Fantasmas fantoches
Dois amantes, Matt e Lisa. A câmera “pop existencial
new-age” do inglês Michael Winterbottom, em voltagem
naturalista, acompanha essas duas pessoas durante alguns
meses. Vivem em uma redoma íntima: transam, discutem,
cheiram pó. Temos acesso irrestrito a esses eventos
prosaicos - próximos da vivência privada de qualquer
um -, que são intercalados a idas em shows de bandas
da cena atual do rock. Shows de verdade, supõe-se, de
bandas como os Dandy Warhols, Franz Ferdinand, Elbow,
com gente de verdade flagrada na platéia. Ou seja, Michael
Winterbottom continua em 9 Canções seu projeto
de cinema: o da captação de uma contemporaneidade universalizada,
que transita entre o gigantismo (o showbizz,
por exemplo, as corporações e suas teias mais sutis
e malígnas) e o intimismo (uma relação emocional de
homem e mulher aqui, as impressões sussurradas de um
jovem emigrante afegão em outro filme); uma contemporaneidade
de vigas que são hipnotizantes e ao mesmo tempo frágeis
e corrompidas por uma certa frieza.
Está tudo isso lá, em Neste Mundo, por exemplo.
Um projeto que trata de engolfar-se nesse emaranhado
de sentidos da vida pulsante, extrema, por assim dizer,
e, assim, alcançar as feridas, as grandes problemáticas,
paisagens e cores daquilo que se convenciona chamar
de "hoje em dia". Nesse caso, ele aqui está
em uma seara diferente de observações geográficas de
ultrasensibilidade humanitária (Neste Mundo):
a seara afetiva. Em 9 Canções, há um casal, alguns
shows. O namoro começa, eles saem para curtir som nos
templos do rock da capital inglesa, e depois ela tem
que viajar. 12 meses. 69 minutos. Fim de tudo. Seria
essa então a história de uma relação? Aparentemente.
Mas é antes a história de uma solidão, no caso a do
rapaz. Mais ainda: é a história de uma impossibilidade.
O filme, antes de entrarmos nesse arranjo lúdico-narrativo
das “9 músicas ao vivo - 9 momentos de um casal em sua
evolução enquanto tal”, tem início com um prólogo na
Antártida. Lá, Matt surgirá manuseando aparatos de sua
rotina profissional. Estará em seu labor, um labor rústico
até, que remete às primeiras descobertas, aos fósseis
(de um amor?); também ao primitivo das leis físicas,
ao que se forma e se condensa: mais ou menos como o
que há no ato sexual. Geólogo, sobrevoa a área, mapeando
e arquivando esqueletos e estruturas topográficas e
texturas da imensidão branca. Winterbottom, tão amigo
da superficialidade, das peles e da associação físico=existencial,
não vai tardar para mostrar: o vazio antártico rima
com o vazio do fim do relacionamento com Lisa, terminado
anos antes. Um lugar impossível, por que não, um desenho
natural impossível. Uma relação idem, que será contada
a partir dali.
Esse "contar", extraído da memória de Matt,
será uma trajetória marcada por imprecisões, por um
revestimento fugidio, escancarado no timbre do dispositivo
digital (a câmera) e pelo estilo fragmentado, propositalmente
perdido, da narração. Espaços pouco ou parcialmente
definidos (meio mutantes na verdade), casas abandonadas
rapidamente, meio largadas, também contribuem para essa
percepção. Meio sonho. Na verdade, o que se quer dizer
aqui é que o vazio parece ser de outra ordem no filme:
poderia nunca ter havido ninguém naqueles apartamentos
e estâncias litorâneas inglesas, amargamente cinzas
e calmas, cenários do namoro contado por Matt. Tudo
na narrativa de amor fugaz que é exercitada aqui é realmente
muito desubstanciado. Espectral. Poderíamos bem imaginar
que a memória de Matt, fabulatória, conta uma história
de paredes (ninguém nunca fala com eles, em nenhum lugar,
ninguém nunca os vê...) preenchidas, de devaneios animados.
Ele, remontando a história da Antártida, estaria nesses
lugares, nesse relacionamento, sim – mas aquela menina,
a magra moleca Lisa, não. O filme não sinaliza de forma
direta, mas Lisa poderia ser sua invenção. O relato
é de sua autoria, e é um relato de fantasmas, em que
ele parece sólido, mas a narrativa e a câmera conspiram
para dizer que nada mais era.
Winterbottom com isso parece querer dizer, os relacionamentos
andam muito sozinhos. Muito impossíveis; desabitados
talvez. É nessa que o diretor entra, com o perdão do
trocadilho, de cabeça no sexo, filmando tudo no talo,
com penetração e sentido hardcore de dramaturgia. Pênis,
xoxota e gozo, tudo de verdade. Quer sustentar, exatamente
com um naturalismo incisivo, a tese da desabitação.
Tudo estava lá, real e pulsante -"vocês estão vendo?".
Ironia... Não estava. A relação dos dois é impossível,
pois tudo foge. Fugido e assombrado aqui são termos
da mesma matriz, há de se entender. Significam a mesma
coisa.
