Se
for verdadeira a máxima de Jean Baudrillard de que nada,
na pós-modernidade, desaparece pela ausência, apenas
pelo excesso, então a nova parceria entre o bom moço
Ron Howard e o ogro Russell Crowe está fadada ao esquecimento.
Isso porque A Luta pela Esperança não passa de
mais um exemplo, dentre tantos outros, de mediocridade
cinematográfica: a enésima versão – excessiva e desnecessária
– da paixão de Cristo, em que o herói sofredor e messiânico,
o boxeur James Braddock, serve de inspiração
para a combalida América pós-Depressão. Esta, apesar
de todas as injustiças que sofre, precisa se manter,
como seu modelo, subserviente e covarde em relação às
classes abastadas.
James Braddock é irlandês e, em conseqüência, católico.
A Luta pela Esperança, além de cristão como o
boxeador, também é americano, pois acredita com fervor
cego no ideário que construiu a nação. Duas seqüências
são representativas das intenções de Ron Howard: na
primeira, Braddock repreende seu filho por ter roubado
comida, embora passassem fome; na segunda, a turba de
miseráveis se reúne na igreja para rezar por seu campeão
durante a luta com Max Baer, que decide o título mundial
dos pesos pesados. De um lado, a fé no sagrado direito
de propriedade, no individualismo e nas instituições
do país (personificadas na figura paternal do presidente
Franklin Delano Roosevelt); de outro, a crença de que,
para os pobres e desempregados, a “salvação” se encontra
no processo identificatório da massa excluída com o
herói abnegado que, através da indústria de entretenimento
tão cara aos EUA (e à Hollywood), sacrifica-se por ela,
de maneira que, sem o pão, mas com o circo, faça-a se
esquecer das lutas pelos direitos civis que a própria
Constituição lhe garante.
O cineasta, de fato, não tem vergonha em contrapor as
batalhas solitárias do boxeador pelos filhos e pela
esposa à participação de Mike Wilson, companheiro do
protagonista nas docas onde trabalham, no movimento
sindical. Se tenciona desqualificar os atos e os discursos
políticos do personagem de Paddy Considine, representado
como um beberrão que, devido à crise, atravessa dificuldades
com a família. Ron Howard almeja a qualquer custo despolitizar
a narrativa. Não por acaso, as seqüências iniciais de
A Luta pela Esperança cortam diretamente da vida
abastada dos Braddock antes de 1929 para a penúria dos
tempos da Depressão, omitindo de forma deliberada os
mecanismos econômicos, políticos e sociais que levaram
os EUA à bancarrota. Criticar a irresponsabilidade do
capitalismo americano, propulsor da crise que se abateu
sobre o país, não vem ao caso, assim como está fora
de questão revoltar-se contra os ricaços que lucram
com a miséria generalizada: mesmo com o filho à beira
da morte, Jim Braddock humilha-se frente à comissão
de boxe que lhe tirou o direito de lutar, pedindo-lhes
esmolas para pagar a conta da calefação.
Como bem observa Joe Gould, em momento de rara lucidez
do filme, é irritante a mania do herói de sempre se
desculpar, com o rabo entre as pernas. Por diversas
vezes, o boxeador declara que não pode enfrentar inimigos
que não consegue ver (em referência ao caos em que subsiste)
– no entanto, ele é capaz de entrar no ringue contra
os piores adversários, a fim de sustentar a família.
Com a motivação centrada na célula primordial da sociedade
burguesa, A Luta pela Esperança renega a conscientização
coletiva e a revolta organizada proposta por Mike Wilson
e abraça a luta solitária e apolítica do personagem
principal, já que se pretende deslocar as tensões do
meio social, potencialmente explosivo, para a segurança
do ringue de boxe, ambiente controlado onde possíveis
agentes revolucionários se transformam em meros espectadores
das façanhas do “homem comum” que, pelo talento e pelo
próprio esforço, não somente se torna campeão do mundo,
como também retorna e se adequa ao seio da comunidade
que antes o havia expulsado.
Expoente da competitividade e da eficiência do trabalhador
norte-americano, Jim Braddock nunca age, somente espera,
passivo tal qual o cordeiro cristão, mas contando sempre
com a benevolência do centro do poder (mesmo que, para
tanto, acabe por se legitimar toda sorte de interesses
escusos dos empresários do boxe). Para o herói, os adversários
não são a classe dirigente, a crise econômica, o desemprego,
a pobreza, as injustiças, e sim Max Baer, que o diretor
retrata como máquina de matar que prima pela arrogância.
Enquanto Braddock luta pela família, Baer o faz pela
fama e pelo sexo. Ou seja: está-se diante do velho processo
melodramático de santificar o mocinho e de demonizar
o bandido, ao se ressaltar as diferenças que os separam.
Se um poupa, o outro esbanja; se o primeiro aponta para
a dedicação e para a humildade, o segundo se pauta pela
ambição; se o desafiante é católico, o campeão é judeu
(apela-se realmente para o anti-semitismo ao longo do
filme). Aliado ao sentimentalismo comum à obra do cineasta,
que se materializa em A Luta pela Esperança na
onipresente música piegas de Thomas Newman, nos planos
em câmera lenta dos combates e nas lições de moral presentes
em cada diálogo, também há o “requinte” de se inserir
flashes, planos curtíssimos com imagens captadas em
vídeo, toda vez que o herói pensa na esposa e nos filhos,
como se Ron Howard incorporasse Oliver Stone para filmar
a novela das oito.
A Luta pela Esperança, enfim, apenas retrabalha
o tema da segunda chance, a saga do underdog
que, ao vencer na vida pelos próprios méritos e pela
força de vontade, retorna feliz à sociedade que antes
o desprezara. Trata-se de ver o epílogo do filme, que
mostra como James Braddock, depois de perder o título
para Joe Louis, tornou-se cidadão útil, respeitado –
e dócil, sempre dócil, como um cordeirinho.
Paulo Ricardo de Almeida
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