UM PANORAMA DA COMPETITIVA DE CURTAS
Festival Brasileiro de Cinema Universitário 2005

Excelente panorama do cinema nascente do país, o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, que este ano teve sua décima edição, sempre nos permite perceber tendências e traçar movimentos que animam os cineastas talvez mais livres de todos. Sentimos um frescor de quem ainda não conhece bem as regras do jogo, não absorveu ou desenvolveu limites nem formatações acerca daquilo que pode fazer – leve isso a resultados excelentes ou desastrosos. Este ano, tivemos o prazer de acompanhar filmes em média muito mais interessantes do que os dos anos anteriores. Havia uma agitação diferente, um entusiasmo a mais parecia percorrer os filmes, talvez um entusiasmo relativo ao cuidado com a imagem, sem descambar para maneirismos vazios ou auto-referentes em excesso, algo que, de uma forma geral, costuma ser bastante recorrente nesta produção. Desta forma, pudemos ver não apenas filmes nos quais percebe-se uma dedicação especial no trabalho conceitual das imagens, como uma consciência maior do filme como estruturador de uma Imagem do objeto escolhido.

A consciência de uma conceitualização formal da construção imagética esteve presente nos melhores filmes da Competitiva. Em O Nome Dele (O Clóvis), de Felipe Bragança e Marina Meliande, a história de um amor de verão impactado com a tragicidade das ruas do Rio de Janeiro é picturizada em 1:37:1, em quadros planificados que contêm toda a ação de uma cena sem cortes e puxam a idéia do "desenho sobre a tela", tornando, inclusive, as falas, imagem, em cartelas destituídas de um tempo-espaço específico. A narrativa nos vem pela apreensão de unidades relativamente independentes, como numa projeção de slides. Quando um Burro Fala..., de Roberto Robalinho e Aurélio Aragão, por sua vez, apresenta um cuidado com a mise-em-scéne que revela uma grande capacidade de síntese imagética, de agregação e diversificação de sentidos no interior de um plano. As histórias inventadas sobre a possível origem da praia de Itaipu recebem ecos míticos e autenticidade "documental" na fala de personagens pescadores que as apropriam; e ganham aspecto visual de fábula na observação que a câmera descreve de uma materialização destas falas que não se atém estritamente ao narrado. Em ambos os filmes, o espectador é chamado a participar, a interagir com o que vê e ouve, a apreender a imagem de uma forma lúdica.

Outros filmes trouxeram esta consciência apontada, mais para o plano da linguagem. Desordem, de Ana Priscila Freire, por exemplo, promove uma agregação de elementos no interior do quadro, principalmente com a utilização de projeção de slides nas paredes do apartamento do personagem – transformando o quadro numa colagem que multiplica e embaralha espaços-tempos – para contar a progressiva desestruturação deste homem solitário em meio à hostilidade urbana. Há aí uma relação estreita da forma da imagem com a enunciação que ela pretende. Como em id, de Indira Dominici, no qual é a fragmentação do espaço-tempo da também fragmentada personagem, que estrutura a imagem e o som, presumindo sempre um vasto e desconhecido espaço fora-da-tela, no qual residiriam as possíveis conexões destas "partes perdidas". Já Noturno, de Daniel Salaroli e Quelany Vicente, brinca com este espaço fora-da-tela – espaço da imaginação do personagem e habitat privilegiado das criaturas de terror – inserindo estas criaturas no interior do quadro, que em tese corresponde a todo o espaço do quarto em que se passa o filme. Através de truques, jogos de luz e sombra e personificações de todo um imaginário coletivo, o filme retoma com propriedade as características do expressionismo cinematográfico.

Também numa chave de "retomada", temos Veja e Ouça – Maria Baderna no Brasil, de André Francioli, que busca, através de uma releitura de signos do cinema marginal, fazer um retrato da situação do Brasil hoje. Utilizando-se admiravelmente de inúmeras referências, históricas e culturais, ele forja uma imagem bastante particular e atinge uma veia discursiva crítico-satírica lamentavelmente em falta no cenário cinematográfico nacional hoje.

