Deve haver uma variedade razoável de formas de aproximação
com a intimidade de casais no cinema. 9
Canções, do inglês Michael Winterbotton, e Entre
Casais ,do alemão Andreas Dresen, além de serem
apenas duas delas, são quase antagônicas. Ambos tiveram
captação digital, assim como ambicionam um naturalismo
selvagem, em graus diferentes, buscando uma verdade
na suposta “não representação”. Essa atualização, em
moda no momento, das pregações e práticas de um Robert
Bresson (que já são questionáveis enquanto idéia nos
aforismos de Notas
de um Cinematógrafo, recém-editado no Brasil), pedem
olhar ainda mais problematizante quando avaliadas nos
filmes.
No primeiro caso, o de 9
Canções, a câmera infiltra-se em fragmentos da vida
sexual de um inglês e de uma americana, ambos colocados
em cena, sobretudo, como corpos em ação física. No segundo,
Entre Casais, temos dois casais alemães, já na casa dos 30-40 anos,
retratados em contextos mais sólidos, aos quais reagem
não apenas com ações, mas também com palavras.
9 Canções
acompanha, digamos assim, a evolução de uma relação,
que, pela aparência, começou há pouco e, em seu transcorrer,
não se ancora em um projeto, de duração e de promessas,
mas em momentos que, menos ou mais intensos, parecem
não alterar o contexto de suas vidas – aliás de nenhuma
importância no filme. Filma-se o casal para se mostrar
a solidão deles – em especial do homem – e a efemeridade
de suas experiências sem o pacto da duração. Entre Casais acompanha, contrariamente, dois projetos conjugais, primeiro
flagrados em sua aparência de harmonia pálida, com o
calor das emoções já em estado morno, depois abalados
por uma crise nesse processo de fechada estática - crise
essa estabelecida pelo aquecimento das emoções e por
seu redirecionamento. Filma-se uma ausência de solidão,
um “dois corpos fundidos em uma entidade”, para se chegar
ao individual isolado.
Temos então movimentos em sentido oposto: 9
Canções é narrado quando a relação chegou ao fim,
mas o flashback, ao presentificar as situações
nas imagens, acompanha essa relação a partir de seu
“quase início”. Vemos uma convivência fragmentada que
jamais se estabelece como união estável. A relação parece
estar sempre em vias de ruir, sempre começando, sempre
sem passado e sem história, sem futuro, apenas com o
presente a exibir. Entre Casais, por sua vez, começa com tudo
em andamento, com casamentos com histórias já firmadas
e, se o presente das ações importa, é porque constrói
um futuro que pode romper com um contrato afetivo do
passado. Ou seja, em um a ordem nunca se estabelece,
portanto, a rigor, nenhuma crise é possível; ao passo
que no outro, como há uma ordem estabelecida, a crise
pode gerar o caos, mesmo que temporariamente.
Se em 9 Canções, só sabemos da relação e dos
personagens pela narração do protagonista masculino,
com as ações e as palavras em quadro pouco nos dando
a conhecer sobre as pessoas, em Entre Casais, ao contrário, palavras e ações nos revelam algo dos
personagens, sem com isso, porém, nos explicar algo
sobre eles. Tendemos a sair mais íntimos desses seres
do segundo filme, que, ao contrário do primeiro, não
nos exibe detalhes de seus corpos ou de suas atividades
sexuais, mas nos permite conhecer o esboço de seus sentimentos
e de suas personalidades, assim como de suas atitudes
em relação a ângulos diversos de suas vidas (o trabalho,
a família, o passado).
Talvez se possa tatear, nessa comparação, as diferenças
de aproximação. A de 9 Canções é de uma esforçada tentativa
de neutralidade no olhar para seus personagens – opção
que, por incorporar a subjetividade de uma narração
em primeira pessoa e os detalhes das transas do casal,
tende a criar uma sensação paradoxal de frieza e distanciamento,
sem jamais compartilharmos a subjetividade supostamente
revelada pelo narrador. Estamos sempre muito próximos
do casal, na cama principalmente, mas essa proximidade
é, na verdade, a de um voyeurismo viabilizado
por lentes de aproximação. Nossos olhares estão próximos,
nossos olhos distantes. É como se víssemos o casal do
outro lado da rua, do prédio em frente ou por meio de
uma variedade de câmeras de vigilância.
