2 FILHOS DE FRANCISCO - A HISTÓRIA DE ZEZÉ DI CAMARGO E LUCIANO
Breno Silveira, Brasil, 2005

Nos últimos anos, já tínhamos atentado (e é impressionante que isso não tenha sido ainda formulado em nenhum dos "cinemas falados" de fim de ano) para o fato de que o cinema brasileiro não tem problema em fazer filmes bons, e que na verdade nossa principal deficiência é o fato de que não sabemos fazer filmes ruins. Naturalmente, essa é uma formulação polêmica que adoraria jogar atenção para a insuficiência – estética, mas não só – dos projetos de filmes que também se pensam (ou ao menos querem se pensar) como produto. Tanto nos declaradamente oportunistas – Xuxa, Marcelo Rossi, Os Normais, Casseta & Planeta – quanto naqueles que passam por um "refinamento" populista-cult. 2 Filhos de Francisco vem para rebater completamente essa formulação. Não que o filme seja exatamente ruim – por essa questão de juízo passa uma série de questões que não seria apropriado tratar num caso à parte –, mas é que suas falhas derivam naturalmente de seu projeto, não das deficiências em conformar o material a um projeto, ou então simplesmente do descuido e da desimportância do artesanato e do acabamento ao longo dos processos decisivos do filme. Hipereficiência de uma narrativa toda poderosa, uma certa falta de jeito nas elipses, legibilidade suprema de todo o relato: todos os excessos dos filmes que desejam manter com seu espectador, mesmo o mais desatento entre eles, o laço da comunicabilidade total. No panorama do cinema brasileiro comercial, esse defeito é uma grande qualidade: antes ter o espectador entrando em contato com algo que foi cuidadosamente preparado para ele do que vê-lo tolerar todas as inépcias das "grandes" produções feitas a toque de caixa só porque eles querem ver seus astros preferidos na tela grande. 2 Filhos de Francisco ganha nesse terreno.

Isso, porém, seria apenas uma pequena vitória passageira não fosse o parcial triunfo também no terreno estético. Questão de uma inteligência, e muito de não fazer o espectador de burro. Ele quer ver a história de dois cantores sertanejos, e o que damos a ele? Uma tese reiterativa sobre o que é o Brasil, e o papel específico do interior rural dentro dessa imagem? A história de duas pessoas predestinadas, fadadas ao sucesso? Um grande show recheado de astros famosos pagando tributo aos retratados? A fábula de como o talento ultrapassa as barreiras de classe, chance e geografia? Nada disso. O filme dá simplesmente a história de duas figuras, e depois três, ou quatro, que simplesmente se fizeram valer pelo cansaço, por uma idéia teimosa na cabeça e pela virtude de nunca se deixar abater pelo fracasso. É impressionante como todo registro de metáfora nacional, toda trajetória inevitável, todo estrelismo, todo discurso pronto sobre ascensão social fica do lado de fora do filme – jogar um desses argumentos contra o filme seria resvalar em hipérboles retóricas que comprometeriam a intepretação daquilo que está na tela –, e como aquilo que vemos diante de nós é apenas uma discreta ficcionalização de uma história real feita em linha reta, sem remissões para generalizar ou contextualizar, seca naquilo que relata (mas não necessariamente no como relata: leves travellings inúteis e brincadeiras com foco ainda revelam que Breno Silveira sabe onde colocar a câmera, mas ainda não se cansou de fazer uso banal de certos efeitos que estão na moda), sem heroicização ou predestinação. Ao fim e ao cabo, são apenas algumas pessoas que não se destacam particularmente em nada, mas não têm medos de sacrifício e de sonhar, e talvez isso constitua sua pequena mas única especificidade.

