O norte dos EUA fatalmente congelado,
a população do sul salva pelo governo mexicano em troca
do perdão para a dívida externa, os ricos migrando para
os países pobres, as grandes potências responsáveis
pelo surgimento da nova era glacial. Em 2004, Roland
Emmerich, cuja filmografia era formada por Independence
Day, Godzilla e O Patriota, realizou
O Dia Depois de Amanhã, blockbuster com insuspeitas
conotações políticas. Michael Bay – de A Rocha,
Pearl Harbor, Armageddon e Bad Boys 1 e 2
– segue a mesma rota neste ano, quando traveste com
explosões, perseguições de automóveis e efeitos digitais
a luta de classes que está no cerne de A Ilha,
uma vez que a ação do clone Lincoln Six Echo, ao contrário
do messianismo de Neo em Matrix ou do individualismo
de THX 1138 no filme de George Lucas, passa pela sua
tomada de consciência social e, por conseguinte, pela
tentativa de libertar a coletividade da qual pertence
do jugo que a oprime.
2019 (mesmo ano em que se passa Akira, de Katsuhiro
Otomo). Para garantir a última versão do sonho americano
– o prolongamento da vida –, clones são mantidos em
cativeiro a fim de que sirvam como doadores compulsórios
de órgãos aos que conseguem pagar US$ 5 milhões pelo
serviço. Desconhecidos do público, pois infringem a
lei que diz que não poderiam estar conscientes, os clones
possuem como único propósito viajar para a ilha, paraíso
tropical supostamente livre da radiação que contamina
o resto do planeta. Lincoln Six Echo, no entanto, começa
a contestar o frio e controlado complexo onde habita,
até descobrir a mentira que o aprisiona e, junto com
Jordan Two Delta, fugir para o exterior. Perseguidos
pelo caçador Albert Laurent, a mando da corporação que
os produziu, eles pretendem contactar seus respectivos
originais com o intuito de apresentar a verdade ao mundo,
mas, no caminho, aprendem que estão sozinhos e que não
devem confiar em ninguém. Mesmo depois de assumir a
identidade de sua matriz e de estar em segurança, Lincoln
Six Echo prefere retornar para o complexo e libertar
os demais clones que, considerandos produtos defeituosos,
encontram-se à beira de serem exterminados.
Se a trama de A Ilha é complicada, a estrutura
que a organiza, pelo contrário, segue os preceitos da
narrativa clássica, dividida em três atos distinto:
no primeiro, a ignorância de Lincoln Six Echo quanto
aos acontecimentos e a estranheza que sente em relação
ao ambiente onde vive; no segundo, já de posse da verdade,
sua fuga para o mundo externo em busca da própria sobrevivência;
no terceiro, o retorno ao cenário em que a história
se iniciou para auxiliar os antigos companheiros. Durante
a jornada do herói, essencialmente reativa às imposições
que surgem pelo caminho, há a presença do guru (personagem
de Steve Buscemi) que, detentor do conhecimento, clarifica-lhe
a missão e o rumo a tomar, assim como existe a tentativa
de transformar o espaço à força com a intenção de adequá-lo
aos ideais e aos sentimentos do protagonista.
Embora, aparentemente, seja construído como o herói
convencional, Lincoln Six Echo não reage ao mundo de
forma egocêntrica. Ao contrário de THX 1138, ele não
foge para salvar a própria pele e, diferente de Neo,
não se está diante do escolhido, entidade divina desde
sempre predestinada. Em A Ilha, Lincoln Six Echo
é apenas um erro, um acaso, pois desenvolve seu “defeito”
– ter as mesmas lembranças e reminiscências do original
– antes que os demais clones também o manifestem. Todavia,
a capacidade de se identificar com o outro não está
presente no escocês arrogante, pomposo, fútil e desonesto
(em ótima performance cafajeste de Ewan McGregor) que
lhe serve de matriz, tornando-se, em conseqüência, a
característica humana que o individualiza: primeiro,
a paixão por Jordan Two Dela que o faz enfrentar os
perigos do exterior desconhecido e, depois, a ampliação
deste amor para toda a comunidade marginalizada da qual
faz parte.
O arcabouço sócio-político desenhado em A Ilha,
curiosamente, encontra paralelo no recente Terra
dos Mortos, de George Romero. Ambos apresentam sociedades
dispostas em pirâmide, com o topo controlado pelos ricaços,
sejam os que se aglomeram no bem-bom da torre de marfim
em Terra dos Mortos, sejam os que pagam US$ 5
milhões pela sua cópia em A Ilha. No meio, subsistem
aqueles que habitam os cortiços da cidade protegida
contra os zumbis ou que, impedidos de entrar no admirável
mundo novo da engenharia genética, relacionam-se em
espeluncas de beira de estrada. Finalmente, na base,
há os excluídos: os mortos-vivos e clones, que se revoltam
contra o destino de injustiças que os aguarda. Circulando
entre as diversas camadas, estão os profissionais liberais
que, a princípio aliados aos centros de poder, acabam,
por se voltar contra eles – Cholo (John Leguizamo),
que se transforma em terrorista e ameaça explodir a
torre de marfim, e Albert Laurent (Djimon Hounsou),
que, na melhor seqüência de A Ilha, descobre
que os clones, assim como ele, também foram marcados
a ferro por serem vistos como meros escravos.
Claro que Michael Bay não é George Romero, de sorte
que o cineasta utiliza o arsenal cinematográfico limitado
tão comum em sua filmografia, ou seja, a montagem frenética
do videoclipe, as imagens plasticamente artificiais
da propaganda e as explosões espetaculosas e barulhentas.
No entanto, os procedimentos fílmicos do diretor, em
A Ilha, são trabalhados com vistas ao que exige
o contexto: ilusão publicitária enquanto simples método
de controle e mantenedor da ordem, como na seqüência
inicial, em que Lincoln Six Echo sonha segundo o vocabulário
da MTV, imagética implantada em seu cérebro para torná-lo
dócil e adequado ao estilo de vida do complexo (ou as
citações à campanha de Scarlett Johansson para a Calvin
Klein, presentes no filme). E mesmo a pirotecnia dos
efeitos digitais e as inverossimilhanças da história
acabam tratadas com humor, quase parodicamente, quando,
por exemplo, o casal é recebido pelos bombeiros aos
gritos de “Jesus ama vocês” ao sobreviverem de maneira
milagrosa à queda do edifício.
A Ilha, portanto, não absolve Michael Bay dos
crimes e atentados que já cometeu contra o cinema, mas
pelo menos dá início à reabilitação. E a beleza de Scarlett
Johansson, certamente, ajuda na empreitada.
Paulo Ricardo de Almeida
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