Em Entre Casais, o olhar talvez esteja mais
distante, mas o olho, mais próximo. Ao invés de sermos
colocados na condição de um “voyeurismo de binóculo”,
somos convidados a ser cúmplices. Passamos a não olhar
os personagens, mas a viver com eles, ao lado deles
– sem, necessariamente, viver a vida deles. Não estamos
aqui na neutralidade do outro filme, mas em uma relação
de contradições de sentimentos e ações, nunca julgados
pela câmera, pelos diálogos e pela montagem, mas apenas
por nossa subjetividade, se assim nos parecer adequado
(o julgamento).
A diferença é que: em 9
Canções, o olhar apenas mostra; em Entre
Casais, o olhar aproxima, pede compreensão, talvez,
dependendo do espectador, solidariedade; talvez, dependendo
do espectador, uma opinião sobre os gestos dos personagens.
9 Canções não reivindica de nós espectadores
uma posição; Entre
Casais, por lidar com decisões de inevitável valor
moral e emocional (adultério, mentira, separação, humilhação),
pede um comprometimento, uma responsabilidade do olhar.
A diferença entre os dois filmes também é de ordem dramatúrgica.
9 Canções
trabalha na soma de fragmentos aparentemente sem preocupação
de usar a soma deles como síntese de sentido. Entre
Casais é mais convencional, buscando um sentido
geral e final. Se esse trabalha em cima de experiências
que fazem a narrativa avançar, aquele outro trabalha
em cima de ações nos espaços, talvez valorizando mais
os espaços e menos as ações (na aparência apenas, como
veremos).
Existem três tipos de ambientes em Nove
Canções
Ambiente 1: Os diferentes espaços internos, onde vemos
um casal, quase sempre a transar. Nestes momentos, se
descontarmos a narração do personagem masculino, que
fala após o fim da ação mostrada, em discurso de lembranças,
pouco sabemos sobre os dois. São apenas corpos em ação,
descobrindo-se um ao outro, mas ambos nos negam uma
apresentação. Embora apareçam nus, em situação de sexo
explícito, fecham-se para o espectador. Eles são ação,
são o que fazem, corpos em movimento. Interagem sem,
necessariamente, integrarem-se.
Ambiente 2: Os shows de rock freqüentados pelo casal:
um espaço amplo, preenchido por uma multidão que, apesar
de estar orquestrada em movimentos de corpos mais ou
menos homogêneos, e espontaneamente coreografados em
sua repetição, mostram, como o próprio protagonista
explicita em uma frase, a solidão individual, quase
sem comunicação, daquela massa humana em constante agitação.
Os personagens apenas aparecem dançando, agitando-se,
fechados em si mesmo, fechados na relação com a música.
Momento íntimo, de interioridade, por paradoxal que
seja.
Ambiente 3: A Antártica, o continente gelado, espaço
sem fronteiras visíveis, a salientar a solidão do corpo
isolado de todos os demais, com camadas de gelo a esconder
camadas seculares de vida. O protagonista, quando narra,
está lá, a trabalho como pesquisador, fazendo descobertas.
A solidão agora se amplifica.
9 Canções
é, portanto, sobre a descoberta – mas no que ela tem,
digamos, de interrupção da solidão. Vemos os personagens,
especialmente o protagonista, a sair de si mesmo e a
abrir-se ao outro, seja esse outro uma mulher, um ambiente
deserto ou um espaço povoado por multidão. Essa abertura
para o outro é apenas parte de um processo que, em seu
desenvolvimento e posteriormente em seu aborto, retorna
à solidão inicial (e da qual, a rigor, jamais se sai).
Pode-se pensar em O
Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, em
Nove Semanas e
Meia de Amor, de Adrian Lyne, e em Intimidade,
de Patrice Chereau, entre outras histórias de casais
que, unidos exclusivamente pelo sexo, mantém-se estrangeiros
um ao outro.
A dinâmica de câmera de Winterbottom, câmera digital,
salienta esse misto de aproximação e distanciamento,
de intimidade e estranhamento, de integração e solidão,
ora posicionando-se muito próxima da pele dos atores,
de maneira voyeur nas situações sexuais, ora
afastando-se dos corpos deles para olhá-los de fora,
só nos dando alguns detalhes picantes, que pouco nos
informa sobre essa relação. E assim o filme caminha,
cheio de elipses e omissões, alternando a explicitação
erótica com uma visão implícita das motivações dos personagens.
