A ILHA
Michael Bay, The island, EUA, 2005

O norte dos EUA fatalmente congelado, a população do sul salva pelo governo mexicano em troca do perdão para a dívida externa, os ricos migrando para os países pobres, as grandes potências responsáveis pelo surgimento da nova era glacial. Em 2004, Roland Emmerich, cuja filmografia era formada por Independence Day, Godzilla e O Patriota, realizou O Dia Depois de Amanhã, blockbuster com insuspeitas conotações políticas. Michael Bay – de A Rocha, Pearl Harbor, Armageddon e Bad Boys 1 e 2 – segue a mesma rota neste ano, quando traveste com explosões, perseguições de automóveis e efeitos digitais a luta de classes que está no cerne de A Ilha, uma vez que a ação do clone Lincoln Six Echo, ao contrário do messianismo de Neo em Matrix ou do individualismo de THX 1138 no filme de George Lucas, passa pela sua tomada de consciência social e, por conseguinte, pela tentativa de libertar a coletividade da qual pertence do jugo que a oprime.

2019 (mesmo ano em que se passa Akira, de Katsuhiro Otomo). Para garantir a última versão do sonho americano – o prolongamento da vida –, clones são mantidos em cativeiro a fim de que sirvam como doadores compulsórios de órgãos aos que conseguem pagar US$ 5 milhões pelo serviço. Desconhecidos do público, pois infringem a lei que diz que não poderiam estar conscientes, os clones possuem como único propósito viajar para a ilha, paraíso tropical supostamente livre da radiação que contamina o resto do planeta. Lincoln Six Echo, no entanto, começa a contestar o frio e controlado complexo onde habita, até descobrir a mentira que o aprisiona e, junto com Jordan Two Delta, fugir para o exterior. Perseguidos pelo caçador Albert Laurent, a mando da corporação que os produziu, eles pretendem contactar seus respectivos originais com o intuito de apresentar a verdade ao mundo, mas, no caminho, aprendem que estão sozinhos e que não devem confiar em ninguém. Mesmo depois de assumir a identidade de sua matriz e de estar em segurança, Lincoln Six Echo prefere retornar para o complexo e libertar os demais clones que, considerandos produtos defeituosos, encontram-se à beira de serem exterminados.

Se a trama de A Ilha é complicada, a estrutura que a organiza, pelo contrário, segue os preceitos da narrativa clássica, dividida em três atos distinto: no primeiro, a ignorância de Lincoln Six Echo quanto aos acontecimentos e a estranheza que sente em relação ao ambiente onde vive; no segundo, já de posse da verdade, sua fuga para o mundo externo em busca da própria sobrevivência; no terceiro, o retorno ao cenário em que a história se iniciou para auxiliar os antigos companheiros. Durante a jornada do herói, essencialmente reativa às imposições que surgem pelo caminho, há a presença do guru (personagem de Steve Buscemi) que, detentor do conhecimento, clarifica-lhe a missão e o rumo a tomar, assim como existe a tentativa de transformar o espaço à força com a intenção de adequá-lo aos ideais e aos sentimentos do protagonista.

Embora, aparentemente, seja construído como o herói convencional, Lincoln Six Echo não reage ao mundo de forma egocêntrica. Ao contrário de THX 1138, ele não foge para salvar a própria pele e, diferente de Neo, não se está diante do escolhido, entidade divina desde sempre predestinada. Em A Ilha, Lincoln Six Echo é apenas um erro, um acaso, pois desenvolve seu “defeito” – ter as mesmas lembranças e reminiscências do original – antes que os demais clones também o manifestem. Todavia, a capacidade de se identificar com o outro não está presente no escocês arrogante, pomposo, fútil e desonesto (em ótima performance cafajeste de Ewan McGregor) que lhe serve de matriz, tornando-se, em conseqüência, a característica humana que o individualiza: primeiro, a paixão por Jordan Two Dela que o faz enfrentar os perigos do exterior desconhecido e, depois, a ampliação deste amor para toda a comunidade marginalizada da qual faz parte.

O arcabouço sócio-político desenhado em A Ilha, curiosamente, encontra paralelo no recente Terra dos Mortos, de George Romero. Ambos apresentam sociedades dispostas em pirâmide, com o topo controlado pelos ricaços, sejam os que se aglomeram no bem-bom da torre de marfim em Terra dos Mortos, sejam os que pagam US$ 5 milhões pela sua cópia em A Ilha. No meio, subsistem aqueles que habitam os cortiços da cidade protegida contra os zumbis ou que, impedidos de entrar no admirável mundo novo da engenharia genética, relacionam-se em espeluncas de beira de estrada. Finalmente, na base, há os excluídos: os mortos-vivos e clones, que se revoltam contra o destino de injustiças que os aguarda. Circulando entre as diversas camadas, estão os profissionais liberais que, a princípio aliados aos centros de poder, acabam, por se voltar contra eles – Cholo (John Leguizamo), que se transforma em terrorista e ameaça explodir a torre de marfim, e Albert Laurent (Djimon Hounsou), que, na melhor seqüência de A Ilha, descobre que os clones, assim como ele, também foram marcados a ferro por serem vistos como meros escravos.

Claro que Michael Bay não é George Romero, de sorte que o cineasta utiliza o arsenal cinematográfico limitado tão comum em sua filmografia, ou seja, a montagem frenética do videoclipe, as imagens plasticamente artificiais da propaganda e as explosões espetaculosas e barulhentas. No entanto, os procedimentos fílmicos do diretor, em A Ilha, são trabalhados com vistas ao que exige o contexto: ilusão publicitária enquanto simples método de controle e mantenedor da ordem, como na seqüência inicial, em que Lincoln Six Echo sonha segundo o vocabulário da MTV, imagética implantada em seu cérebro para torná-lo dócil e adequado ao estilo de vida do complexo (ou as citações à campanha de Scarlett Johansson para a Calvin Klein, presentes no filme). E mesmo a pirotecnia dos efeitos digitais e as inverossimilhanças da história acabam tratadas com humor, quase parodicamente, quando, por exemplo, o casal é recebido pelos bombeiros aos gritos de “Jesus ama vocês” ao sobreviverem de maneira milagrosa à queda do edifício.

A Ilha, portanto, não absolve Michael Bay dos crimes e atentados que já cometeu contra o cinema, mas pelo menos dá início à reabilitação. E a beleza de Scarlett Johansson, certamente, ajuda na empreitada.

Paulo Ricardo de Almeida