Alila começa num
carro. A câmera, no banco de trás, filma
uma conversa de pai e filho, enquanto o carro percorre
as ruas de um pitoresco bairro de Tel Aviv. Por vezes,
a câmera faz 90º à direita para registrar
alguma boate ou local com música (o som, nesse
momento, sobe e invade a conversa dos ocupantes do carro
e silencia a música do rádio do carro).
Pouco depois, a voz de Amos Gitai, o próprio,
anuncia os atores e a equipe técnica do filme.
A seqüência se acaba no mesmo plano, mas
fora do carro: enquanto o pai tenta contratar imigrantes
chineses – e, logo, trabalhadores ilegais – para uma
construção, o filho aproveita a "lição"
de barganha do pai para fugir e nunca mais ser visto.
Em outra parte, mas ocupando um quarto contíguo,
dois amantes fazem amor ruidosamente. Gabi, a mulher,
interpretada pelo furacão Yael Abecassis (já
vista em Kadosh – Laços Sagrados), se
submete a uma relação em que deve apenas
esperar pelo chamado de seu amante (casado), mesmo que
demore semanas. Uma policial arruma briga com os colegas
de condomínio porque deseja adicionar um quartinho
a seu apartamento, sem permissão legal. Uma série
de apartamentos, um do lado do outro, que permite a
Amos Gitai realizar um filme-painel um tanto apocalíptico
sobre a dificuldade das relações humanas
numa Israel em estado de guerra.
Alila é tudo menos um filme fácil
de encaixar em rótulos. Para seu diretor, é
uma comédia, mas embora tenha alguns momentos
realmente um tanto exagerados, o sentimento mais comum
é o de estranhamento e dor pelas vidas amarguradas
que ocupam os quartos e as redondezas daquele condomínio.
Para os mais interessados por política, pode
parecer simplesmente um teatrinho encenando no micro
um panorama macro das opiniões referentes à
posição de Israel diante do povo palestino.
Para os aficionados unicamente pelo aspecto estético
de Gitai, é mais uma exploração
do plano seqüência, aqui levado às
últimas conseqüências (de lembrança,
apenas uma cena é resolvida em mais de um plano).
No entanto, o filme de Gitai é bem mais do que
tudo isso, para bem e para mal. Tanto pior para suas
pesquisas com o plano: a despeito do grande trabalho
de Renato Berta, os mirabolantes movimentos de câmera
que volta e meia passam do interior para o exterior
do condomínio ressoam mais fetichistas do que
virtuosos, mais efeito de estilo do que interação
com o que acontece (e maneirismo conteudista ainda não
é uma categoria existente ou possível).
Problema que cresce desde Kippur, passa por Éden
e sobretudo por Kedma (e atinge o ápice
no intolerável episódio para o filme 11
de setembro), o fetiche pelo plano seqüência
acaba engessando o tempo de seus filmes, fazendo-os
pesar mais do que mereceriam. Num filme que se quer
cômico – ou, em todo caso, mais leve do que os
anteriores –, esse peso acaba demolindo boa parte de
bom humor possível, mas cria um adicional de
estranheza que pode por vezes garantir passagens interessantes.
Se o filme não consegue vencer nem por seu lado
"esteta" nem pelo microcosmo político
e tampouco pela experiência de comédia,
em que Alila torna-se um filme vitorioso? Diríamos
de primeira: pelo próprio painel que constrói.
Nesse painel reside a grande força política
de Amos Gitai: não vemos aí os típicos
quase-heróis positivos de seus filmes, muito
menos ideologias que saem da boca de seus personagens
(sempre Kedma). Vemos uma Israel construída
por imigrantes iranianos, europeus do leste, asiáticos
ilegais (os construtores) ou legais (a empregada do
síndico), formando um panorama muito mais complexo
do que aquele que supomos (todos judeus sionistas sangrentos
apoiando a destruição dos palestinos).
Claro, todos esses imigrantes têm problemas de
convivência com os "autóctones"
(porque falar em autóctone em Israel é
algo de complicado, todos são em alguma medida
imigrantes), mas os próprios autóctones
têm problemas em conviver com os outros (e até
consigo próprios).
Alila parece um pouco com Yael Abecassis, essa
atriz que interpreta uma mulher que tenta viver um amor
impossível se rebaixando às regras egoístas
e sádicas do amante: há nela algo de inapoderável,
uma resistência profunda mesmo que submissa aos
desejos mais espúrios de seu parceiro, um mistério
primeiro que subsiste a toda caracterização
que podemos fazer dela. Não à toa, a grande
cena do filme pertence a ela: numa grande torrencial,
enquanto parte do condomínio tenta salvar seus
móveis do dilúvio e outra parte comemora
a desgraça alheia, ela fecha os olhos, se deixa
molhar pela água da chuva e se posiciona de forma
hierática, meta-religiosa, para senti-la molhar
o rosto e a camisa. Instante purificador para ela (que
estará doravante livre para perseguir um novo
amor) e para o filme, momento utópico que clama
um antídoto para todas as rusgas nas relações
interpessoais (e, por extensão, às rusgas
políticas entre governo israelense e povo palestino).
Alila, filme "em férias" na
relação com a história israelense
tal como vinha sendo contada por Amos Gitai, acaba se
revelando como um dos melhores de seu realizador.
Ruy Gardnier
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