9 CANÇÕES
Michael Winterbottom, 9 songs, Inglaterra, 2004

Fantasmas fantoches

Dois amantes, Matt e Lisa. A câmera “pop existencial new-age” do inglês Michael Winterbottom, em voltagem naturalista, acompanha essas duas pessoas durante alguns meses. Vivem em uma redoma íntima: transam, discutem, cheiram pó. Temos acesso irrestrito a esses eventos prosaicos - próximos da vivência privada de qualquer um -, que são intercalados a idas em shows de bandas da cena atual do rock. Shows de verdade, supõe-se, de bandas como os Dandy Warhols, Franz Ferdinand, Elbow, com gente de verdade flagrada na platéia. Ou seja, Michael Winterbottom continua em 9 Canções seu projeto de cinema: o da captação de uma contemporaneidade universalizada, que transita entre o gigantismo (o showbizz, por exemplo, as corporações e suas teias mais sutis e malígnas) e o intimismo (uma relação emocional de homem e mulher aqui, as impressões sussurradas de um jovem emigrante afegão em outro filme); uma contemporaneidade de vigas que são hipnotizantes e ao mesmo tempo frágeis e corrompidas por uma certa frieza.

Está tudo isso lá, em Neste Mundo, por exemplo. Um projeto que trata de engolfar-se nesse emaranhado de sentidos da vida pulsante, extrema, por assim dizer, e, assim, alcançar as feridas, as grandes problemáticas, paisagens e cores daquilo que se convenciona chamar de "hoje em dia". Nesse caso, ele aqui está em uma seara diferente de observações geográficas de ultrasensibilidade humanitária (Neste Mundo): a seara afetiva. Em 9 Canções, há um casal, alguns shows. O namoro começa, eles saem para curtir som nos templos do rock da capital inglesa, e depois ela tem que viajar. 12 meses. 69 minutos. Fim de tudo. Seria essa então a história de uma relação? Aparentemente. Mas é antes a história de uma solidão, no caso a do rapaz. Mais ainda: é a história de uma impossibilidade.

O filme, antes de entrarmos nesse arranjo lúdico-narrativo das “9 músicas ao vivo - 9 momentos de um casal em sua evolução enquanto tal”, tem início com um prólogo na Antártida. Lá, Matt surgirá manuseando aparatos de sua rotina profissional. Estará em seu labor, um labor rústico até, que remete às primeiras descobertas, aos fósseis (de um amor?); também ao primitivo das leis físicas, ao que se forma e se condensa: mais ou menos como o que há no ato sexual. Geólogo, sobrevoa a área, mapeando e arquivando esqueletos e estruturas topográficas e texturas da imensidão branca. Winterbottom, tão amigo da superficialidade, das peles e da associação físico=existencial, não vai tardar para mostrar: o vazio antártico rima com o vazio do fim do relacionamento com Lisa, terminado anos antes. Um lugar impossível, por que não, um desenho natural impossível. Uma relação idem, que será contada a partir dali.

Esse "contar", extraído da memória de Matt, será uma trajetória marcada por imprecisões, por um revestimento fugidio, escancarado no timbre do dispositivo digital (a câmera) e pelo estilo fragmentado, propositalmente perdido, da narração. Espaços pouco ou parcialmente definidos (meio mutantes na verdade), casas abandonadas rapidamente, meio largadas, também contribuem para essa percepção. Meio sonho. Na verdade, o que se quer dizer aqui é que o vazio parece ser de outra ordem no filme: poderia nunca ter havido ninguém naqueles apartamentos e estâncias litorâneas inglesas, amargamente cinzas e calmas, cenários do namoro contado por Matt. Tudo na narrativa de amor fugaz que é exercitada aqui é realmente muito desubstanciado. Espectral. Poderíamos bem imaginar que a memória de Matt, fabulatória, conta uma história de paredes (ninguém nunca fala com eles, em nenhum lugar, ninguém nunca os vê...) preenchidas, de devaneios animados. Ele, remontando a história da Antártida, estaria nesses lugares, nesse relacionamento, sim – mas aquela menina, a magra moleca Lisa, não. O filme não sinaliza de forma direta, mas Lisa poderia ser sua invenção. O relato é de sua autoria, e é um relato de fantasmas, em que ele parece sólido, mas a narrativa e a câmera conspiram para dizer que nada mais era.

Winterbottom com isso parece querer dizer, os relacionamentos andam muito sozinhos. Muito impossíveis; desabitados talvez. É nessa que o diretor entra, com o perdão do trocadilho, de cabeça no sexo, filmando tudo no talo, com penetração e sentido hardcore de dramaturgia. Pênis, xoxota e gozo, tudo de verdade. Quer sustentar, exatamente com um naturalismo incisivo, a tese da desabitação. Tudo estava lá, real e pulsante -"vocês estão vendo?". Ironia... Não estava. A relação dos dois é impossível, pois tudo foge. Fugido e assombrado aqui são termos da mesma matriz, há de se entender. Significam a mesma coisa.

