Duas
notícias, uma ruim e uma boa. A ruim primeiro:
não encontraremos em Amor em Jogo muito
do humor cáustico encontrado em filmes como Quem
Vai Ficar com Mary? e Eu, Eu Mesmo e Irene.
Desde Ligado em Você, possivelmente sua
obra-prima, os Farrellys vêm desenvolvendo uma
outra linha de trabalho, de uma subversão mais
sutil, sem as famosas cenas de desconforto que lhes
fizeram a fama. A boa notícia: num filme que
aparentemente teria tudo para fazer com que seu cinema
fosse totalmente desvirtuado e transformado em genérico
hollywoodiano, a melhor dupla de irmãos do cinema
contemporâneo assina um filme que se esconde sob
a capa de comédia romântica para, ao final,
provar ser exatamente a mesma aproximação
com o mundo de seus filmes anteriores, os mesmos personagens
desajustados que precisam fazer com que a sociedade
os veja de forma diferente, e ao mesmo tempo eles mesmos
aceitarem sua diferença como um elemento natural
de sua subjetividade, irredutível os imperativos
de normalização social. Malucas são
as pessoas que desejam ser normais.
Mas a notícia ruim não é exatamente
ruim. Simplesmente houve uma mudança de percurso,
ou então uma maneira diferente de ver uma trajetória.
Inicialmente acreditávamos que Peter e Bobby
Farrelly retomavam, dessa vez dentro do sistema hollywoodiano
o que já implica uma mudança de
estratégia e de posicionamento quanto ao material
a ser tratado , o projeto de John Waters, em alguma
medida nascido da trilogia Flesh/Trash/Heat,
da dupla Morrissey/Warhol. Ligado em Você altera
essa trajetória, e curiosamente agora nos vemos
diante de dois cineastas que desde o começo se
propuseram a refilmar Freaks a cada filme, progressivamente
nos mostrando como o enredo não é aplicável
somente a pessoas deformadas e expelidas da sociedade,
mas igualmente a outras figuras mais socialmente aceitas.
Não seria então um filme sobre duas pessoas
fisica e mentalmente normais, disfarçado de comédia
romântica, a culminação de um projeto
em gestação já há algum
tempo?
Amor em Jogo começa com o relato iniciático:
como o jovem Ben, apenas com sete anos e mais nenhuma
atividade pessoal numa nova vizinhança, é
levado pelo tio desajeitado a um jogo de baseball
no estádio dos Boston Red Sox. Surge uma paixão,
que aos poucos vai tomando conta de todas as outras
e transforma-se numa monstruosidade. Monstruosidade?
They don't think so. Ben é um professor
de matemática, tem amigos, e vive para seu time
de beisebol. É uma figura bastante integrada
no meio em que vive. Do outro lado, temos Lindsay, executiva
workaholic que vê tudo em sua vida como
competitividade relações de trabalho,
de amizade, emocionais... Ela também é
bastante integrada. Ambos estão em negação
sobre relações sentimentais: ele se cansou
de namoradas que não entendem seu vício
por esporte, ela não agüenta mais a competição
com os parceiros, que geralmente ocupam postos semelhantes
ao seu. E tchuns! , aquilo que deveria
unicamente ser um filme sobre o vício do esporte
se transforma em fábula escópica entre
um vício aceito pela sociedade excesso
de trabalho e um vício meramente tolerado
ser maníaco por um time. O que Amor
em Jogo tenta estabelecer não é a
que ponto uma pessoa pode ser fã de esporte
com a fatal rendição normalizadora ao
final , mas até que ponto nossa felicidade
e nossa infelicidade se dão por uma relação
que criamos com nossas características pouco
sociáveis e como a adequamos para melhor poder
viver com as pessoas de que gostamos. E, da mesma forma
que em O Amor É Cego, a fonte da inadequação
e a dificuldade de convivência se dão por
uma interface em que os imperativos de costume determinam
a partilha do que podemos ou não desejar: uma
mulher gorda, um professor de escola secundária,
um esporte.
