AMOR EM JOGO
Peter e Bobby Farrelly, Fever Pitch, EUA, 2005

Duas notícias, uma ruim e uma boa. A ruim primeiro: não encontraremos em Amor em Jogo muito do humor cáustico encontrado em filmes como Quem Vai Ficar com Mary? e Eu, Eu Mesmo e Irene. Desde Ligado em Você, possivelmente sua obra-prima, os Farrellys vêm desenvolvendo uma outra linha de trabalho, de uma subversão mais sutil, sem as famosas cenas de desconforto que lhes fizeram a fama. A boa notícia: num filme que aparentemente teria tudo para fazer com que seu cinema fosse totalmente desvirtuado e transformado em genérico hollywoodiano, a melhor dupla de irmãos do cinema contemporâneo assina um filme que se esconde sob a capa de comédia romântica para, ao final, provar ser exatamente a mesma aproximação com o mundo de seus filmes anteriores, os mesmos personagens desajustados que precisam fazer com que a sociedade os veja de forma diferente, e ao mesmo tempo eles mesmos aceitarem sua diferença como um elemento natural de sua subjetividade, irredutível os imperativos de normalização social. Malucas são as pessoas que desejam ser normais.

Mas a notícia ruim não é exatamente ruim. Simplesmente houve uma mudança de percurso, ou então uma maneira diferente de ver uma trajetória. Inicialmente acreditávamos que Peter e Bobby Farrelly retomavam, dessa vez dentro do sistema hollywoodiano – o que já implica uma mudança de estratégia e de posicionamento quanto ao material a ser tratado –, o projeto de John Waters, em alguma medida nascido da trilogia Flesh/Trash/Heat, da dupla Morrissey/Warhol. Ligado em Você altera essa trajetória, e curiosamente agora nos vemos diante de dois cineastas que desde o começo se propuseram a refilmar Freaks a cada filme, progressivamente nos mostrando como o enredo não é aplicável somente a pessoas deformadas e expelidas da sociedade, mas igualmente a outras figuras mais socialmente aceitas. Não seria então um filme sobre duas pessoas fisica e mentalmente normais, disfarçado de comédia romântica, a culminação de um projeto em gestação já há algum tempo?

Amor em Jogo começa com o relato iniciático: como o jovem Ben, apenas com sete anos e mais nenhuma atividade pessoal numa nova vizinhança, é levado pelo tio desajeitado a um jogo de baseball no estádio dos Boston Red Sox. Surge uma paixão, que aos poucos vai tomando conta de todas as outras e transforma-se numa monstruosidade. Monstruosidade? They don't think so. Ben é um professor de matemática, tem amigos, e vive para seu time de beisebol. É uma figura bastante integrada no meio em que vive. Do outro lado, temos Lindsay, executiva workaholic que vê tudo em sua vida como competitividade – relações de trabalho, de amizade, emocionais... Ela também é bastante integrada. Ambos estão em negação sobre relações sentimentais: ele se cansou de namoradas que não entendem seu vício por esporte, ela não agüenta mais a competição com os parceiros, que geralmente ocupam postos semelhantes ao seu. E – tchuns! –, aquilo que deveria unicamente ser um filme sobre o vício do esporte se transforma em fábula escópica entre um vício aceito pela sociedade – excesso de trabalho – e um vício meramente tolerado – ser maníaco por um time. O que Amor em Jogo tenta estabelecer não é a que ponto uma pessoa pode ser fã de esporte – com a fatal rendição normalizadora ao final –, mas até que ponto nossa felicidade e nossa infelicidade se dão por uma relação que criamos com nossas características pouco sociáveis e como a adequamos para melhor poder viver com as pessoas de que gostamos. E, da mesma forma que em O Amor É Cego, a fonte da inadequação e a dificuldade de convivência se dão por uma interface em que os imperativos de costume determinam a partilha do que podemos ou não desejar: uma mulher gorda, um professor de escola secundária, um esporte.