A fantasia principal do casal é a da dominação instrumental,
seu pacto erótico amadurece nessa direção. Veda-se os
olhos e amarra-se na cama. Por quê? Winterbottom visa
um paradoxo. Essa relação forçada de domínio, pelo que
se oculta ou impotencializa artificialmente, toca decisivamente
a impossibilidade de perpetuação e o provisório: é impossível
prender de fato quem vai embora, ou quem não está lá;
e é impossível um laço de afetividade que se firme e
calcifique. Todo laço é espectral. É inviável a continuidade
e o pertencimento num mundo de fantasmas, de desabitação;
num mundo doentiamente “global” em que as pessoas se
deslocam entre territórios (Lisa, por exemplo, fazia
intercâmbio em Londres), entre músicas. Nele,
as pessoas desejam se submeter ao ineditismo de novas
vivências e sentidos, são exploradores, navegantes,
catalogadores de novos sentimentos e estímulos. Da impossibilidade
de ter de fato o outro, que se encarcere o outro, através
de recursos plásticos (cinto, por exemplo), no ato sexual.
Todos presos, mas ninguém está de fato junto, pois são
imagens assombradas. Aparatos de sex-shop na verdade
são aparatos de uma permanência inconciliável. Tudo
foge, todos escapam pois não têm substância, apesar
dos corpos dizerem o contrário. É a ironia.
Mas, com essa estratégia de encenação, em última instância,
aquilo que seria naturalista (pretensão do diretor),
apresenta-se orquestrado. Não exatamente coreografado,
mas quase. O que ele maquina, no verniz de crueza dos
roçares e semens, é um filme penando com uma carga às
vezes grosseiramente simbólica (embora, que se ressalte,
a doação dos atores, digna de aplausos, por vezes tira
o filme do domínio de Winterbottom e o coloca numa órbita
desconhecida). Um filme que se trai também nos sombreamentos
e nos gestos de um lirismo do banal, totalmente previsto,
pré-conjugado como sensação a ser apreendida pelo espectador.
Esse filme sobre a perda, na verdade surge como um exercício
de titerismo. Se são os túneis subterrâneos da impossibilidade
e do estar sozinho que 9 Canções percorre, o
diretor inglês se rende ao instinto original de seu
projeto cinematográfico: tracejar a cartografia de uma
atualidade, no caso a dos relacionamentos. Simular um
cinema extremo para conseguir uma percepção aguda de
"mundo agora". Nos esclarecer sobre quanto
uma certa lógica “global” profetiza e condena, ao fim
e ao cabo, a uma estridente solidão. Querendo dar conta
da idéia geral, da solidão e do horror da provisoriedade
universais, e de sua sintomatologia (expressada no sexo),
o filme parece não ter ressonância pessoal nenhuma,
embora sua encenação esteja toda edificada e calcada
no pessoal.
Por isso que 9 Canções, mais próximo do que parece
de The Brown Bunny, apesar de flertar com fantasmas
(como o filme de Vincent Gallo) não soa pesado, quando
na verdade deveria soar. A memória é um fardo que não
pesa, cadavericamente, não cheira, não por Matt ser
indiferente – mas porque Winterbottom o é. Ele tem a
regência de fantasmas domados, prontos para serem imagens-sintoma
e seqüela de um mundo pré-organizado, já demarcado em
sua geologia, em seu vazio e em sua significação. Seus
fantasmas, em suma, não assustam. Os elementos cênicos
que ele distribui (a cama, o lúgubre oceano inglês,
ou mesmo as paredes), funcionam para o momento, são
negligenciados como simples gatilhos ou decorações de
situações (daí que 9 Canções às vezes ruma a
uma chatice impressionante para sua curta duração, fruto
dessa inabilidade de articulação e manipulação dos elementos
cênicos). O que interessa é absorver o sexo como mensagem
extrema e forte de um contexto impessoal que nos é incensado
a cada momento como experiência íntima. Mentira. É experiência
de todos nós, mas na verdade não é de nenhum de nós.
Inverso de Olivier Assayas, em Clean por exemplo,
Winterbottom não se dispõe a vulnerabilizar sua câmera
em um ambiente musical radiante, onírico e naturalmente
não-ordenável, o dos shows de rock londrinos, magma
conceitual de 9 Canções. A mecânica, incluindo
decupagem e acabamento estético, do registro dos shows
é a mesma de um DVD, ou de um especial da MTV. Música
por música, corte por corte. Se a preocupação de Winterbottom
é com a efemeridade e com a mudança constante, com o
nomadismo afetivo, há um tipo de transitoriedade interessante
cujo formato DVD, ou programa natalino de TV, encarna
muito bem. Assim, na verdade, nesse contrato de, digamos,
não comparecimento aos shows, de agendismo adolescente
(cada letra, cada som, representa e pontua uma fase
da relação, esse é o conceito), a câmera jamais funde
de fato música e experiência sentimental: os quartos
e suas secreções não invadem ou infestam os shows, nem
os shows com sua radiação invadem ou iluminam, para
além do superficial, o que acontece nos quartos. São
organismos dissociados na verdade, dois filmes diferentes.
Mas vejamos com generosidade. Se o relacionamento entre
Matt e Lisa tem para ele urdida essa atmosfera fantasmagórica,
coerente que os shows expressem um certo vazio de que
ninguém está lá, inclusive o diretor. Os shows também
são meio espectrais.
É essa a essência do cinema extremo de Winterbottom:
pálido diante do que o mundo em um terreno aberto (os
shows) pode apresentar; inseguro ao ponto de calcular
rigidamente tudo o que se engendra diante da câmera
em terreno fechado (o quarto): sem anomalias, sem perda
de tempo, o impacto tem de ter tessitura e endereço
certos. Cinema fraudulento em sua simulação de liberdade
cênica, de "verdade de nosso tempo" e, sobretudo,
medroso.
Cláudio Szynkier
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