Na matriz dramática
de Horror em Amityville e A Chave Mestra,
está a tradição da fabulação macabra centrada em espaços
fechados. Ambos são filmes de casas mal-assombradas,
como aliás é o filme de apartamento de Walter Salles,
Água Negra, meio drama familiar-imobiliário,
meio terror fantasmagórico de ambiente. Nesses filmes,
mais importante que a causa da ameaça, sem dúvida, é
a flutuação da câmera pelos ambientes. Nosso estado
de aflição não derivará da cara feia de uma criatura
monstruosa ou das provas de poder das entidades sobrenaturais,
mas sobretudo das escolhas do diretor sobre o que será
nos dado a ver (o campo) e a não ver (o extracampo).
Mais importante na busca de tensão que a imagem explícita,
conseguida pelas mãos de maquiadores, cenógrafos e técnicos
de computador, é a abertura maior ou menor do plano,
a revelação ou omissão de algo visto pelo personagem,
a decisão de enxergarmos menos ou mais do que quem está
em cena, com a vida em risco. Enfim, todas estas decisões
que caracterizam a direção, seja genericamente ou na
prática, levando-nos a temer o não-visto – a profundidade
de um corredor, portas fechadas e um ponto escuro no
qual se pode indentificar forma alguma. É fundamental
nesses filmes concentrados em ambientes sinistros a
manutenção do mistério desse ambiente e da expectativa
de quem assiste. Também é de bom tom primeiro visualizar
alguma ordem no local antes de pôr em xeque essa falsa
harmonia: terror tem de pôr em crise a percepção de
quem o vive.
Horror em Amityville
opta por caminho diferente. Temos de cara um clímax,
que nos é ofertado como prêambulo, composto por imagens
brutais, montadas em ritmo acelerado, com planos muito
curtos e captados com luz de rasgado articialismo. Um
cara mata a família toda em sua casa. Ouvia vozes. Voltaremos
a essa casa macabra minutos depois. Os novos moradores
dela são de uma família em processo de reorganização.
Mulher viúva, realizando o sonho da casa colonial própria
(em Long Island), e seu namorado, que, embora temendo
a dívida feita com a compra do imóvel, decide dar esse
passo na vida, mesmo sabendo do passado mórbido do lugar.
Problemas, antes mesmo do primeiro fantasma aparecer,
eles têm: os filhos dela não morrem de amores por ele.
Dado o cenário familiar, que poderia render tratamento
mais interessante para se constituir um bom nicho dramático
para o filme, resta mostrar fantasmas. E lá estão eles:
horrorosos, agressivos, vingativos, repugnantes. A opção
do filme é pela exposição frequente, pelo arquivamento
das possibilidades lógicas, pela suspensão da verossimilhança
(base do terror), pela aposta completa no excesso e
no absurdo. A parede sangra, objetos se movem, o padrasto
dos meninos passa a ter dupla personalidade por culpa
do espírito do assassino, a filha da viúva conversa
com uma menina morta – tudo pode acontecer, acontece
mesmo e vai nos conduzindo à banalização do absurdo.
Nem mesmo a valorização do porão da casa como espaço
nuclear da ameaça surte muito efeito depois de algumas
repetições da mesma maneira de filmá-lo.
A Chave Mestra
opta por uma revelação mais progressiva da causa da
ameaça. A vítima: uma jovem enfermeira (Kate Hudson)
com peso na consciência por não ter cuidado do pai morto
antes dele morrer. O cenário: um casarão no meio do
pântano no Sul dos EUA (próximo a Nova Orleans – o que
torna o filme curiosamente contemporâneo aos horrores
do mundo real da atualidade). Seus clientes: um velho
entrevado na cama e a mulher rabujenta dele. O mistério:
espelhos cobertos, uma porta fechada. O sobrenatural:
imagens nesses espelhos de um casal de fantasmas, praticantes
de rituais mágicos executados na casa muitos anos antes.
Pouco veremos dessas imagens e, em vez de limitar-se
a transitar por escadas e sotãos, a câmera circula pelos
arredores. Veremos assim a extensão do poder ameaçador
do ritual mágico, como ele afeta outras pessoas na região,
como existe uma iconografia em torno desse enigma. Como
não sabemos ao certo o que podem e o que desejam os
espíritos, tendemos a temê-los mais que tememos os fantasmas
de Amityville. No entanto, por falta de medida
ou por ironia, a narrativa descamba. Para nos fornecer
a visualização de evidências do caso de possessão ao
qual somos conduzidos, o filme transformará personagens
com algum enigma em caricaturas de psicopatas dos suspenses
mais vagabundos, só se redimindo da esculhambação completa
por um final ímpar que, inusitado, pode obter certo
estranhamento do espectador.
A diferença entre Horror
em Amityville e A Chave
Mestra não se resume a essa diferença de opção entre
mostrar muito (caso do primeiro) e adiar a imagem reveladora
(caso do seguinte). Operação ainda mais oposta é a desenvolvida
por cada um deles sobre a crença dos personagens na
ruptura do mundo deles com o racionalismo científico.
Em Amityville, o personagem do padrasto, depois de ver e ouvir coisas
muito estranhas, reage como se nada tivesse acontecido,
naturalizando essa ruptura com a apreensão normal da
vida. O sobrenatural é tratado com indiferença. Talvez
seja só uma forma de nos induzir a ver o personagem
como figura ligada ao espírito maligno pelo qual será
progressivamente possuído. Mas é uma opção diluídora
do desconforto. Em A Chave Mestra, ao contrário, a heroína, quando começa a investigar
o mistério da porta fechada e dos espelhos cobertos,
entra em crise. Ela não é mística, mas tampouco teme
ir mais fundo em sua investigação. Por isso, quando
se depara com fatos realmente sinistros, tem de se esforçar
para, em uma situação limite, manter a razão de pé.
Toda a questão final está em crer ou não crer no sobrenatural.
E essa descrença dela, que aos poucos vai se esvaindo,
fortalece o desconforto.
Os dois filmes se igualam, porém, na dependência do
som. Talvez por não pensarem com algum rigor sobre como
agir com a câmera, dependem muito de impactos sonoros
e sons de tensão mais ou menos frequentes, para nos
lembrar sempre que estamos assistindo um filme de terror.
É inegável a importância do som na manutenção de expectativas
nesse segmento, assim como nos sustos pregados, mas
nos dois casos essa utilização é clara compensação para
uma fragilidade da imagem como força dramática, para
um “dar de ombros” da montagem na escolha dos planos
a esticar, e para a ignorância sobre os efeitos do silêncio
na elaboração de atmosferas assustadoras. No caso de
A Chave Mestra, ainda se busca uma surpresa. No caso de Amityville, aposta-se que, atendendo a
expectativa do espectador de forma previsível, ainda
é possível, como em uma descarga aguardada, promover
alguns choques. Às vezes, sim. Mas, na maioria das situações,
o filme passa longe disso. Não há espaço para enganadores
medianos nas enganações do terror: se é para enganar
a crença, tem de enganar muito bem.
Cléber Eduardo
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