O letreiro
inicial avisa que a história trata de fatos reais. Acompanha-se
o percurso de um jovem basco, entre 1973 e 1975. No
início, ele é o pai de família descontente com a ditadura
franquista. Mas ao mesmo tempo em que abriga em sua
casa integrantes do ETA (grupo separatista, pela independência
do país basco) ele tenta salvar a vida de um taxista
que os militantes irão assassinar, sob acusação de traição.
A dificuldade econômica para sustentar esposa e filho
faz com que aceite a proposta de um alto funcionário
do serviço secreto espanhol, para atuar como agente
infiltrado no ETA. A partir daí ele se torna Lobo, integra-se
à organização e em pouco tempo assume papel importante,
em contato direto com as principais lideranças. Dois
anos depois de começar a atuar como agente duplo, ele
entrega ao serviço secreto o nome e as coordenadas de
dezenas de militantes. E só não leva adiante sua tarefa,
desbaratando de vez a organização, por imposição do
governo militar, que o tira de circulação, dando-lhe
novo rosto e identidade. À ditadura, nos é explicado
em um diálogo, convém manter a ameaça terrorista, como
forma de justificar seus atos autoritários e conquistar
o apoio da opinião pública, enfraquecendo a articulação
dos partidos de esquerda.
Traidor, delator, agente da ditadura franquista – esse
é o herói de O Lobo. O interesse pela ambigüidade
moral dessa figura poderia trazer maior complexidade
ao filme. Não é o caso. O olhar maniqueísta se impõe.
Se entre a ditadura militar e o terrorismo não é possível
tomar partido e estabelecer o embate entre vilões e
mocinhos, o que se faz é eleger como herói um terceiro
elemento, que não se ajusta plenamente a nenhum dos
lados, embora faça parte de ambos. Diante do fanatismo
e dos conchavos na luta pelo poder que caracterizam
tanto os franquistas quanto os terroristas, Lobo desponta
pelo seu idealismo e pela integridade de seus propósitos,
que se mantêm inalterados do começo ao fim da trama.
Por meio desse mecanismo, o filme constrói um pólo positivo
para a vilania da direita e da esquerda radical, garantindo
um mocinho para a história. O tratamento maniqueísta
vai se encarregar também de distinguir, dentro de cada
segmento, as figuras do bem e do mal. Assim, haverá
o ético funcionário do serviço secreto, que desobedece
a ordens superiores para dar apoio a Lobo, e também
o líder terrorista com discurso conciliador, propondo
uma inserção do ETA por meio da política partidária
e não mais dos atentados violentos.
A exemplo de outros filmes recentes, que tratam de lutas
políticas das últimas décadas numa chave narrativa convencional,
mirando o público mais amplo, O Lobo arma uma
espécie de mecanismo de compensação. Equilibra a “ousadia”
na escolha do tema com um tratamento absolutamente domesticado,
que ameniza suas asperezas e evita o pantanoso terreno
da ambigüidade, preferindo submeter-se, obediente, às
regras do cinema de gênero. Enquanto Kamchatka
(Marcelo Piñeyro, 2002) apela para o melodrama familiar,
privilegiando o olhar da criança sobre as conseqüências
na esfera doméstica da perseguição política durante
a ditadura argentina, O Lobo e também O que
é isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997) partem
para o thriller, valendo-se do tema como recurso
para incrementar a ação, com as devidas perseguições
e momentos de suspense. Outro ponto a aproximar o filme
espanhol e o brasileiro é a escolha dos personagens
que mais valorizam: um traidor idealista, no primeiro;
e no outro um torturador em crise de consciência. Existe
pouco mérito na tentativa de “humanizar” essas figuras,
já que a estratégia que se configura é a de escapar
ao confronto, à tomada de posição diante do que se conta,
refugiando-se na excepcionalidade desses personagens
e relegando os demais ao limbo dos clichês.
Procedimento semelhante se percebe até num autor de
quem se poderia esperar maior disposição para encarar
as contradições políticas de uma época. Em Os sonhadores
(2003), Bernardo Bertolucci reconstitui o maio de 1968
em Paris adotando como chave de compreensão o ponto
de vista de um jovem americano, munido de todo puritanismo
afetivo e conservadorismo ideológico que os valores
familiares do meio-oeste são capazes de prover. Felizmente,
sempre se pode contar com Marco Bellocchio, que em Bom
dia, noite (2003) encara o traumático episódio do
seqüestro e morte do político italiano Aldo Moro por
militantes da Brigada Vermelha, dispensando os tratamentos
conciliatórios e colocando em questão tanto as razões
dos seqüestradores quanto os procedimentos do Estado
e da igreja católica.
Certamente não é a facção
bellocchiana do cinema político dos anos 60 e 70 que
inspira O Lobo, mais afinado com o modelo consagrado
por Costa-Gavras em Z (1968). Mesmo como thriller,
no entanto, o filme espanhol não se equipara à eficiência
do especialista em cinema político de entretenimento.
Quando as falhas no roteiro incomodam e a música se
faz necessária para socorrer a precariedade dramática
da narrativa é sinal de que o gênero não está recebendo
tratamento apropriado. Para completar, sobre o último
plano e os créditos, entra “The partisan”, versão para
uma canção da resistência francesa – Leonard Cohen como
derradeiro recurso para enobrecer esse herói dedo-duro
a serviço da ditadura franquista.
Luciana Corrêa de Araújo
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