CABEÇAS CORTADAS
Glauber Rocha, Cabezas cortadas, Espanha, 1970

Em janeiro de 1971, na Universidade de Columbia, Glauber Rocha expõe sua Estetyka do sonho. Ao tentar se aproximar do conceito que definiria o que seria uma autêntica obra de arte revolucionária, uma clara oposição se faz presente: desrazão/revolução versus razão/opressão. O sonho e a imaginação são por definição os elementos que fazem o homem sair de sua inércia e de sua letargia. São os acionadores de uma postura que aguçará seu ímpeto de transformar a realidade absurda que o aprisiona. Portanto, sonho e irracionalidade são ferramentas libertadoras capazes de ultrapassar a razão opressora burguesa. As primeiras vanguardas do pensamento se resultaram infrutíferas porque insistiam em responder à razão opressiva com a razão revolucionária. A única maneira de instaurar a configuração de um novo signo revolucionário é a junção do verdadeiro artista revolucionário - que obrigatoriamente precisa estar completamente desvencilhado da cultura e da razão burguesas - com as estruturas da cultura popular.

Esses preceitos, delineados nesse momento sob o formato de conferencia, meses antes estavam sendo minuciosamente experimentados na prática. Essa experiência chama-se Cabeças Cortadas. Como o próprio título anuncia: é preciso arrancar o que produz a razão para assim fazer fluir o que ela é incapaz de mostrar. E não há nada mais naturalmente distante e diametralmente oposto de um sistema racional do que a realidade latino-americana. Díaz II (Paco Rabal) é um típico ditador latino-americano - fusão de Perón e Fulgêncio Baptista com algumas pitadas de Franco - que em seu exílio espanhol vive atormentado com as sombras de seu passado. Na primeira seqüência após os créditos, Díaz está em um suntuoso salão estabelecendo ao mesmo tempo duas conversas telefônicas, uma oficial e outra afetiva. Uma vez que ele está completamente imerso em seu passado na longínqua El dorado e se vê preso em uma teia onde não é possível sentir a brisa de um esboço de futuro, os dois diálogos sugerem sua preocupação em reestruturar o passado e a história. Na primeira conversa, Díaz ordena a Freddy Bull que aplique o capital da venda das plantações de cacau e café na criação de uma associação cultural com o seu nome e que providencie a sua biografia e a construção de sua estátua. Na outra, pergunta à amiga Alba se as pessoas ainda visitam o túmulo da esposa aos domingos. A tentativa de preservação da memória se aproxima com um desejo de reparo: o convite a um filosofo que foi expulso de El Dorado para retornar ao país e a solicitação da publicação da obra literária de um amigo que acabou de morrer. Em certo momento, as duas conversas se misturam a ponto de se transformar em uma só. O ditador repetidamente troca os telefones e diz para Alba o que estava destinado à Freddy e vice versa. No meio de sua verborragia delirante e de sua confusão mental, em que o receptor da mensagem pouco importa, o sentimento que se estende linearmente é a nostalgia, sensação também evocada na seqüência dos créditos. Em um plano geral se vê um castelo medieval - provável residência de Díaz II - ao som de Alla en el rancho grande. A alegre canção mexicana diz : Allá en el rancho grande/ allá donde vivía/ había una rancherita que alegre me decía/ que alegre me decía.

Repetindo o procedimento antes adotado em Deus e o Diabo na Terra do Sol e em O dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Glauber utiliza ao longo de Cabeças Cortadas músicas não-diegéticas para comentar os acontecimentos/sensações. Somado a esse recurso estilístico, a banda sonora não economiza em realçar o universo de uma Espanha em ruínas onde uma série de símbolos hispânicos e hispano-americanos flutuam continuamente com timbres e sonoridades condizentes com esse repertório. Em um mesmo caldo sonoro encontramos músicas medievais/renascentistas espanholas, tangos e ritmos afro-caribenhos. A operação cultural aqui efetivada é peculiar. Em entrevista presente no material de divulgação de Cabeças cortadas na época de seu lançamento comercial no Brasil (1979), Glauber diz que dificilmente poderia ter inventado as mesmas imagens ou ter montado as mesmas imagens com os mesmos sons em um outro país europeu. Nos países europeus desenvolvidos e industrializados, a presença da arte popular camponesa foi absorvida pela sociedade de consumo. O aspecto figurativo de Cabeças Cortadas é diretamente extraído da tradição popular. Como pôde explicitar na Estetyka do sonho, Glauber pretendia sair totalmente da concepção burguesa de cultura e filtrar de maneira consciente o repertório popular - leia-se revolucionário - de diferentes pontos do globo. Para o autor as pedras de Cadaques, onde também fora rodado A Idade de Ouro (Luís Buñuel, 1930), não é muito diferente de Monte Santo. O grupo de camponeses na seqüência em que o Pastor (Pierre Clémenti) restitui a visão a um cego, momento que lembra Simón del desierto (Buñuel, 1965), também não é muito diferente dos romeiros de Sebastião de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

A tecelagem desse paideuma em que a linguagem das massas - universal porque popular - se mistura com o berço da civilização ibérica automaticamente absorve a tradição surrealista espanhola. A relação estabelecida entre Cabeças Cortadas e A Idade de Ouro transcende o fato dos filmes terem usado a mesma locação. Há no filme espanhol de Glauber Rocha a intenção de dar continuidade à tradição simultaneamente iniciada e terminada por Buñuel em A Idade de Ouro. Há aqui o mesmo ímpeto, a mesma ambiência e a mesma operação. A iconografia de Salvador Dalí igualmente é evocada. Díaz II de frente para o mar empunha um imenso relógio - dialogo com a tela A persistência da memória - logo depois aproxima de seu rosto um ovo. A magnífica seqüência em que os servos do ditador lavam os pés de seu mestre com sangue segue o mesmo diapasão referencial. Essa cena é de uma beleza monumental. Em seu início, Díaz está em cima da ruína dirigindo a execução do conjunto musical que está no pátio do castelo. A reiteração da melodia é constante e emana uma aclimatação ritualística-solene ao mesmo tempo sóbria e delirante. Soma-se ao quadro a forma dos músicos e o desenho dos instrumentos musicais, sublinhando-se as linhas do violoncelo, que ao se infiltrar na paisagem/pintura medievalista engrandece esse momento único, talvez um dos pontos mais altos do filme.

Os espaços do castelo em escombros de Cabeças Cortadas terminam no terraço do palácio de governo de Terra em Transe filmados no Parque Lage e vice-versa. As duas locações formam um círculo contínuo. Díaz e Díaz II. Paulo Autran e Paco Rabal. O populista sendo coroado vitorioso e o ditador decadente no exílio. Ópera polifônica barroca e mosaico surrealista medieval hispano-americano. Pastor-Pierre Clémenti segurando uma foice cortando cabeças e fazendo milagres é a equivalência de Corisco e Paulo Martins. Pastor é o revolucionário que é e que traz a morte. Falando Sânscrito, uma língua morta indecifrável, ele faz o mendigo aleijado faminto andar. Dulcinéa é a mesma santa de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (Rosa Maria Peña). Quando ela é coroada pelo Pastor, os camponeses/romeiros/heróis revolucionários de Leão de Sete Cabeças cantam a manutenção da fé, essa enfermidade tão horrível.

Enfermidade que, ausente, pode causar a morte.


Estevão Garcia