Tom
e Jerry feminista. Mas sem graça e sem feminilidade.
É uma tensão clássica a que dá substância ao filme A
Sogra, comédia dirigida por Robert Luketic: se confrontam
"pre-matrimonialmente" um dos futuros cônjuges
e seu futuro sogro ou sogra. O assunto classicamente,
nas entrelinhas dessa tensão, é um ritual de ingresso
e, em outra instância, de aprovação. Questão de revestimento
burguês por excelência, ainda que com sua ressonância
tribal, esse ritual parte de uma situação que apresenta
um frágil herói em primeiro plano. É ele, consumido
por um mecanismo familiar estranho e opressor, que,
com sua voz abafada em terreno pouco amistoso, enfrenta
uma espécie de prova-pesadelo de contornos domésticos.
O que está em jogo é participar e se firmar como signatário
do pacto institucional que estrutura esse núcleo familiar,
ainda que não dê muita importância a ele ou o que realmente
importe seja apenas a criação de seu próprio núcleo.
Em A Sogra, a personagem, vivida por Jennifer
Lopez, é composta com esse requinte: sozinha, perdeu
a família em um desastre. O par, filho dos "sogros",
geralmente é o bonzinho inconsciente em relação a esse
ritual de provação ou de brutal tentativa de expulsão.
É manequim surdo e cego dos pais, idealizados como pessoas
do bem, às vezes meio antiquadas, ou simplesmente coloridos
por particularidades que não implicam em estragos maiores
(Entrando Numa Fria). Trata-se, portanto, de
uma tensão que pode se configurar em qualquer linguagem
de cinema, mas especialmente na comédia, e o que temos
em A Sogra é um jogo dramático que se sustenta
basicamente nela (mocinho e mocinha passam por 15 minutos
de desencontros, ela passeia com cachorros na praia,
ele é mordido por um deles, os dois se apaixonam).
Contudo, eis que nos deparamos, antes de tudo, com uma
fábula de canibalismo feminino. A tessitura cômica desse
material terá origem na mútua perseguição, estilo "Tom
e Jerry", entre sogra (Fonda, interpretando Viola,
ou Tom) e a futura nora (Jennifer Lopez, interpretando
Charlie, ou Jerry). A figura do par, ou o noivo, Michael
Vartan (doutor Kevin), macho escultural e dono de arquitetura
moral impecável, médico de qualificação técnica, nobreza
e doçura em pleno equilíbrio, no caso, não é inconsciente
apenas dos atos de boicote da mãe ultraprotetora. É
também em relação aos da noiva, pois o que se pavimenta
(embora a narrativa nos diga, desde o primeiro momento,
que a princesa Lopez tem de "pegar em armas"
com direito e motivos íntegros, pois sua sogra é uma
predadora imoral) é uma conspiração de duas escalas.
Uma guerra alimentada por ambos os lados. As duas tramam,
ofensiva ou defensivamente.
Kevin, por fim, não é o manequim, cúmplice da tirania
de seus pais. É um fantoche animado das duas partes.
Um fantoche que será acarinhado e manipulado em favor
das dores e dos empreendimentos de batalha, vernizados
pela preparação formal de um casamento, tanto de uma
quanto da outra. Ele é, em última análise, um anômalo
bibelô: uma entidade sagrada. Objeto de adoração e veneração,
alienado da guerra gerada à sua volta e por sua causa.
O que o filme apresenta, portanto, não é apenas essa
fábula de canibalismo feminino. É, antes, uma atualização
de feminismo em sua face mais débil, mesquinha e autodesmoralizante.
A Sogra deixa vazar por cada fenda de seu roteiro
a idéia do homem como "construção" pura e
devotável, um deus pueril de corpo grego, mas manuseável
como títere por uma instância feminina, sexual ou maternal
(mãe, Viola, e noiva, Charlie, na verdade se revezam
em cada uma dessas funções), essa sim regente do mundo.
Regente de tudo. Ele não é mais que um deus passivo
e ignorante da densidade real de seu universo, mais
ou menos assim.
É um feminismo, esse do filme, que acaba morrendo em
si mesmo, pois as mulheres filmadas são em tudo desprovidas
de feminilidade: renegam-na para se dedicar integralmente
a seus projetos de afirmação e vigilância, familiar,
afetiva e matrimonial. Repudiam o afloramento de qualquer
instinto que não esteja associado às estratégias da
sabotagem. Parecem ser tragadas pela câmera na candura
ou no mau odor diabólico, mas nunca de fato como mulheres
– em de forma safada, nem de forma idílica.
Nesse ambiente de feminismo canhestro, dessexualizado,
muito pouco se salva cinematograficamente: a construção
cômica ancora-se em princípios e fórmulas tão canhestras,
e batidas, quanto esse feminismo. As gags no
modelo "Tom e Jerry" não fazem muito além
de evocar um depósito de sucatas da comédia americana
corporal (até Hitch, não tanto uma comédia corporal
e tão recente, parece ser imitado, numa cena de alergia
extrema). O ritmo da perseguição é pastelônico e novelesco
em seus melhores planos, mesmo esses raquíticos no sentido
de criação de uma atmosfera cômica. Parece tudo parte
de um jogo de cinema marcado, no qual a perplexidade
das personagens é tão fraudulenta em sua histeria quanto
são inofensivos seus métodos de competição. Inofensivos,
também, do ponto de vista cinematográfico, pois tudo
parece "jogado" de antemão - não exatamente
encenado, integrado, ou desintegrado, no quadro de um
jeito ou de um outro.