Vemos a moça chorando, após interessar-se por um show
de strip-tease e de entregar-se a um vibrador,
mas não se verbaliza a razão das lágrimas. Vemos sinais
de uma crise, mas qual a motivação? 9
Canções adota as não respostas. Pouco vemos dos
intervalos do sexo, do que falam, do que fazem antes
e após os shows. Quando se lança a mostrar essas situações,
Winterbottom nos mostra apenas dois atores que, por
limites de interpretação ou falta de crença na representação,
jamais alcançam seus personagens, reduzindo a autencidade
almejada a um exibicionismo de corpos e gestos excessivamente
conscientes da câmera. Aquele casal, impressão subjetiva
derivada das imagens, não existe. Apenas posam e fazem
performances para nós.
Já os personagens de Entre
Casais, dos protagonistas aos figurantes, existem
sem pose ou performance. Em matéria de naturalismo,
a representação dos atores, neste caso, é mais espontânea
que a “não representação” de 9
Canções. Conseguimos ver a relação dessas pessoas
com outras, com ambientes e com seus pares mais próximos,
chegando no percurso das situações a vislumbrar o mundo
de cada um deles e não apenas a ação deles (como em
9 Canções).
Chega-se assim a uma constatação: embora Winterbottom
valorize os ambientes, estes são apenas cenários para
ações. E embora Dresen valorize as ações, estas acabam
por construir ambientes onde elas se dão.
Embora se possa enumerar características menos interessantes
e positivas de Entre Casais, importa aqui suas opções
mais felizes e responsáveis pela construção de sua verdade.
A situação básica: Dois casais de amigos. A esposa de
uma configuração conjugal começa a ter um caso com
marido da outra configuração. O adultério é flagrado
pela esposa traída. O adultério torna-se matéria de
discussão dos dois casais. O inferno consolida-se para
os quatro. Dúvidas, tentativas de reconciliação, dúvidas.
Chegamos a um desfecho diferente para cada casal.
Essa é, digamos, a intriga. Mas a força de Entre
Casais, a livrá-lo da insignificância no mundo audiovisual,
está nos intervalos da crise: uma conversa após o gozo,
um papo furado com um músico de rua, uma compra de móveis
para cozinha, a fuga de um passarinho. São nesses momentos
que os espaços são materializados – e filmados com afeto,
de modo a ganharem vida, sem a frieza de um cenário
apenas.
A própria crise, fugindo de um modelo uniformizante
de tratamento de clímax dramático, tem personalidade
artística. Poucos momentos recentes do cinema são tão
patéticos como a seqüência na qual o casal de amantes
é flagrado na banheira, com a conseqüente tentativa
do marido adúltero em contornar a situação com a esposa
traída, tendo no fundo do quadro o constrangimento da
outra mulher, amiga da esposa que os flagrou em ação
– tudo isso filmado predominantemente em plano-seqüência,
com a câmera tentando esquadrinhar com o traveling
lateral a reação de cada uma das três partes envolvidas
na situação. Também se evita a fórmula harmonia-crise-reordenamento,
segundo a qual um corte no fluxo mais ou menos estável
é só um intervalo para se recomeçar o processo em outras
bases. Temos essa opção, em um dos casos, mas não no
outro, para o qual o reformismo conjugal não resolve
uma necessidade de ruptura até então não percebida.
Ganhador do Urso de Prata no Festival de Berlim, Entre
Casais foi filmado em digital com valorização do
improviso dos atores e da câmera (como fazem os irmãos
Dardenne), utilizando o plano-sequência para deixar
o fluxo seguir sem interrupções, e depois cortando por
dentro das seqüências para resumir as ações e dinamizar
a narrativa. Nem sempre a coisa funciona bem. Dresen
não é um Dardenne, não tem o rigor no despojamento,
não tem a musicalidade, às vezes com quebras abruptas
e duras, de filmes como Rosetta e O Filho. Não se
percebe aqui a evidência de um estilo claramente delineado.
Talvez, neste caso, o estilo sirva menos à imagem e
mais aos atores – adotando, assim, uma generosidade
na maneira de filmar na qual a câmera, mais que se tematizar,
busca aproximar-se do humano. Não para reverenciá-lo,
não para ridicularizá-lo, mas para demonstrá-lo, nunca
sem afeto em sua aparente crueldade. Já é alguma coisa.
Cléber Eduardo
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