Mauro em seus filmes. Glauber e Juliet Berto fazem uma encenação particular da canção paraguaia: a francesa vira índia, a "flor do meu Paraguai", e seus "lábios de rosa" comem pétalas que a mão do amado lhe oferece.

Transitando entre documentário e ficção, político e pessoal, centro e periferia, Glauber inscreve sua trajetória no fluxo das mudanças que acontecem pelo mundo. Como todo imperador que se preze, Glauber não quer nada menos do que conquistar Roma. Claro é sua vitória.


Luciana Corrêa de Araújo