Total é a falta de preocupação do diretor em escapar
do banal ou trabalhar criativamente o humor de seu filme.
O que prevalece é um registro de "risada automática",
sem intensidade, para ir levando o publico enquanto
se coloca em cena duas estrelas, dois símbolos sexuais
femininos de geração, aqui assexuados, digladiando-se.
Restam as piadas que nascem do cinismo de Viola - fazendo
a teatral vítima - e de sua relação contraditória com
uma ácida escudeira: a funcionária negra, conselheira
e ao mesmo tempo fiscal da conduta da chefe, o que garante
sutis momentos de uma inversão da lógica racial: a empregada
negra açoitando a chefe branca cheia de si. Nada distante,
no entanto, de um equacionismo de padrões já inventados
e reinventados por, sabe-se lá, quantos milhões de séries
de televisão.
Outras piadas surgem de uma pasmada Fonda diante de
um mundo que, abruptamente, mudou. Uma das temáticas
exploradas pelo filme é a do utilitarismo selvagem que
molda a máquina audiovisual dos EUA: Viola, uma espécie
de Hebe americana, mais elegante e com sua grife mais
associada a uma idéia de credibilidade jornalística,
um dia acorda e descobre-se excluída do elenco de apresentadores
de sua emissora. Fica claro o tom de acirrado conflito
de gerações - um dos pontos que, psicanaliticamente,
determinarão a ojeriza de Viola em relação à nora. Fica
claro sobretudo quando o filme vai, em seu início, povoando
esse universo televisivo, antes dominado por Viola,
com um exército de mulheres simbólicas de um "novo"
formato: anabolizadas, plastificadas, chapadas intelectual
e corporalmente; vulgarmente frívolas. Todas odiadas
por Fonda.
Esse novo contexto de vazio, reformado em hábitos e
em expedientes industriais da máquina de comunicação,
abala a personagem de Fonda e leva-a a um surto. Irônico
é notarmos que a agenda de encenação do filme parte
desse mesmo pragmatismo da TV americana que incendeia
o enredo e mobiliza as ações terroristas de sua personagem.
Da instância mais externa (promoção) àquela mais interiorizada,
tudo aquilo que esteticamente constitui A Sogra
obedece a um programa de pragmatismo de mercado para
um produto cômico-ameno, suave, que tem de dar certo,
provocar o barulho certo, calculado. Perto do final,
o roteiro contempla a idéia de que as gerações vão sempre
se repetir. Herdarão uma da outra o conservadorismo
e, conseqüentemente, o "gene" de hostilização
aos mais novos que ameaçam a continuidade de suas doutrinas.
Moral que afirma, em outras palavras, que Charlie (Lopez)
um dia poderá ser Viola (Fonda).
O mesmo roteiro sugere a possibilidade, cujo embrião
é um certo discurso populista dos anos 30, de que o
status do mundo sistemático das aparências e dos complexos
capitalistas de entretenimento, no caso o mundo da própria
máquina audiovisual, encantada por dinheiro e glamour,
é agente de deterioração das almas. A safadinha maconheira
e gente fina de Woodstock (a personagem de Fonda, situada
assim), via luxuosa carreira trilhada naquele ambiente,
foi infectada e transformou-se lentamente nesse zumbi
reacionário, de valores supérfluos, policial do ninho
do filho e, como as menininhas que odeia, uma mulher,
em tudo, fútil. Esse painel não deixa de soar como piada
do filme para si mesmo. Se o trajeto de Viola é o de
esconder aquilo que realmente é - um ser, embora redimido
e aceito em seus desvios rumo ao final, de contornos
idênticos aos das meninas frívolas que a aterrorizam
- certa camada oficial da comédia de hoje - da qual
A Sogra é boa representante -, em sua limpeza
dramatúrgica para lidar com o humor - em seu desencanto
cênico - tenta esconder também a contradição de um corpo
falido, inanimado, mas camuflado em uma maquiagem de
felicidade, graça.
Se esse filme é um filme decididamente sobre Viola,
estabelecendo com sua personagem um forte paralelismo,
isso vem muito mais de uma melancolia do que de qualquer
qualidade de sentido relacionada à comicidade. A
Sogra exprime uma alegria artificial e anestesiada
em uma certa impotência, uma alegria triste mesmo. Uma
radiante felicidade mórbida de produto esgotado em si
mesmo, réplica de um modelo de significados cômicos
cada vez mais inofensivos e mais esgotados neles mesmos:
reciclados em uma lógica tal que o objetivo parece ser
o de se comunicar com zumbis (supostamente o público,
no caso). Um filme de, não por acaso, cenografia, luz,
câmera e texto zumbis, como se não existisse dentro
dele um mundo vivo.
Já existiram obras mais horrorosas, se o funcionamento
de certa produção cômica americana sempre foi a da sintetização
de paradigmas ou da clonagem rasa do que dá certo uma
temporada antes. E é verdade também que essa mesma comédia
vive grande fase com as aventuras de estilo e hedonismo
de Ben Stiller, Adam Sandler, Irmãos Farrelly, Irmãos
Wilson, Wes Anderson e até Richard Linklater. Muitos
deles proporcionando, em seu laboratório, uma problematização
sobre a própria idéia de reciclagem (acompanhada da
de contaminação) do cinema americano no qual se filiam,
diga-se. Mas também não deixa de ser interessante notar
que A Sogra é tão documental em seu tempo quanto
os trabalhos desses autores.
Claudio Szynkier
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