A SOGRA
Robert Luketic, Monster-in-law, EUA, 2005

Tom e Jerry feminista. Mas sem graça e sem feminilidade.

É uma tensão clássica a que dá substância ao filme A Sogra, comédia dirigida por Robert Luketic: se confrontam "pre-matrimonialmente" um dos futuros cônjuges e seu futuro sogro ou sogra. O assunto classicamente, nas entrelinhas dessa tensão, é um ritual de ingresso e, em outra instância, de aprovação. Questão de revestimento burguês por excelência, ainda que com sua ressonância tribal, esse ritual parte de uma situação que apresenta um frágil herói em primeiro plano. É ele, consumido por um mecanismo familiar estranho e opressor, que, com sua voz abafada em terreno pouco amistoso, enfrenta uma espécie de prova-pesadelo de contornos domésticos. O que está em jogo é participar e se firmar como signatário do pacto institucional que estrutura esse núcleo familiar, ainda que não dê muita importância a ele ou o que realmente importe seja apenas a criação de seu próprio núcleo.

Em A Sogra, a personagem, vivida por Jennifer Lopez, é composta com esse requinte: sozinha, perdeu a família em um desastre. O par, filho dos "sogros", geralmente é o bonzinho inconsciente em relação a esse ritual de provação ou de brutal tentativa de expulsão. É manequim surdo e cego dos pais, idealizados como pessoas do bem, às vezes meio antiquadas, ou simplesmente coloridos por particularidades que não implicam em estragos maiores (Entrando Numa Fria). Trata-se, portanto, de uma tensão que pode se configurar em qualquer linguagem de cinema, mas especialmente na comédia, e o que temos em A Sogra é um jogo dramático que se sustenta basicamente nela (mocinho e mocinha passam por 15 minutos de desencontros, ela passeia com cachorros na praia, ele é mordido por um deles, os dois se apaixonam).

Contudo, eis que nos deparamos, antes de tudo, com uma fábula de canibalismo feminino. A tessitura cômica desse material terá origem na mútua perseguição, estilo "Tom e Jerry", entre sogra (Fonda, interpretando Viola, ou Tom) e a futura nora (Jennifer Lopez, interpretando Charlie, ou Jerry). A figura do par, ou o noivo, Michael Vartan (doutor Kevin), macho escultural e dono de arquitetura moral impecável, médico de qualificação técnica, nobreza e doçura em pleno equilíbrio, no caso, não é inconsciente apenas dos atos de boicote da mãe ultraprotetora. É também em relação aos da noiva, pois o que se pavimenta (embora a narrativa nos diga, desde o primeiro momento, que a princesa Lopez tem de "pegar em armas" com direito e motivos íntegros, pois sua sogra é uma predadora imoral) é uma conspiração de duas escalas. Uma guerra alimentada por ambos os lados. As duas tramam, ofensiva ou defensivamente.

Kevin, por fim, não é o manequim, cúmplice da tirania de seus pais. É um fantoche animado das duas partes. Um fantoche que será acarinhado e manipulado em favor das dores e dos empreendimentos de batalha, vernizados pela preparação formal de um casamento, tanto de uma quanto da outra. Ele é, em última análise, um anômalo bibelô: uma entidade sagrada. Objeto de adoração e veneração, alienado da guerra gerada à sua volta e por sua causa. O que o filme apresenta, portanto, não é apenas essa fábula de canibalismo feminino. É, antes, uma atualização de feminismo em sua face mais débil, mesquinha e autodesmoralizante. A Sogra deixa vazar por cada fenda de seu roteiro a idéia do homem como "construção" pura e devotável, um deus pueril de corpo grego, mas manuseável como títere por uma instância feminina, sexual ou maternal (mãe, Viola, e noiva, Charlie, na verdade se revezam em cada uma dessas funções), essa sim regente do mundo. Regente de tudo. Ele não é mais que um deus passivo e ignorante da densidade real de seu universo, mais ou menos assim.

É um feminismo, esse do filme, que acaba morrendo em si mesmo, pois as mulheres filmadas são em tudo desprovidas de feminilidade: renegam-na para se dedicar integralmente a seus projetos de afirmação e vigilância, familiar, afetiva e matrimonial. Repudiam o afloramento de qualquer instinto que não esteja associado às estratégias da sabotagem. Parecem ser tragadas pela câmera na candura ou no mau odor diabólico, mas nunca de fato como mulheres – em de forma safada, nem de forma idílica.

Nesse ambiente de feminismo canhestro, dessexualizado, muito pouco se salva cinematograficamente: a construção cômica ancora-se em princípios e fórmulas tão canhestras, e batidas, quanto esse feminismo. As gags no modelo "Tom e Jerry" não fazem muito além de evocar um depósito de sucatas da comédia americana corporal (até Hitch, não tanto uma comédia corporal e tão recente, parece ser imitado, numa cena de alergia extrema). O ritmo da perseguição é pastelônico e novelesco em seus melhores planos, mesmo esses raquíticos no sentido de criação de uma atmosfera cômica. Parece tudo parte de um jogo de cinema marcado, no qual a perplexidade das personagens é tão fraudulenta em sua histeria quanto são inofensivos seus métodos de competição. Inofensivos, também, do ponto de vista cinematográfico, pois tudo parece "jogado" de antemão - não exatamente encenado, integrado, ou desintegrado, no quadro de um jeito ou de um outro.