Um dia, um homem decide que não quer seus filhos trabalhando na roça como ele. Fanático por música, ele rapidamente coloca o mais velho pra cantar, dá uma gaita a ele. Os resultados são aterrorizantes. Com o tempo, e com a dedicação, vão aparecendo os resultados: o primeiro filho consegue aprender a tocar e a cantar, o segundo filho começa a entrar no jogo. É aí que surge a ambigüidade decisiva do filme, e que dá a ele uma dimensão comovente: a relação dos dois meninos com a música não obedece aos clichês de filmes "nasce uma estrela", de um grande mundo a descobrir, ela nada mais é do que a expressão direta – e tão mais forte porque o filme em momento algum caracteriza diretamente com mão pesada – do amor e do carinho que os filhos têm pelo pai e por seu projeto. Quais são as duas cenas mais dramaticamente carregadas da narrativa? O que elas evocam? A primeira, e a melhor, é quando os dois irmãos vão até a rodoviária tentar tirar uns trocados com sua música porque eles não agüentam mais ver a família passando fome. A segunda, quase destruída por uma montagem apressada, é quando Zezé finalmente consegue abrir seu acordeon depois da morte do irmão. As cenas dizem coisas absolutamente diferentes: a doce troca de olhares dos irmãos quando eles descobrem que é possível ganhar um dinheirinho para a família aponta para a comprovação do talento, algo como "e não é que a gente consegue?"; posteriormente, trata-se de uma superação do trauma, uma certa maneira de dizer que se está no jogo novamente. Perpassando esses dois momentos dramáticos, está a confirmação da aposta do pai, do laço que eles mantêm com ele, e através dele a prova do amor. Num primeiro momento, é com as músicas que o pai fazia ensaiar que surge o encantamento (da platéia, deles mesmos); depois, é pelo ouvido do pai (a câmera não filma Zezé, mas a reação do pai quando ouve as primeiras notas do intrumento) que renasce a esperança. Uma ausência do pai num primeiro momento, uma ausência do filho morto no segundo. No terceiro momento, quem está ausente é a própria dupla sertaneja (já refeita com outro irmão, incorporado ao projeto musical da família não pelo destino, mas por uma mentira): Francisco insiste com a emissora de rádio e cria sua própria indústria de jabá para impulsionar a carreira dos filhos. Ao fim, o amor é retribuído, e só nos créditos veremos enfim a reunião de todos os elos da cadeia.

Curiosa escrita essa que não busca nas megaestrelas da música sertaneja um discurso de confirmação do talento mas da teimosia; que vê o sucesso não na predestinação nem na metáfora da terra, mas na tentativa-e-erro e numa certa malandragem que ora os personagens têm (comprar zilhões de fichas, José Dumont armando esquemas para conquistar os convivas dos restaurantes), ora não (Zezé aproximando-se da amada, Francisco na fila com os filhos, ou no estúdio referindo-se ao presidente militar como "tirano" na letra de uma música); que prefere ver no material que tem em mãos não a possibilidade de uma tese (sobre classe, sobre ascensão social, sobre a música sertaneja, mesmo), mas um simples relato familiar que se fecha quase em si mesmo. Considerando que tantos exemplos frustrados de ficção recentemente estreados só conseguem encarar seus personagens do ponto de vista do tipo político-sociológico (Quase Dois Irmãos), como elementos de um painel burlescamente variado (O Diabo a Quatro) ou como pretexto para um discurso todo pronto (Quanto Vale ou É por Quilo, e novamente o filme de Lúcia Murat), 2 Filhos de Francisco tem um parti-pris totalmente diferente. Estamos aqui diante de um filme que diz que seus heróis são simplesmente eles mesmos, e que essa simplicidade é emocionante (além de Carlos Reichenbach, não são muitos os filmes que não têm medo de cair no sentimentalismo).

Estamos aqui diante de um filme assumidamente cafona, feito sem o superego estético de certa comunidade cinematográfica – crítico e parte do público incluídos – que quer "filmes populares mas de arte", e que retoma um certo registro de produto de classe como não víamos bem executados em sabe-se lá quantos anos (sim, estamos falando dos gêneros eternamente odiados da chanchada, da pornochanchada, do filme caipira, de todas as ficções de classe baixa não-politizadas). É o tipo de coisa com a qual a gente se depara quando vê, alguns minutos antes do final do filme, uma cena passada em uma cozinha de apartamento de classe média baixa – é um café da manhã antes das meninas irem para a escola –, onde os personagens mal se conseguem se locomover pelo espaço exíguo que sobra. Há quanto tempo não víamos um cenário como esse, e há quanto tempo não víamos esse aproveitamento? Diga-se o que se quiser dizer, estamos aqui há anos-luz do projeto de folclorização da classe baixa levado a cabo pelos lamentáveis projetos rodriguianos da Conspiração, ou por uma aberração como O Homem do Ano. Aqui, os personagens vivem, não precisam ser metaforizados para assumir dimensões bigger-than-life, e habitam os lugares em que vivem. É um tremendo avanço.

Toda a ingênua dialética caipira/chique, música chula/filme não-chulo, autenticidade/mercado pertence a uma estratégia diversionista que revela apenas mal-estar com o tema do filme ou falta de jeito para lidar com o que está na tela. Não falaremos disso simplesmente porque a situação não se presta – ou por simples falta de saco. Já digerimos devidamente nosso tropicalismo. Estamos diante de dois filhos e um Francisco, nada mais. Na conjuntura, isso já é muita coisa.

Ruy Gardnier