O que diferencia Peter e Bobby Farrelly de todos os outros talentosos fazedores de comédia nos Estados Unidos hoje (Will Smith e seu Hitch, Adam Sandler, a turminha do frat-pack) não é tanto a intensidade de humor ou a natureza do riso que deles provém (embora as gags do gel em Quem Vai Ficar com Mary? e a do sundae em Eu, Eu Mesmo e Irene já tenham entrado para a história do humor no cinema), mas uma sensibilidade que eles têm em sempre fazer da câmera um uso muito preciso e sutil, que subverte um discurso oficial não pela palavra mas pela evidência da própria imagem, transformada em tratado. Assim, quando vemos Lindsay e suas amigas malhando na academia, e já estando cientes de que o filme apresentou seu comportamento como tão normal/anormal quanto o de Ben, o que percebemos vendo os movimentos desajeitados e robóticos das máquinas de ginástica – no limite bestializantes: o ritmo dos seios de Drew Barrymore – é um forte comentário visual sobre a falta de naturalidade de tudo aquilo que é vendido como naturalidade pelos imperativos aeróbicos da sociedade do fitness em que vivemos (e que é ainda mais forte que o trabalho que Encontros e Desencontros faz com o mesmo universo, vendo nele só os efeitos de estranhamento que o filme pega do cinema de Tati). A grosseria escancarada sempre esconde uma sutileza delicada, um clichê monstruoso sempre esconde um significado subvertido. Não estamos no terreno narcisista e auto-indulgente, na direção acavalada de Penetras Bons de Bico, e tampouco na fôrma de bolo em que Andy Tennant decidiu enquadrar o belíssimo Hitch: aqui estamos diante de duas figuras que pensam e filmam cinema, que acreditam no poder da imagem para além do veículo do humor. Gwyneth Paltrow na entrada de um galpão em O Amor É Cego será sempre inesquecível como algo que acontece apenas pela e para a imagem, pela surpresa na passagem de um plano para outro.

Filmado num CinemaScope sem grande brilho – nos parece que eles pensam mais em planos centrais do que em enquadramentos –, Amor em Jogo ainda tem a ousadia de apresentar Jimmy Fallon como uma figura bastante delicada, como um heterossexual afeminado, figura retratada de forma bastante rara no cinema. Nenhum motivo para ele ser o cativante, o sedutor, o homem que pode tudo: seus talentos, suas qualidades são outras. Igualmente com Drew Barrymore, que pode tranqüilamente ser considerada a atriz americana rica que melhor sabe escolher os filmes em que aparece (tanto no quesito qualidade quanto nos papéis que lhe são prescritos: ela tem um talento e uma disposição incríveis para problematizar o corpo e a figura de objeto sexual que outrora lhe foi prescrita, e tanto As Panteras: Detonando quanto Amor em Jogo são prova disso).

Amor em Jogo trata de conciliação, o que já era o caso em Ligado em Você, e de certa forma em alguns dos filmes anteriores dos Farrellys. Mas uma conciliação que não vem pela admissão & cura do vício, e sim por uma negociação dos papéis: ser-quem-se-é-a-dois mais do que mudar de vida ao casar. Não era essa toda a estratégia do filme de Tod Browning, nos entregar a naturalidade da vida daqueles que só víamos como aberrações, freaks? E não seria refilmar esse enredo como comédia romântica a tarefa mais subversiva que Peter e Bobby Farrrelly poderiam realizar neste momento de suas carreiras – mostrar o normal como anormal e vice-versa, sem julgamentos? E fazer essa narrativa ser vista sob os olhos do gênero mais normalizador do cinema americano, a comédia sentimental, em que todo mundo sabe o seu lugar? Ao invés de fazer seu filme mais certinho e comportado, os Farrellys cada vez apontam o dedo de forma mais afiada. Que o mais subversivo também possa ser visto como o mais conformado, este é um dos paradoxos que faz toda a beleza desse cinema que tem o brilho de falar conceitualmente para quem souber ouvir e entreter subversivamente – porque intuitivamente todos os conteúdos são apreendidos, de qualquer forma – os que apenas querem ser entretidos. Não é à toa que eles são grandes.

Ruy Gardnier

 

 




Jimmy Fallon e Drew Barrymore em Amor em Jogo