Total é a falta de preocupação do diretor em escapar do banal ou trabalhar criativamente o humor de seu filme. O que prevalece é um registro de "risada automática", sem intensidade, para ir levando o publico enquanto se coloca em cena duas estrelas, dois símbolos sexuais femininos de geração, aqui assexuados, digladiando-se. Restam as piadas que nascem do cinismo de Viola - fazendo a teatral vítima - e de sua relação contraditória com uma ácida escudeira: a funcionária negra, conselheira e ao mesmo tempo fiscal da conduta da chefe, o que garante sutis momentos de uma inversão da lógica racial: a empregada negra açoitando a chefe branca cheia de si. Nada distante, no entanto, de um equacionismo de padrões já inventados e reinventados por, sabe-se lá, quantos milhões de séries de televisão.

Outras piadas surgem de uma pasmada Fonda diante de um mundo que, abruptamente, mudou. Uma das temáticas exploradas pelo filme é a do utilitarismo selvagem que molda a máquina audiovisual dos EUA: Viola, uma espécie de Hebe americana, mais elegante e com sua grife mais associada a uma idéia de credibilidade jornalística, um dia acorda e descobre-se excluída do elenco de apresentadores de sua emissora. Fica claro o tom de acirrado conflito de gerações - um dos pontos que, psicanaliticamente, determinarão a ojeriza de Viola em relação à nora. Fica claro sobretudo quando o filme vai, em seu início, povoando esse universo televisivo, antes dominado por Viola, com um exército de mulheres simbólicas de um "novo" formato: anabolizadas, plastificadas, chapadas intelectual e corporalmente; vulgarmente frívolas. Todas odiadas por Fonda.

Esse novo contexto de vazio, reformado em hábitos e em expedientes industriais da máquina de comunicação, abala a personagem de Fonda e leva-a a um surto. Irônico é notarmos que a agenda de encenação do filme parte desse mesmo pragmatismo da TV americana que incendeia o enredo e mobiliza as ações terroristas de sua personagem. Da instância mais externa (promoção) àquela mais interiorizada, tudo aquilo que esteticamente constitui A Sogra obedece a um programa de pragmatismo de mercado para um produto cômico-ameno, suave, que tem de dar certo, provocar o barulho certo, calculado. Perto do final, o roteiro contempla a idéia de que as gerações vão sempre se repetir. Herdarão uma da outra o conservadorismo e, conseqüentemente, o "gene" de hostilização aos mais novos que ameaçam a continuidade de suas doutrinas. Moral que afirma, em outras palavras, que Charlie (Lopez) um dia poderá ser Viola (Fonda).

O mesmo roteiro sugere a possibilidade, cujo embrião é um certo discurso populista dos anos 30, de que o status do mundo sistemático das aparências e dos complexos capitalistas de entretenimento, no caso o mundo da própria máquina audiovisual, encantada por dinheiro e glamour, é agente de deterioração das almas. A safadinha maconheira e gente fina de Woodstock (a personagem de Fonda, situada assim), via luxuosa carreira trilhada naquele ambiente, foi infectada e transformou-se lentamente nesse zumbi reacionário, de valores supérfluos, policial do ninho do filho e, como as menininhas que odeia, uma mulher, em tudo, fútil. Esse painel não deixa de soar como piada do filme para si mesmo. Se o trajeto de Viola é o de esconder aquilo que realmente é - um ser, embora redimido e aceito em seus desvios rumo ao final, de contornos idênticos aos das meninas frívolas que a aterrorizam - certa camada oficial da comédia de hoje - da qual A Sogra é boa representante -, em sua limpeza dramatúrgica para lidar com o humor - em seu desencanto cênico - tenta esconder também a contradição de um corpo falido, inanimado, mas camuflado em uma maquiagem de felicidade, graça.

Se esse filme é um filme decididamente sobre Viola, estabelecendo com sua personagem um forte paralelismo, isso vem muito mais de uma melancolia do que de qualquer qualidade de sentido relacionada à comicidade. A Sogra exprime uma alegria artificial e anestesiada em uma certa impotência, uma alegria triste mesmo. Uma radiante felicidade mórbida de produto esgotado em si mesmo, réplica de um modelo de significados cômicos cada vez mais inofensivos e mais esgotados neles mesmos: reciclados em uma lógica tal que o objetivo parece ser o de se comunicar com zumbis (supostamente o público, no caso). Um filme de, não por acaso, cenografia, luz, câmera e texto zumbis, como se não existisse dentro dele um mundo vivo.

Já existiram obras mais horrorosas, se o funcionamento de certa produção cômica americana sempre foi a da sintetização de paradigmas ou da clonagem rasa do que dá certo uma temporada antes. E é verdade também que essa mesma comédia vive grande fase com as aventuras de estilo e hedonismo de Ben Stiller, Adam Sandler, Irmãos Farrelly, Irmãos Wilson, Wes Anderson e até Richard Linklater. Muitos deles proporcionando, em seu laboratório, uma problematização sobre a própria idéia de reciclagem (acompanhada da de contaminação) do cinema americano no qual se filiam, diga-se. Mas também não deixa de ser interessante notar que A Sogra é tão documental em seu tempo quanto os trabalhos desses autores.

Claudio Szynkier