Alinhando-se a este esforço de trabalhar com o registro de manifestações sócio-culturais, temos mais dois filmes que se destacaram por suas atitudes com seus objetos: O Homem da Mata, de Antônio Carrilho, e Onde a Noite Acaba, de Poliana Paiva. Tanto um quanto o outro buscam um tratamento fílmico que reflita e se adeque às manifestações específicas que se dedicaram a captar. No caso do primeiro, é o folclore da Zona da Mata – personificado no artista múltiplo, também canavieiro e mateiro, do título – que matiza a película. O filme o acompanha para dar vazão a toda a expressividade que ele é capaz de encarnar, a todos os traços locais que ele retrabalha imaginativamente para dar alma a um personagem próprio. Carrilho faz então um misto de filme documental, folclórico e de faroeste, numa ficcionalização que se apropria de um universo um tanto marginalizado da imagem cinematográfica, para ceder-lhe um espaço de manifestação e inventividade. No filme de Poliana Paiva, é a boemia da Lapa e seus diferentes personagens que procuram ser retratados pela câmera. No limiar entre a tipificação e a autenticidade, eles buscam manifestar sua vida na madrugada antes do amanhecer. Registro permeado de fugacidade, o filme fixa como pode este mundo no qual mergulha, imprimindo impressões bastante autênticas.

Autenticidade, aliás, é marca do Dança, de Martha Nowill. Contaminado de uma afetividade pelos personagens calcada em sensações fugidias e pequenos acontecimentos diários, algo raro na produção brasileira, o filme é prosaico e despretencioso, demonstrando grande domínio de estilo, característica que guarda em comum com Sobre a Maré, filme do Projeto Sal Grosso apresentado este ano (que não integra a Competitiva). O filme de Guilherme Martins – não o redator da Contracampo, mas um homônimo – é muito marcante em toda a visualidade e sonoridade que constrói para tornar real a vivência interior do seu personagem, um marinheiro vivendo num apartamento numa cidade grande e que insiste em não perder o contato com o mar.

Todos os filmes citados presentes na Competitiva – à exceção de Dança – foram agraciados de alguma forma pelos diferentes júris presentes no Festival, testemunhando a premiação mais "sensata" dos últimos anos do evento. Em praticamente todos os debates da Competitiva de Curtas fez-se presente uma postura bastante crítica, que prevaleceu sobre as discussões retóricas ou análises frívolas que em geral pipocam. Pelos debates – outra feliz característica particular deste Festival – pôde-se também perceber de maneira concreta a formação de alguns núcleos de trabalho nas diferentes universidades do país que já apresentam traços bem próprios, delineando um caminho a ser seguido e esboçando um projeto de cinema. Da UnB, a Produtora Lumiô – pela primeira vez apresentando filmes no Festival Universitário – trouxe três curtas: Seqüestramos Augusto César, Papá e Maria Morango. Formada em sua maioria por estudantes de publicidade, a produtora é, na verdade, uma associação de amigos movidos pelo desejo de produzir filmes populares que visem basicamente o entretenimento. Concentrados em fazer vídeos, eles contam eventualmente com editais de incentivo à cultura para passá-los para filme e poder distribuí-los melhor, como é o caso destes três primeiros curtas. Com um projeto bastante autoral, Felipe Bragança e Marina Meliande e sua equipe têm com O Nome Dele (O Clóvis) seu segundo filme juntos – o primeiro foi Por Dentro de uma Gota d’Água. Bastante coesa e toda formada por alunos da UFF, eles já realizaram um terceiro trabalho, Jonas e a Baleia, que está em fase de finalização. Também trilhando este caminho de envolvimento profissional e afetivo que leva à confecção de filmes que apresentam uma certa unidade estilístico-conceitual entre si temos mais dois grupos: a equipe envolvida na realização de Noturno, da ECA-USP, que também está em grande parte em Sobre a Maré e a equipe no coração de Quando um Burro Fala..., amigos bastante próximos envolvidos não apenas com o fazer cinema, como também com a discussão e produção de mostras, revelando uma integração para além da escalação de uma equipe para ocupar funções técnicas.

Além destas particularidades apontadas, pudemos também observar algumas recorrências, como a tematização do universo da favela e da periferia, quase sempre colorida com violência. A violência, aliás, permanece, mesmo que não tão explicitamente, bastante presente como um todo, muitas vezes no elemento da morte, o que terminou por ocasionar o seguinte comentário durante um dos debates: "por que tantos personagens morrem? O que os leva a matar seus personagens?". Seria transfiguração de uma sensação de falência? Ou simplesmente assimilação de "efeitos" narrativos capazes de criar "viradas" de roteiro?

Ficamos com estas e outras perguntas, e com diversas impressões, que podem ou não tomar formas mais consistentes um pouco adiante, com o prosseguimento de alguns e a desistência de outros destes aspirantes ao cinema brasileiro. De qualquer forma, nos proveram neste ano com excelentes exemplares e uma excelente competição.


Tatiana Monassa

 

 




O Nome Dele (O Clóvis),
de Felipe Bragança e Marina Meliande


Veja e Ouça – Maria Baderna no Brasil,
de André Francioli