O que diferencia Peter e Bobby Farrelly de todos os
outros talentosos fazedores de comédia nos Estados
Unidos hoje (Will Smith e seu Hitch, Adam Sandler,
a turminha do frat-pack) não é tanto a
intensidade de humor ou a natureza do riso que deles
provém (embora as gags do gel em Quem
Vai Ficar com Mary? e a do sundae em Eu, Eu Mesmo
e Irene já tenham entrado para a história
do humor no cinema), mas uma sensibilidade que eles
têm em sempre fazer da câmera um uso muito
preciso e sutil, que subverte um discurso oficial não
pela palavra mas pela evidência da própria
imagem, transformada em tratado. Assim, quando vemos
Lindsay e suas amigas malhando na academia, e já
estando cientes de que o filme apresentou seu comportamento
como tão normal/anormal quanto o de Ben, o que
percebemos vendo os movimentos desajeitados e robóticos
das máquinas de ginástica no limite
bestializantes: o ritmo dos seios de Drew Barrymore
é um forte comentário visual sobre
a falta de naturalidade de tudo aquilo que é
vendido como naturalidade pelos imperativos aeróbicos
da sociedade do fitness em que vivemos (e que
é ainda mais forte que o trabalho que Encontros
e Desencontros faz com o mesmo universo, vendo nele
só os efeitos de estranhamento que o filme pega
do cinema de Tati). A grosseria escancarada sempre esconde
uma sutileza delicada, um clichê monstruoso sempre
esconde um significado subvertido. Não estamos
no terreno narcisista e auto-indulgente, na direção
acavalada de Penetras Bons de Bico, e
tampouco na fôrma de bolo em que Andy Tennant
decidiu enquadrar o belíssimo Hitch: aqui
estamos diante de duas figuras que pensam e filmam cinema,
que acreditam no poder da imagem para além do
veículo do humor. Gwyneth Paltrow na entrada
de um galpão em O Amor É Cego será
sempre inesquecível como algo que acontece apenas
pela e para a imagem, pela surpresa na passagem de um
plano para outro.
Filmado num CinemaScope sem grande brilho nos
parece que eles pensam mais em planos centrais do que
em enquadramentos , Amor em Jogo ainda
tem a ousadia de apresentar Jimmy Fallon como uma figura
bastante delicada, como um heterossexual afeminado,
figura retratada de forma bastante rara no cinema. Nenhum
motivo para ele ser o cativante, o sedutor, o homem
que pode tudo: seus talentos, suas qualidades são
outras. Igualmente com Drew Barrymore, que pode tranqüilamente
ser considerada a atriz americana rica que melhor sabe
escolher os filmes em que aparece (tanto no quesito
qualidade quanto nos papéis que lhe são
prescritos: ela tem um talento e uma disposição
incríveis para problematizar o corpo e a figura
de objeto sexual que outrora lhe foi prescrita, e tanto
As Panteras: Detonando quanto Amor em Jogo
são prova disso).
Amor em Jogo trata de conciliação,
o que já era o caso em Ligado em Você,
e de certa forma em alguns dos filmes anteriores dos
Farrellys. Mas uma conciliação que não
vem pela admissão & cura do vício,
e sim por uma negociação dos papéis:
ser-quem-se-é-a-dois mais do que mudar de vida
ao casar. Não era essa toda a estratégia
do filme de Tod Browning, nos entregar a naturalidade
da vida daqueles que só víamos como aberrações,
freaks? E não seria refilmar esse enredo
como comédia romântica a tarefa mais subversiva
que Peter e Bobby Farrrelly poderiam realizar neste
momento de suas carreiras mostrar o normal como
anormal e vice-versa, sem julgamentos? E fazer essa
narrativa ser vista sob os olhos do gênero mais
normalizador do cinema americano, a comédia sentimental,
em que todo mundo sabe o seu lugar? Ao invés
de fazer seu filme mais certinho e comportado, os Farrellys
cada vez apontam o dedo de forma mais afiada. Que o
mais subversivo também possa ser visto como o
mais conformado, este é um dos paradoxos que
faz toda a beleza desse cinema que tem o brilho de falar
conceitualmente para quem souber ouvir e entreter subversivamente
porque intuitivamente todos os conteúdos
são apreendidos, de qualquer forma os
que apenas querem ser entretidos. Não é
à toa que eles são grandes.
Ruy Gardnier
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