Excelente panorama do cinema nascente do país,
o Festival Brasileiro de Cinema Universitário,
que este ano teve sua décima edição,
sempre nos permite perceber tendências e traçar
movimentos que animam os cineastas talvez mais livres
de todos. Sentimos um frescor de quem ainda não
conhece bem as regras do jogo, não absorveu ou
desenvolveu limites nem formatações acerca
daquilo que pode fazer – leve isso a resultados excelentes
ou desastrosos. Este ano, tivemos o prazer de acompanhar
filmes em média muito mais interessantes do que
os dos anos anteriores. Havia uma agitação
diferente, um entusiasmo a mais parecia percorrer os
filmes, talvez um entusiasmo relativo ao cuidado com
a imagem, sem descambar para maneirismos vazios ou auto-referentes
em excesso, algo que, de uma forma geral, costuma ser
bastante recorrente nesta produção. Desta
forma, pudemos ver não apenas filmes nos quais
percebe-se uma dedicação especial no trabalho
conceitual das imagens, como uma consciência maior
do filme como estruturador de uma Imagem do objeto escolhido.
A consciência de uma conceitualização
formal da construção imagética
esteve presente nos melhores filmes da Competitiva.
Em O Nome Dele (O Clóvis), de Felipe Bragança
e Marina Meliande, a história de um amor de verão
impactado com a tragicidade das ruas do Rio de Janeiro
é picturizada em 1:37:1, em quadros planificados
que contêm toda a ação de uma cena
sem cortes e puxam a idéia do "desenho sobre
a tela", tornando, inclusive, as falas, imagem,
em cartelas destituídas de um tempo-espaço
específico. A narrativa nos vem pela apreensão
de unidades relativamente independentes, como numa projeção
de slides. Quando um Burro Fala..., de Roberto
Robalinho e Aurélio Aragão, por sua vez,
apresenta um cuidado com a mise-em-scéne
que revela uma grande capacidade de síntese imagética,
de agregação e diversificação
de sentidos no interior de um plano. As histórias
inventadas sobre a possível origem da praia de
Itaipu recebem ecos míticos e autenticidade "documental"
na fala de personagens pescadores que as apropriam;
e ganham aspecto visual de fábula na observação
que a câmera descreve de uma materialização
destas falas que não se atém estritamente
ao narrado. Em ambos os filmes, o espectador é
chamado a participar, a interagir com o que vê
e ouve, a apreender a imagem de uma forma lúdica.
Outros filmes trouxeram esta consciência apontada,
mais para o plano da linguagem. Desordem, de
Ana Priscila Freire, por exemplo, promove uma agregação
de elementos no interior do quadro, principalmente com
a utilização de projeção
de slides nas paredes do apartamento do personagem –
transformando o quadro numa colagem que multiplica e
embaralha espaços-tempos – para contar a progressiva
desestruturação deste homem solitário
em meio à hostilidade urbana. Há aí
uma relação estreita da forma da imagem
com a enunciação que ela pretende. Como
em id, de Indira Dominici, no qual é a
fragmentação do espaço-tempo da
também fragmentada personagem, que estrutura
a imagem e o som, presumindo sempre um vasto e desconhecido
espaço fora-da-tela, no qual residiriam as possíveis
conexões destas "partes perdidas".
Já Noturno, de Daniel Salaroli e Quelany
Vicente, brinca com este espaço fora-da-tela
– espaço da imaginação do personagem
e habitat privilegiado das criaturas de terror – inserindo
estas criaturas no interior do quadro, que em tese corresponde
a todo o espaço do quarto em que se passa o filme.
Através de truques, jogos de luz e sombra e personificações
de todo um imaginário coletivo, o filme retoma
com propriedade as características do expressionismo
cinematográfico.
Também numa chave de "retomada", temos
Veja e Ouça – Maria Baderna no Brasil,
de André Francioli, que busca, através
de uma releitura de signos do cinema marginal, fazer
um retrato da situação do Brasil hoje.
Utilizando-se admiravelmente de inúmeras referências,
históricas e culturais, ele forja uma imagem
bastante particular e atinge uma veia discursiva crítico-satírica
lamentavelmente em falta no cenário cinematográfico
nacional hoje.
Alinhando-se a este esforço de trabalhar com
o registro de manifestações sócio-culturais,
temos mais dois filmes que se destacaram por suas atitudes
com seus objetos: O Homem da Mata, de Antônio
Carrilho, e Onde a Noite Acaba, de Poliana Paiva.
Tanto um quanto o outro buscam um tratamento fílmico
que reflita e se adeque às manifestações
específicas que se dedicaram a captar. No caso
do primeiro, é o folclore da Zona da Mata – personificado
no artista múltiplo, também canavieiro
e mateiro, do título – que matiza a película.
