Nos
últimos anos, já tínhamos atentado
(e é impressionante que isso não tenha
sido ainda formulado em nenhum dos "cinemas falados"
de fim de ano) para o fato de que o cinema brasileiro
não tem problema em fazer filmes bons, e que
na verdade nossa principal deficiência é
o fato de que não sabemos fazer filmes ruins.
Naturalmente, essa é uma formulação
polêmica que adoraria jogar atenção
para a insuficiência estética, mas
não só dos projetos de filmes que
também se pensam (ou ao menos querem se pensar)
como produto. Tanto nos declaradamente oportunistas
Xuxa, Marcelo Rossi, Os Normais, Casseta &
Planeta quanto naqueles que passam por um "refinamento"
populista-cult. 2 Filhos de Francisco vem para
rebater completamente essa formulação.
Não que o filme seja exatamente ruim por
essa questão de juízo passa uma série
de questões que não seria apropriado tratar
num caso à parte , mas é que suas
falhas derivam naturalmente de seu projeto, não
das deficiências em conformar o material a um
projeto, ou então simplesmente do descuido e
da desimportância do artesanato e do acabamento
ao longo dos processos decisivos do filme. Hipereficiência
de uma narrativa toda poderosa, uma certa falta de jeito
nas elipses, legibilidade suprema de todo o relato:
todos os excessos dos filmes que desejam manter com
seu espectador, mesmo o mais desatento entre eles, o
laço da comunicabilidade total. No panorama do
cinema brasileiro comercial, esse defeito é uma
grande qualidade: antes ter o espectador entrando em
contato com algo que foi cuidadosamente preparado para
ele do que vê-lo tolerar todas as inépcias
das "grandes" produções feitas
a toque de caixa só porque eles querem ver seus
astros preferidos na tela grande. 2 Filhos de Francisco
ganha nesse terreno.
Isso, porém, seria apenas uma pequena vitória
passageira não fosse o parcial triunfo também
no terreno estético. Questão de uma inteligência,
e muito de não fazer o espectador de burro. Ele
quer ver a história de dois cantores sertanejos,
e o que damos a ele? Uma tese reiterativa sobre o que
é o Brasil, e o papel específico do interior
rural dentro dessa imagem? A história de duas
pessoas predestinadas, fadadas ao sucesso? Um grande
show recheado de astros famosos pagando tributo aos
retratados? A fábula de como o talento ultrapassa
as barreiras de classe, chance e geografia? Nada disso.
O filme dá simplesmente a história de
duas figuras, e depois três, ou quatro, que simplesmente
se fizeram valer pelo cansaço, por uma idéia
teimosa na cabeça e pela virtude de nunca se
deixar abater pelo fracasso. É impressionante
como todo registro de metáfora nacional, toda
trajetória inevitável, todo estrelismo,
todo discurso pronto sobre ascensão social fica
do lado de fora do filme jogar um desses argumentos
contra o filme seria resvalar em hipérboles retóricas
que comprometeriam a intepretação daquilo
que está na tela , e como aquilo que vemos
diante de nós é apenas uma discreta ficcionalização
de uma história real feita em linha reta, sem
remissões para generalizar ou contextualizar,
seca naquilo que relata (mas não necessariamente
no como relata: leves travellings inúteis
e brincadeiras com foco ainda revelam que Breno Silveira
sabe onde colocar a câmera, mas ainda não
se cansou de fazer uso banal de certos efeitos que estão
na moda), sem heroicização ou predestinação.
Ao fim e ao cabo, são apenas algumas pessoas
que não se destacam particularmente em nada,
mas não têm medos de sacrifício
e de sonhar, e talvez isso constitua sua pequena mas
única especificidade.
Um dia, um homem decide que não quer seus filhos
trabalhando na roça como ele. Fanático
por música, ele rapidamente coloca o mais velho
pra cantar, dá uma gaita a ele. Os resultados
são aterrorizantes. Com o tempo, e com a dedicação,
vão aparecendo os resultados: o primeiro filho
consegue aprender a tocar e a cantar, o segundo filho
começa a entrar no jogo. É aí que
surge a ambigüidade decisiva do filme, e que dá
a ele uma dimensão comovente: a relação
dos dois meninos com a música não obedece
aos clichês de filmes "nasce uma estrela",
de um grande mundo a descobrir, ela nada mais é
do que a expressão direta e tão
mais forte porque o filme em momento algum caracteriza
diretamente com mão pesada do amor e do
carinho que os filhos têm pelo pai e por seu projeto.
