PARALELAS E TRANSVERSAIS
9 Cancões, de Michael Winterbottom
Entre Casais, Andreas Dresen


9 Songs, Inglaterra, 2004
Halbe treppe, Alemanha, 2002


Deve haver uma variedade razoável de formas de aproximação com a intimidade de casais no cinema. 9 Canções, do inglês Michael Winterbotton, e Entre Casais ,do alemão Andreas Dresen, além de serem  apenas duas delas, são quase antagônicas. Ambos tiveram captação digital, assim como ambicionam um naturalismo selvagem, em graus diferentes, buscando uma verdade na suposta “não representação”. Essa atualização, em moda no momento, das pregações e práticas de um Robert Bresson (que já são  questionáveis enquanto idéia nos aforismos de Notas de um Cinematógrafo, recém-editado no Brasil), pedem olhar ainda mais problematizante quando avaliadas nos filmes.

No primeiro caso, o de 9 Canções, a câmera infiltra-se em fragmentos da vida sexual de um inglês e de uma americana, ambos colocados em cena, sobretudo, como corpos em ação física. No segundo, Entre Casais, temos dois casais alemães, já na casa dos 30-40 anos, retratados em contextos mais sólidos, aos quais reagem não apenas com ações, mas também com palavras.

9 Canções acompanha, digamos assim, a evolução de uma relação, que, pela aparência, começou há pouco e, em seu transcorrer, não se ancora em um projeto, de duração e de promessas, mas em momentos que, menos ou mais intensos, parecem não alterar o contexto de suas vidas – aliás de nenhuma importância no filme. Filma-se o casal para se mostrar a solidão deles – em especial do homem – e a efemeridade de suas experiências sem o pacto da duração. Entre Casais acompanha, contrariamente, dois projetos conjugais, primeiro flagrados em sua aparência de harmonia pálida, com o calor das emoções já em estado morno, depois abalados por uma crise nesse processo de fechada estática - crise essa estabelecida pelo aquecimento das emoções e por seu redirecionamento. Filma-se uma ausência de solidão, um “dois corpos fundidos em uma entidade”, para se chegar ao individual isolado.

Temos então movimentos em sentido oposto: 9 Canções é narrado quando a relação chegou ao fim, mas o flashback, ao presentificar as situações nas imagens, acompanha essa relação a partir de seu “quase início”. Vemos uma convivência fragmentada que jamais se estabelece como união estável. A relação parece estar sempre em vias de ruir, sempre começando, sempre sem passado e sem história, sem futuro, apenas com o presente a exibir. Entre Casais, por sua vez, começa com tudo em andamento, com casamentos com histórias já firmadas e, se o presente das ações importa, é porque constrói um futuro que pode romper com um contrato afetivo do passado. Ou seja, em um a ordem nunca se estabelece, portanto, a rigor, nenhuma crise é possível; ao passo que no outro, como há uma ordem estabelecida, a crise pode gerar o caos, mesmo que temporariamente.

Se em 9 Canções, só sabemos da relação e dos personagens pela narração do protagonista masculino, com as ações e as palavras em quadro pouco nos dando a conhecer sobre as pessoas, em Entre Casais, ao contrário, palavras e ações nos revelam algo dos personagens, sem com isso, porém, nos explicar algo sobre eles. Tendemos a sair mais íntimos desses seres do segundo filme, que, ao contrário do primeiro, não nos exibe detalhes de seus corpos ou de suas atividades sexuais, mas nos permite conhecer o esboço de seus sentimentos e de suas personalidades, assim como de suas atitudes em relação a ângulos diversos de suas vidas (o trabalho, a família, o passado).    

Talvez se possa tatear, nessa comparação, as diferenças de aproximação. A de 9 Canções é de uma esforçada tentativa de neutralidade no olhar para seus personagens – opção que, por incorporar a subjetividade de uma narração em primeira pessoa e os detalhes das transas do casal, tende a criar uma sensação paradoxal de frieza e distanciamento, sem jamais compartilharmos a subjetividade supostamente revelada pelo narrador. Estamos sempre muito próximos do casal, na cama principalmente, mas essa proximidade é, na verdade, a de um voyeurismo viabilizado por lentes de aproximação. Nossos olhares estão próximos, nossos olhos distantes. É como se víssemos o casal do outro lado da rua, do prédio em frente ou por meio de uma variedade de câmeras de vigilância.