O filme o acompanha para dar vazão a toda a expressividade
que ele é capaz de encarnar, a todos os traços
locais que ele retrabalha imaginativamente para dar
alma a um personagem próprio. Carrilho faz então
um misto de filme documental, folclórico e de
faroeste, numa ficcionalização que se
apropria de um universo um tanto marginalizado da imagem
cinematográfica, para ceder-lhe um espaço
de manifestação e inventividade. No filme
de Poliana Paiva, é a boemia da Lapa e seus diferentes
personagens que procuram ser retratados pela câmera.
No limiar entre a tipificação e a autenticidade,
eles buscam manifestar sua vida na madrugada antes do
amanhecer. Registro permeado de fugacidade, o filme
fixa como pode este mundo no qual mergulha, imprimindo
impressões bastante autênticas.
Autenticidade, aliás, é marca do Dança,
de Martha Nowill. Contaminado de uma afetividade pelos
personagens calcada em sensações fugidias
e pequenos acontecimentos diários, algo raro
na produção brasileira, o filme é
prosaico e despretencioso, demonstrando grande domínio
de estilo, característica que guarda em comum
com Sobre a Maré, filme do Projeto Sal
Grosso apresentado este ano (que não integra
a Competitiva). O filme de Guilherme Martins
não o redator da Contracampo, mas um homônimo
é muito marcante em toda a visualidade
e sonoridade que constrói para tornar real a
vivência interior do seu personagem, um marinheiro
vivendo num apartamento numa cidade grande e que insiste
em não perder o contato com o mar.
Todos os filmes citados presentes na Competitiva – à
exceção de Dança – foram
agraciados de alguma forma pelos diferentes júris
presentes no Festival, testemunhando a premiação
mais "sensata" dos últimos anos do
evento. Em praticamente todos os debates da Competitiva
de Curtas fez-se presente uma postura bastante crítica,
que prevaleceu sobre as discussões retóricas
ou análises frívolas que em geral pipocam.
Pelos debates – outra feliz característica particular
deste Festival – pôde-se também perceber
de maneira concreta a formação de alguns
núcleos de trabalho nas diferentes universidades
do país que já apresentam traços
bem próprios, delineando um caminho a ser seguido
e esboçando um projeto de cinema. Da UnB, a Produtora
Lumiô – pela primeira vez apresentando filmes
no Festival Universitário – trouxe três
curtas: Seqüestramos Augusto César,
Papá e Maria Morango. Formada em
sua maioria por estudantes de publicidade, a produtora
é, na verdade, uma associação de
amigos movidos pelo desejo de produzir filmes populares
que visem basicamente o entretenimento. Concentrados
em fazer vídeos, eles contam eventualmente com
editais de incentivo à cultura para passá-los
para filme e poder distribuí-los melhor, como
é o caso destes três primeiros curtas.
Com um projeto bastante autoral, Felipe Bragança
e Marina Meliande e sua equipe têm com O Nome
Dele (O Clóvis) seu segundo filme juntos
– o primeiro foi Por Dentro de uma Gota d’Água.
Bastante coesa e toda formada por alunos da UFF, eles
já realizaram um terceiro trabalho, Jonas
e a Baleia, que está em fase de finalização.
Também trilhando este caminho de envolvimento
profissional e afetivo que leva à confecção
de filmes que apresentam uma certa unidade estilístico-conceitual
entre si temos mais dois grupos: a equipe envolvida
na realização de Noturno, da ECA-USP,
que também está em grande parte em Sobre
a Maré e a equipe no coração
de Quando um Burro Fala..., amigos bastante próximos
envolvidos não apenas com o fazer cinema, como
também com a discussão e produção
de mostras, revelando uma integração para
além da escalação de uma equipe
para ocupar funções técnicas.
Além destas particularidades apontadas, pudemos
também observar algumas recorrências, como
a tematização do universo da favela e
da periferia, quase sempre colorida com violência.
A violência, aliás, permanece, mesmo que
não tão explicitamente, bastante presente
como um todo, muitas vezes no elemento da morte, o que
terminou por ocasionar o seguinte comentário
durante um dos debates: "por que tantos personagens
morrem? O que os leva a matar seus personagens?".
Seria transfiguração de uma sensação
de falência? Ou simplesmente assimilação
de "efeitos" narrativos capazes de criar "viradas"
de roteiro?
Ficamos com estas e outras perguntas, e com diversas
impressões, que podem ou não tomar formas
mais consistentes um pouco adiante, com o prosseguimento
de alguns e a desistência de outros destes aspirantes
ao cinema brasileiro. De qualquer forma, nos proveram
neste ano com excelentes exemplares e uma excelente
competição.
Tatiana Monassa
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