Quais são as duas cenas mais dramaticamente carregadas
da narrativa? O que elas evocam? A primeira, e a melhor,
é quando os dois irmãos vão até
a rodoviária tentar tirar uns trocados com sua
música porque eles não agüentam mais
ver a família passando fome. A segunda, quase
destruída por uma montagem apressada, é
quando Zezé finalmente consegue abrir seu acordeon
depois da morte do irmão. As cenas dizem coisas
absolutamente diferentes: a doce troca de olhares dos
irmãos quando eles descobrem que é possível
ganhar um dinheirinho para a família aponta para
a comprovação do talento, algo como "e
não é que a gente consegue?"; posteriormente,
trata-se de uma superação do trauma, uma
certa maneira de dizer que se está no jogo novamente.
Perpassando esses dois momentos dramáticos, está
a confirmação da aposta do pai, do laço
que eles mantêm com ele, e através dele
a prova do amor. Num primeiro momento, é com
as músicas que o pai fazia ensaiar que surge
o encantamento (da platéia, deles mesmos); depois,
é pelo ouvido do pai (a câmera não
filma Zezé, mas a reação do pai
quando ouve as primeiras notas do intrumento) que renasce
a esperança. Uma ausência do pai num primeiro
momento, uma ausência do filho morto no segundo.
No terceiro momento, quem está ausente é
a própria dupla sertaneja (já refeita
com outro irmão, incorporado ao projeto musical
da família não pelo destino, mas por uma
mentira): Francisco insiste com a emissora de rádio
e cria sua própria indústria de jabá
para impulsionar a carreira dos filhos. Ao fim, o amor
é retribuído, e só nos créditos
veremos enfim a reunião de todos os elos da cadeia.
Curiosa escrita essa que não busca nas megaestrelas
da música sertaneja um discurso de confirmação
do talento mas da teimosia; que vê o sucesso não
na predestinação nem na metáfora
da terra, mas na tentativa-e-erro e numa certa malandragem
que ora os personagens têm (comprar zilhões
de fichas, José Dumont armando esquemas para
conquistar os convivas dos restaurantes), ora não
(Zezé aproximando-se da amada, Francisco na fila
com os filhos, ou no estúdio referindo-se ao
presidente militar como "tirano" na letra
de uma música); que prefere ver no material que
tem em mãos não a possibilidade de uma
tese (sobre classe, sobre ascensão social, sobre
a música sertaneja, mesmo), mas um simples relato
familiar que se fecha quase em si mesmo. Considerando
que tantos exemplos frustrados de ficção
recentemente estreados só conseguem encarar seus
personagens do ponto de vista do tipo político-sociológico
(Quase Dois Irmãos), como elementos de
um painel burlescamente variado (O Diabo a Quatro)
ou como pretexto para um discurso todo pronto (Quanto
Vale ou É por Quilo, e novamente o filme
de Lúcia Murat), 2 Filhos de Francisco tem
um parti-pris totalmente diferente. Estamos aqui
diante de um filme que diz que seus heróis são
simplesmente eles mesmos, e que essa simplicidade é
emocionante (além de Carlos Reichenbach, não
são muitos os filmes que não têm
medo de cair no sentimentalismo).
Estamos aqui diante de um filme assumidamente cafona,
feito sem o superego estético de certa comunidade
cinematográfica crítico e parte
do público incluídos que quer "filmes
populares mas de arte", e que retoma um certo registro
de produto de classe como não víamos bem
executados em sabe-se lá quantos anos (sim, estamos
falando dos gêneros eternamente odiados da chanchada,
da pornochanchada, do filme caipira, de todas as ficções
de classe baixa não-politizadas). É o
tipo de coisa com a qual a gente se depara quando vê,
alguns minutos antes do final do filme, uma cena passada
em uma cozinha de apartamento de classe média
baixa é um café da manhã
antes das meninas irem para a escola , onde os
personagens mal se conseguem se locomover pelo espaço
exíguo que sobra. Há quanto tempo não
víamos um cenário como esse, e há
quanto tempo não víamos esse aproveitamento?
Diga-se o que se quiser dizer, estamos aqui há
anos-luz do projeto de folclorização da
classe baixa levado a cabo pelos lamentáveis
projetos rodriguianos da Conspiração,
ou por uma aberração como O Homem do
Ano. Aqui, os personagens vivem, não precisam
ser metaforizados para assumir dimensões bigger-than-life,
e habitam os lugares em que vivem. É um tremendo
avanço.
Toda a ingênua dialética caipira/chique,
música chula/filme não-chulo, autenticidade/mercado
pertence a uma estratégia diversionista que revela
apenas mal-estar com o tema do filme ou falta de jeito
para lidar com o que está na tela. Não
falaremos disso simplesmente porque a situação
não se presta ou por simples falta de
saco. Já digerimos devidamente nosso tropicalismo.
Estamos diante de dois filhos e um Francisco, nada mais.
Na conjuntura, isso já é muita coisa.
Ruy Gardnier
|