Em Entre Casais, o olhar talvez esteja mais distante, mas o olho, mais próximo. Ao invés de sermos colocados na condição de um “voyeurismo de binóculo”, somos convidados a ser cúmplices. Passamos a não olhar os personagens, mas a viver com eles, ao lado deles – sem, necessariamente, viver a vida deles. Não estamos aqui na neutralidade do outro filme, mas em uma relação de contradições de sentimentos e ações, nunca julgados pela câmera, pelos diálogos e pela montagem, mas apenas por nossa subjetividade, se assim nos parecer adequado (o julgamento).

A diferença é que: em 9 Canções, o olhar apenas mostra; em Entre Casais, o olhar aproxima, pede compreensão, talvez, dependendo do espectador, solidariedade; talvez, dependendo do espectador, uma opinião sobre os gestos dos personagens. 9 Canções não reivindica de nós espectadores uma posição; Entre Casais, por lidar com decisões de inevitável valor moral e emocional (adultério, mentira, separação, humilhação), pede um comprometimento, uma responsabilidade do olhar.

A diferença entre os dois filmes também é de ordem dramatúrgica. 9 Canções trabalha na soma de fragmentos aparentemente sem preocupação de usar a soma deles como síntese de sentido. Entre Casais é mais convencional, buscando um sentido geral e final. Se esse trabalha em cima de experiências que fazem a narrativa avançar, aquele outro trabalha em cima de ações nos espaços, talvez valorizando mais os espaços e menos as ações (na aparência apenas, como veremos).

Existem três tipos de ambientes em Nove Canções

Ambiente 1: Os diferentes espaços internos, onde vemos um casal, quase sempre a transar. Nestes momentos, se descontarmos a narração do personagem masculino, que fala após o fim da ação mostrada, em discurso de lembranças, pouco sabemos sobre os dois. São apenas corpos em ação, descobrindo-se um ao outro, mas ambos nos negam uma apresentação. Embora apareçam nus, em situação de sexo explícito, fecham-se para o espectador. Eles são ação, são o que fazem, corpos em movimento. Interagem sem, necessariamente, integrarem-se.

Ambiente 2: Os shows de rock freqüentados pelo casal: um espaço amplo, preenchido por uma multidão que, apesar de estar orquestrada em movimentos de corpos mais ou menos homogêneos, e espontaneamente coreografados em sua repetição, mostram, como o próprio protagonista explicita em uma frase, a solidão individual, quase sem comunicação, daquela massa humana em constante agitação. Os personagens apenas aparecem dançando, agitando-se, fechados em si mesmo, fechados na relação com a música. Momento íntimo, de interioridade, por paradoxal que seja.

Ambiente 3: A Antártica, o continente gelado, espaço sem fronteiras visíveis, a salientar a solidão do corpo isolado de todos os demais, com camadas de gelo a esconder camadas seculares de vida. O protagonista, quando narra, está lá, a trabalho como pesquisador, fazendo descobertas. A solidão agora se amplifica.

9 Canções é, portanto, sobre a descoberta – mas no que ela tem, digamos, de interrupção da solidão. Vemos os personagens, especialmente o protagonista, a sair de si mesmo e a abrir-se ao outro, seja esse outro uma mulher, um ambiente deserto ou um espaço povoado por multidão. Essa abertura para o outro é apenas parte de um processo que, em seu desenvolvimento e posteriormente em seu aborto, retorna à solidão inicial (e da qual, a rigor, jamais se sai). Pode-se pensar em O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, em Nove Semanas e Meia de Amor, de Adrian Lyne, e em Intimidade, de Patrice Chereau, entre outras histórias de casais que, unidos exclusivamente pelo sexo, mantém-se estrangeiros um ao outro.

