Daqueles casos
a serem examinados com muito cuidado, Sr. & Sra.
Smith é um filme que vai buscar toda a sua existência
num combustível do absurdo. Não é difícil descartá-lo
como uma visão conservadora da América, consolidada
com a reunião do casal posto a se assassinar de volta
ao matrimônio, sem falar na quantidade absurda de possíveis
leituras com relação ao armamento e o militarismo –
a estas tantas possíveis visões, calcadas em coisas
que estão no filme, a própria obra responde com seus
cortes, giros e estrutura cinematográfica. Aqui a ordem
é a do movimento, em especial aquele que se dá dentro
do quadro, a tal ponto que, em certo momento, as pessoas
realmente chegam a se parecer com objetos de cena prontos
a explodir a qualquer momento.
Doug Liman é um destes
cineastas cuja trajetória já deixou de ser uma curiosidade
há algum tempo. Forte nome do cinema independente, onde
realizou um belo projeto que pertencia a seu ator em
questão naquele momento (Swingers e Jon Favreau),
e posteriormente uma simpática picaretagem (Vamos
Nessa),
migrou o mais rápido possível para dentro da indústria,
curiosamente adentrando o gênero de ação (antes deste
filme, fez A Identidade Bourne), tendo em vista
que suas maiores qualidades sempre apontaram para a
comédia; ainda que A Identidade Bourne não seja
um fracasso, não surpreende então que os momentos mais
fortes de Sr. & Sra. Smith sejam mesmo os
de comédia. Liman tende a conduzir tudo com um sorriso
no rosto, evacuando todos os possíveis aspectos trágicos
do embate, o que no geral faz com que as cenas de ação
ganhem formas um tanto interessantes. E aí vale ressaltar
que a partir de certo momento, o filme não deixa de
ter ação por um instante. Na aposta em encontrar as
chaves cômicas, Angelina Jolie acaba por ficar um pouco
de lado, enquanto Brad Pitt tem alguns momentos realmente
fortes de comédia, lembrando o tom de suas performances
nos recentes Onze Homens e Um Segredo e Doze
Homens e Outro Segredo, auxiliado em cena ainda
por Vince Vaughn, com quem Liman já havia trabalhado
(e muito bem) em Swingers, garantindo uma boa
base cômica ao filme.
Se não há nenhuma novidade
em filmes satíricos sobre matrimônio em crise, aqui
ainda há ação de maneira megalomaníaca - mas talvez
o grande acerto de Liman seja ao não tentar dar algum
tipo de credibilidade factual para o que narra. Logo
de cara vemos como o casal se conheceu e como vive –
ambos assassinos profissionais que escondem suas profissões
há seis anos um do outro, vivendo sobre o mesmo teto,
com uma quantidade ridiculamente absurda de armas escondidas
pela casa. Tudo filmado sem nenhuma crença na veracidade
dos fatos, mas com total crença na força cinematográfica
que tudo isso pode gerar – é daí que surgem tantos e
tantos outros absurdos saudáveis, às vezes cuspidos,
às vezes bem arquitetados, mas que vão aos poucos tomando
conta de vez em cena. É verdade que Liman está longe
de ser um grande cineasta e não tem a habilidade necessária
pra jogar isto em cena funcionando sempre - ele abusa
das fírulas e, muitas vezes sem saber o que fazer, a
partir delas se perde, faltando um certo talento especial
com o pôr-em-cena para articular todo o caos
que cria, mas o conceito de partida é bastante forte.
A
química entre Pitt e Jolie só vai funcionar pra valer
a partir do começo do “quebra-pau”, mas Liman consegue
dinamizar bem o princípio do filme, permitindo que os
momentos “solo” do casal sejam o foco inicial, mas também
o ponto do matrimônio emperrado em que vivem. O tiroteio
final avança para além dos absurdos, dispensando até
mesmo um final – foram filmados dois duelos finais diferentes
entre o casal e seus patrões, mas a conclusão final
é a de que o filme perderia seu tom com este embate.
E seu tom estilizadamente over, se não chegasse a cansar, seria o trunfo final do filme, já que
sintetiza tudo aquilo que ele representa. Não há qualquer
ordem lógica dos atos, mas ao mesmo tempo há uma noção
muito bem postada de espaço. Utilizando sempre bem os
dublês (seus objetos de cena). Sr. & Sra. Smith é um filme tão inquieto que, até mesmo numa cena em que não
haveria qualquer razão de mover a câmera (quando o casal
fica frente à câmera no terapeuta), ele não consegue
deixar de fazer pequenos movimentos de um lado ao outro.
Talvez o grande problema do filme seja que ele nunca
consiga brilhar para além de uma base conceitual interessante,
mas vale a tentativa.
Guilherme Martins
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