A LUTA PELA ESPERANÇA
Ron Howard, Cinderella Man, EUA, 2005

Se for verdadeira a máxima de Jean Baudrillard de que nada, na pós-modernidade, desaparece pela ausência, apenas pelo excesso, então a nova parceria entre o bom moço Ron Howard e o ogro Russell Crowe está fadada ao esquecimento. Isso porque A Luta pela Esperança não passa de mais um exemplo, dentre tantos outros, de mediocridade cinematográfica: a enésima versão – excessiva e desnecessária – da paixão de Cristo, em que o herói sofredor e messiânico, o boxeur James Braddock, serve de inspiração para a combalida América pós-Depressão. Esta, apesar de todas as injustiças que sofre, precisa se manter, como seu modelo, subserviente e covarde em relação às classes abastadas.

James Braddock é irlandês e, em conseqüência, católico. A Luta pela Esperança, além de cristão como o boxeador, também é americano, pois acredita com fervor cego no ideário que construiu a nação. Duas seqüências são representativas das intenções de Ron Howard: na primeira, Braddock repreende seu filho por ter roubado comida, embora passassem fome; na segunda, a turba de miseráveis se reúne na igreja para rezar por seu campeão durante a luta com Max Baer, que decide o título mundial dos pesos pesados. De um lado, a fé no sagrado direito de propriedade, no individualismo e nas instituições do país (personificadas na figura paternal do presidente Franklin Delano Roosevelt); de outro, a crença de que, para os pobres e desempregados, a “salvação” se encontra no processo identificatório da massa excluída com o herói abnegado que, através da indústria de entretenimento tão cara aos EUA (e à Hollywood), sacrifica-se por ela, de maneira que, sem o pão, mas com o circo, faça-a se esquecer das lutas pelos direitos civis que a própria Constituição lhe garante.

O cineasta, de fato, não tem vergonha em contrapor as batalhas solitárias do boxeador pelos filhos e pela esposa à participação de Mike Wilson, companheiro do protagonista nas docas onde trabalham, no movimento sindical. Se tenciona desqualificar os atos e os discursos políticos do personagem de Paddy Considine, representado como um beberrão que, devido à crise, atravessa dificuldades com a família. Ron Howard almeja a qualquer custo despolitizar a narrativa. Não por acaso, as seqüências iniciais de A Luta pela Esperança cortam diretamente da vida abastada dos Braddock antes de 1929 para a penúria dos tempos da Depressão, omitindo de forma deliberada os mecanismos econômicos, políticos e sociais que levaram os EUA à bancarrota. Criticar a irresponsabilidade do capitalismo americano, propulsor da crise que se abateu sobre o país, não vem ao caso, assim como está fora de questão revoltar-se contra os ricaços que lucram com a miséria generalizada: mesmo com o filho à beira da morte, Jim Braddock humilha-se frente à comissão de boxe que lhe tirou o direito de lutar, pedindo-lhes esmolas para pagar a conta da calefação.

Como bem observa Joe Gould, em momento de rara lucidez do filme, é irritante a mania do herói de sempre se desculpar, com o rabo entre as pernas. Por diversas vezes, o boxeador declara que não pode enfrentar inimigos que não consegue ver (em referência ao caos em que subsiste) – no entanto, ele é capaz de entrar no ringue contra os piores adversários, a fim de sustentar a família. Com a motivação centrada na célula primordial da sociedade burguesa, A Luta pela Esperança renega a conscientização coletiva e a revolta organizada proposta por Mike Wilson e abraça a luta solitária e apolítica do personagem principal, já que se pretende deslocar as tensões do meio social, potencialmente explosivo, para a segurança do ringue de boxe, ambiente controlado onde possíveis agentes revolucionários se transformam em meros espectadores das façanhas do “homem comum” que, pelo talento e pelo próprio esforço, não somente se torna campeão do mundo, como também retorna e se adequa ao seio da comunidade que antes o havia expulsado.

Expoente da competitividade e da eficiência do trabalhador norte-americano, Jim Braddock nunca age, somente espera, passivo tal qual o cordeiro cristão, mas contando sempre com a benevolência do centro do poder (mesmo que, para tanto, acabe por se legitimar toda sorte de interesses escusos dos empresários do boxe). Para o herói, os adversários não são a classe dirigente, a crise econômica, o desemprego, a pobreza, as injustiças, e sim Max Baer, que o diretor retrata como máquina de matar que prima pela arrogância. Enquanto Braddock luta pela família, Baer o faz pela fama e pelo sexo. Ou seja: está-se diante do velho processo melodramático de santificar o mocinho e de demonizar o bandido, ao se ressaltar as diferenças que os separam. Se um poupa, o outro esbanja; se o primeiro aponta para a dedicação e para a humildade, o segundo se pauta pela ambição; se o desafiante é católico, o campeão é judeu (apela-se realmente para o anti-semitismo ao longo do filme). Aliado ao sentimentalismo comum à obra do cineasta, que se materializa em A Luta pela Esperança na onipresente música piegas de Thomas Newman, nos planos em câmera lenta dos combates e nas lições de moral presentes em cada diálogo, também há o “requinte” de se inserir flashes, planos curtíssimos com imagens captadas em vídeo, toda vez que o herói pensa na esposa e nos filhos, como se Ron Howard incorporasse Oliver Stone para filmar a novela das oito.

A Luta pela Esperança, enfim, apenas retrabalha o tema da segunda chance, a saga do underdog que, ao vencer na vida pelos próprios méritos e pela força de vontade, retorna feliz à sociedade que antes o desprezara. Trata-se de ver o epílogo do filme, que mostra como James Braddock, depois de perder o título para Joe Louis, tornou-se cidadão útil, respeitado – e dócil, sempre dócil, como um cordeirinho.

Paulo Ricardo de Almeida