A dinâmica de câmera de Winterbottom, câmera digital, salienta esse misto de aproximação e distanciamento, de intimidade e estranhamento, de integração e solidão, ora posicionando-se muito próxima da pele dos atores, de maneira voyeur nas situações sexuais, ora afastando-se dos corpos deles para olhá-los de fora, só nos dando alguns detalhes picantes, que pouco nos informa sobre essa relação. E assim o filme caminha, cheio de elipses e omissões, alternando a explicitação erótica com uma visão implícita das motivações dos personagens. Vemos a moça chorando, após interessar-se por um show de strip-tease e de entregar-se a um vibrador, mas não se verbaliza a razão das lágrimas. Vemos sinais de uma crise, mas qual a motivação? 9 Canções adota as não respostas. Pouco vemos dos intervalos do sexo, do que falam, do que fazem antes e após os shows. Quando se lança a mostrar essas situações, Winterbottom nos mostra apenas dois atores que, por limites de interpretação ou falta de crença na representação, jamais alcançam seus personagens, reduzindo a autencidade almejada a um exibicionismo de corpos e gestos excessivamente conscientes da câmera. Aquele casal, impressão subjetiva derivada das imagens, não existe. Apenas posam e fazem performances para nós.

Já os personagens de Entre Casais, dos protagonistas aos figurantes, existem sem pose ou performance. Em matéria de naturalismo, a representação dos atores, neste caso, é mais espontânea que a “não representação” de 9 Canções. Conseguimos ver a relação dessas pessoas com outras, com ambientes e com seus pares mais próximos, chegando no percurso das situações a vislumbrar o mundo de cada um deles e não apenas a ação deles (como em 9 Canções). Chega-se assim a uma constatação: embora Winterbottom valorize os ambientes, estes são apenas cenários para ações. E embora Dresen valorize as ações, estas acabam por construir ambientes onde elas se dão.

Embora se possa enumerar características menos interessantes e positivas de Entre Casais, importa aqui suas opções mais felizes e responsáveis pela construção de sua verdade.

A situação básica: Dois casais de amigos. A esposa de uma configuração conjugal  começa a ter um caso com marido da outra configuração. O adultério é flagrado pela esposa traída. O adultério torna-se matéria de discussão dos dois casais. O inferno consolida-se para os quatro. Dúvidas, tentativas de reconciliação, dúvidas. Chegamos a um desfecho diferente para cada casal.

Essa é, digamos, a intriga. Mas a força de Entre Casais, a livrá-lo da insignificância no mundo audiovisual, está nos intervalos da crise: uma conversa após o gozo, um papo furado com um músico de rua, uma compra de móveis para cozinha, a fuga de um passarinho. São nesses momentos que os espaços são materializados – e filmados com afeto, de modo a ganharem vida, sem a frieza de um cenário apenas.

A própria crise, fugindo de um modelo uniformizante de tratamento de clímax dramático, tem personalidade artística. Poucos momentos recentes do cinema são tão patéticos como a seqüência na qual o casal de amantes é flagrado na banheira, com a conseqüente tentativa do marido adúltero em contornar a situação com a esposa traída, tendo no fundo do quadro o constrangimento da outra mulher, amiga da esposa que os flagrou em ação – tudo isso filmado predominantemente em plano-seqüência, com a câmera tentando esquadrinhar com o traveling lateral a reação de cada uma das três partes envolvidas na situação. Também se evita a fórmula harmonia-crise-reordenamento, segundo a qual um corte no fluxo mais ou menos estável é só um intervalo para se recomeçar o processo em outras bases. Temos essa opção, em um dos casos, mas não no outro, para o qual o reformismo conjugal não resolve uma necessidade de ruptura até então não percebida.

Ganhador do Urso de Prata no Festival de Berlim, Entre Casais foi filmado em digital com valorização do improviso dos atores e da câmera (como fazem os irmãos Dardenne), utilizando o plano-sequência para deixar o fluxo seguir sem interrupções, e depois cortando por dentro das seqüências para resumir as ações e dinamizar a narrativa. Nem sempre a coisa funciona bem. Dresen não é um Dardenne, não tem o rigor no despojamento, não tem a musicalidade, às vezes com quebras abruptas e duras, de filmes como Rosetta e O Filho. Não se percebe aqui a evidência de um estilo claramente delineado. Talvez, neste caso, o estilo sirva menos à imagem e mais aos atores – adotando, assim, uma generosidade na maneira de filmar na qual a câmera, mais que se tematizar, busca aproximar-se do humano. Não para reverenciá-lo, não para ridicularizá-lo, mas para demonstrá-lo, nunca sem afeto em sua aparente crueldade. Já é alguma coisa.

Cléber Eduardo