SOB O DOMÍNIO DO MAL
John Frankenheimer, The Manchurian Candidate, EUA, 1968
Jonathan Demme, idem, EUA, 2004

Poucos são os remakes que acabam sendo filmes completamente diferentes do seu original. Filmado a partir da obra homônima de John Frankenheimer, o Sob o Domínio do Mal de Jonathan Demme é um desses casos. Melhor para ele, pois a trama de base do filme de Frankenheimer só poderia surtir algum efeito hoje se realmente fossem sacudidos seus alicerces. E assim se fez: dinamismo, complexidade e indefinição de fronteiras (do corpo, da mente, da política) substituíram aquilo que no original parecia por demais enquadrado a um esquema narrativo que, embora assombrado por fantasmas de modernidade, ainda se esforçava para resguardar a transparência dos grandes clássicos. A Guerra Fria, a que o roteiro de George Axelrod fazia menção o tempo todo, induziu um pensamento de mundo segundo oposições binárias. O Ben Marco de Frank Sinatra e o Raymond Shaw de Laurence Harvey, assim sendo, podem bipolarizar a trama – não em termos de antagonista-protagonista, mas antes de positividade-negatividade. O Ben Marco de Denzel Washington e o Raymond Shaw de Liev Shreiber, por sua vez, não se vêem aptos a definir seus papéis no universo conspiratório em que se encontram.

O filme de Demme demonstra uma política de dominação muito mais invasiva, que implanta chips no corpo e no cérebro de ex-combatentes para que eles possam ser manipulados. Não é mais a hipnose como uma tecnologia da mente aplicada por um especialista. Trata-se, em 2004, da robotização do homem através de invasão cirúrgica. Se em 1968 havia uma influência determinante da psicanálise, agora a neurofisiologia fala muito mais alto, e o que antes se traduzia por uma linguagem da mente hoje se encontra acessível por uma cartografia funcional do cérebro, este tomado em sua materialidade, sua eletro-mecanicidade. E também não é de hoje que se fala em mecanismos de subjetivação e controle que atravessam todo o corpo social e atingem os organismos individuais, os corpos biológicos (em seus regimes de sono/vigília, dieta, sexo, lazer) sendo a última conquista do capitalismo tardio. Demme não se lança a teses, mas constrói todo um dinamismo plástico e toda uma sensação de violação (não somente do corpo, mas também da mente) que fazem do filme um modesto primeiro passo rumo à compreensão do terreno da política contemporânea (ou do que quer que se entenda por política hoje). Trata-se, em última análise, de construir a ambiência da política.

E que ambiência: com uma acurada concepção de cenografia e de montagem – de imagem e, principalmente, de som –, o filme de Demme cria uma mescla de registros que confunde os discursos proferidos por políticos na televisão (há sempre uma tv ligada) e forja uma interessante simultaneidade de tempos e espaços. O som de um plano persiste no plano seguinte, mesmo que o corte tenha acarretado uma mudança radical de locação. Gráfica e visualmente, o filme de Demme é bem mais confuso que o de Frankenheimer, embora este também estivesse longe de ser um exemplo de estética clean. Os reflexos nos vidros e a movimentação constante dentro dos planos fazem do novo Sob o Domínio do Mal um filme turbulento e saturado (o trabalho do diretor de fotografia Tak Fujimoto é primoroso). Existe um virtuosismo hitchcockiano que Demme incorpora muito bem à sua "intriga internacional", e que sobressai em algumas cenas (como no belo plano em que Raymond Shaw entra na cabine para votar).

O estado paranóico, que em Frankenheimer constitui uma mistura de comentário histórico derrisório e thriller político na linha – então muito em voga – Costa-Gavras/Francesco Rosi, em Demme resulta na constatação de instâncias de controle tão mais presentes quanto menos perceptíveis. Entre 1968 e 2004, muita coisa mudou. A política é outra, o capitalismo é outro (e reina sozinho), o cinema é outro, o mundo é outro. Sob o Domínio do Mal, portanto, não pode ser igual a Sob Domínio do Mal. Para além das muitas diferenças que o enredo sofreu na transição para o remake, existe uma diferença mais profunda, que diz respeito ao tom dos filmes e às visões de mundo que eles transmitem. Enquanto o filme de Frankenheimer é um thriller psico-político da era da Guerra Fria, o filme de Jonathan Demme está mais para um thriller corporativo da era pós-política. Tanto que o "Manchurian" do título original (The Manchurian Candidate), que em 1968 aludia diretamente à Guerra da Coréia, precisou encontrar ressonância em outro lugar (já que Demme, como consta no ótimo "documentário" que vem nos créditos do DVD, fez questão de manter o título original – de uma forma até brincalhona, ele confessa). A solução foi inserir uma mega-corporação, a "Manchurian Global", cujos interesses acompanham de perto a política externa norte-americana e seu envolvimento em guerras no Oriente Médio. Mais uma resposta do cinema americano ao bushismo, o Sob o Domínio do Mal de Jonathan Demme se sai bem melhor que o original – em termos políticos e estéticos, certamente, e também como lazer (a monotonia do filme de Frankenheimer é inexplicável).

Tanto em um quanto em outro filme é possível notar discretos traços de humor negro. Os diálogos de Eleanor Shaw com seu marido no filme original, em que ela praticamente o reduz a um fantoche eloqüente e descerebrado, são pontuados por comentários sarcasticamente hilários. Assim como as cenas da hipnose de Raymond, ou as cenas com o médico eslavo que introduz seus implantes (figura de rosto pálido e caricato que chega a fazer uma aparição lynchiana no banheiro do trem), são propositalmente perpassadas por um sentimento de que aquilo tudo é muito patético para ser levado a sério – o que não tira o seu perfil assustador. Política e show business são praticamente a mesma coisa no filme de Demme – no que a verve diabólica da Eleanor Shaw de Meryl Streep, verdadeira vilã deste novo filme, é apenas um detalhe performático –, e se a lógica quase nunca consegue se impor é porque o que está em jogo é justamente a representação de um surrealismo político.


Luiz Carlos Oliveira Jr.