O LOBO
Miguel Courtois, El Lobo, Espanha, 2004

O letreiro inicial avisa que a história trata de fatos reais. Acompanha-se o percurso de um jovem basco, entre 1973 e 1975. No início, ele é o pai de família descontente com a ditadura franquista. Mas ao mesmo tempo em que abriga em sua casa integrantes do ETA (grupo separatista, pela independência do país basco) ele tenta salvar a vida de um taxista que os militantes irão assassinar, sob acusação de traição. A dificuldade econômica para sustentar esposa e filho faz com que aceite a proposta de um alto funcionário do serviço secreto espanhol, para atuar como agente infiltrado no ETA. A partir daí ele se torna Lobo, integra-se à organização e em pouco tempo assume papel importante, em contato direto com as principais lideranças. Dois anos depois de começar a atuar como agente duplo, ele entrega ao serviço secreto o nome e as coordenadas de dezenas de militantes. E só não leva adiante sua tarefa, desbaratando de vez a organização, por imposição do governo militar, que o tira de circulação, dando-lhe novo rosto e identidade. À ditadura, nos é explicado em um diálogo, convém manter a ameaça terrorista, como forma de justificar seus atos autoritários e conquistar o apoio da opinião pública, enfraquecendo a articulação dos partidos de esquerda. 

Traidor, delator, agente da ditadura franquista – esse é o herói de O Lobo. O interesse pela ambigüidade moral dessa figura poderia trazer maior complexidade ao filme. Não é o caso. O olhar maniqueísta se impõe. Se entre a ditadura militar e o terrorismo não é possível tomar partido e estabelecer o embate entre vilões e mocinhos, o que se faz é eleger como herói um terceiro elemento, que não se ajusta plenamente a nenhum dos lados, embora faça parte de ambos. Diante do fanatismo e dos conchavos na luta pelo poder que caracterizam tanto os franquistas quanto os terroristas, Lobo desponta pelo seu idealismo e pela integridade de seus propósitos, que se mantêm inalterados do começo ao fim da trama. Por meio desse mecanismo, o filme constrói um pólo positivo para a vilania da direita e da esquerda radical, garantindo um mocinho para a história. O tratamento maniqueísta vai se encarregar também de distinguir, dentro de cada segmento, as figuras do bem e do mal. Assim, haverá o ético funcionário do serviço secreto, que desobedece a ordens superiores para dar apoio a Lobo, e também o líder terrorista com discurso conciliador, propondo uma inserção do ETA por meio da política partidária e não mais dos atentados violentos.

A exemplo de outros filmes recentes, que tratam de lutas políticas das últimas décadas numa chave narrativa convencional, mirando o público mais amplo, O Lobo arma uma espécie de mecanismo de compensação. Equilibra a “ousadia” na escolha do tema com um tratamento absolutamente domesticado, que ameniza suas asperezas e evita o pantanoso terreno da ambigüidade, preferindo submeter-se, obediente, às regras do cinema de gênero. Enquanto Kamchatka (Marcelo Piñeyro, 2002) apela para o melodrama familiar, privilegiando o olhar da criança sobre as conseqüências na esfera doméstica da perseguição política durante a ditadura argentina, O Lobo e também O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997) partem para o thriller, valendo-se do tema como recurso para incrementar a ação, com as devidas perseguições e momentos de suspense. Outro ponto a aproximar o filme espanhol e o brasileiro é a escolha dos personagens que mais valorizam: um traidor idealista, no primeiro; e no outro um torturador em crise de consciência. Existe pouco mérito na tentativa de “humanizar” essas figuras, já que a estratégia que se configura é a de escapar ao confronto, à tomada de posição diante do que se conta, refugiando-se na excepcionalidade desses personagens e relegando os demais ao limbo dos clichês.

Procedimento semelhante se percebe até num autor de quem se poderia esperar maior disposição para encarar as contradições políticas de uma época. Em Os sonhadores (2003), Bernardo Bertolucci reconstitui o maio de 1968 em Paris adotando como chave de compreensão o ponto de vista de um jovem americano, munido de todo puritanismo afetivo e conservadorismo ideológico que os valores familiares do meio-oeste são capazes de prover. Felizmente, sempre se pode contar com Marco Bellocchio, que em Bom dia, noite (2003) encara o traumático episódio do seqüestro e morte do político italiano Aldo Moro por militantes da Brigada Vermelha, dispensando os tratamentos conciliatórios e colocando em questão tanto as razões dos seqüestradores quanto os procedimentos do Estado e da igreja católica.

Certamente não é a facção bellocchiana do cinema político dos anos 60 e 70 que inspira O Lobo, mais afinado com o modelo consagrado por Costa-Gavras em Z (1968). Mesmo como thriller, no entanto, o filme espanhol não se equipara à eficiência do especialista em cinema político de entretenimento. Quando as falhas no roteiro incomodam e a música se faz necessária para socorrer a precariedade dramática da narrativa é sinal de que o gênero não está recebendo tratamento apropriado. Para completar, sobre o último plano e os créditos, entra “The partisan”, versão para uma canção da resistência francesa – Leonard Cohen como derradeiro recurso para enobrecer esse herói dedo-duro a serviço da ditadura franquista.

Luciana Corrêa de Araújo