A fantasia principal do casal é a da dominação instrumental, seu pacto erótico amadurece nessa direção. Veda-se os olhos e amarra-se na cama. Por quê? Winterbottom visa um paradoxo. Essa relação forçada de domínio, pelo que se oculta ou impotencializa artificialmente, toca decisivamente a impossibilidade de perpetuação e o provisório: é impossível prender de fato quem vai embora, ou quem não está lá; e é impossível um laço de afetividade que se firme e calcifique. Todo laço é espectral. É inviável a continuidade e o pertencimento num mundo de fantasmas, de desabitação; num mundo doentiamente “global” em que as pessoas se deslocam entre territórios (Lisa, por exemplo, fazia intercâmbio em Londres), entre músicas. Nele, as pessoas desejam se submeter ao ineditismo de novas vivências e sentidos, são exploradores, navegantes, catalogadores de novos sentimentos e estímulos. Da impossibilidade de ter de fato o outro, que se encarcere o outro, através de recursos plásticos (cinto, por exemplo), no ato sexual. Todos presos, mas ninguém está de fato junto, pois são imagens assombradas. Aparatos de sex-shop na verdade são aparatos de uma permanência inconciliável. Tudo foge, todos escapam pois não têm substância, apesar dos corpos dizerem o contrário. É a ironia.

Mas, com essa estratégia de encenação, em última instância, aquilo que seria naturalista (pretensão do diretor), apresenta-se orquestrado. Não exatamente coreografado, mas quase. O que ele maquina, no verniz de crueza dos roçares e semens, é um filme penando com uma carga às vezes grosseiramente simbólica (embora, que se ressalte, a doação dos atores, digna de aplausos, por vezes tira o filme do domínio de Winterbottom e o coloca numa órbita desconhecida). Um filme que se trai também nos sombreamentos e nos gestos de um lirismo do banal, totalmente previsto, pré-conjugado como sensação a ser apreendida pelo espectador.

Esse filme sobre a perda, na verdade surge como um exercício de titerismo. Se são os túneis subterrâneos da impossibilidade e do estar sozinho que 9 Canções percorre, o diretor inglês se rende ao instinto original de seu projeto cinematográfico: tracejar a cartografia de uma atualidade, no caso a dos relacionamentos. Simular um cinema extremo para conseguir uma percepção aguda de "mundo agora". Nos esclarecer sobre quanto uma certa lógica “global” profetiza e condena, ao fim e ao cabo, a uma estridente solidão. Querendo dar conta da idéia geral, da solidão e do horror da provisoriedade universais, e de sua sintomatologia (expressada no sexo), o filme parece não ter ressonância pessoal nenhuma, embora sua encenação esteja toda edificada e calcada no pessoal.

Por isso que 9 Canções, mais próximo do que parece de The Brown Bunny, apesar de flertar com fantasmas (como o filme de Vincent Gallo) não soa pesado, quando na verdade deveria soar. A memória é um fardo que não pesa, cadavericamente, não cheira, não por Matt ser indiferente – mas porque Winterbottom o é. Ele tem a regência de fantasmas domados, prontos para serem imagens-sintoma e seqüela de um mundo pré-organizado, já demarcado em sua geologia, em seu vazio e em sua significação. Seus fantasmas, em suma, não assustam. Os elementos cênicos que ele distribui (a cama, o lúgubre oceano inglês, ou mesmo as paredes), funcionam para o momento, são negligenciados como simples gatilhos ou decorações de situações (daí que 9 Canções às vezes ruma a uma chatice impressionante para sua curta duração, fruto dessa inabilidade de articulação e manipulação dos elementos cênicos). O que interessa é absorver o sexo como mensagem extrema e forte de um contexto impessoal que nos é incensado a cada momento como experiência íntima. Mentira. É experiência de todos nós, mas na verdade não é de nenhum de nós.

Inverso de Olivier Assayas, em Clean por exemplo, Winterbottom não se dispõe a vulnerabilizar sua câmera em um ambiente musical radiante, onírico e naturalmente não-ordenável, o dos shows de rock londrinos, magma conceitual de 9 Canções. A mecânica, incluindo decupagem e acabamento estético, do registro dos shows é a mesma de um DVD, ou de um especial da MTV. Música por música, corte por corte. Se a preocupação de Winterbottom é com a efemeridade e com a mudança constante, com o nomadismo afetivo, há um tipo de transitoriedade interessante cujo formato DVD, ou programa natalino de TV, encarna muito bem. Assim, na verdade, nesse contrato de, digamos, não comparecimento aos shows, de agendismo adolescente (cada letra, cada som, representa e pontua uma fase da relação, esse é o conceito), a câmera jamais funde de fato música e experiência sentimental: os quartos e suas secreções não invadem ou infestam os shows, nem os shows com sua radiação invadem ou iluminam, para além do superficial, o que acontece nos quartos. São organismos dissociados na verdade, dois filmes diferentes. Mas vejamos com generosidade. Se o relacionamento entre Matt e Lisa tem para ele urdida essa atmosfera fantasmagórica, coerente que os shows expressem um certo vazio de que ninguém está lá, inclusive o diretor. Os shows também são meio espectrais.

É essa a essência do cinema extremo de Winterbottom: pálido diante do que o mundo em um terreno aberto (os shows) pode apresentar; inseguro ao ponto de calcular rigidamente tudo o que se engendra diante da câmera em terreno fechado (o quarto): sem anomalias, sem perda de tempo, o impacto tem de ter tessitura e endereço certos. Cinema fraudulento em sua simulação de liberdade cênica, de "verdade de nosso tempo" e, sobretudo, medroso.

Cláudio Szynkier