MADAGASCAR
Eric Darnell e Tom McGrath, Madagascar, EUA, 2005

Alex, Marty, Melman e Gloria - o leão, a zebra, a girafa e o hipopótamo: amigos e estrelas no zoológico de Manhattan que se vêem desterrados para a longínqua Madagascar, onde, em face dos próprios instintos anteriormente adormecidos, precisam compreender o valor do companheirismo e do trabalho em equipe. Seguindo a fórmula consagrada por Shrek – comédia pastelão em teoria ácida e incorreta, que na verdade exalta o pressuposto de adequação social contido nos desenhos animados padrão Disney –, a mais recente animação da Dreamworks, ao falar do conflito entre civilização e barbárie, assemelha-se aos vídeos institucionais que grandes empresas exibem para os funcionários, pois também discursa a respeito da homogeneização coletiva a partir das potencialidades individuais, do descarte sumário da diferença e de sua conquista e sujeição pelas leis advindas da sociedade que se proclama “mais avançada”.

Rudyard Kipling, no século XIX, forjou o conceito do “fardo do homem branco”, que serviu como justificativa moral para as potências imperialistas européias colonizarem a África e a Ásia, pois se tratava de levar a civilização e o avanço científico-tecnológico a regiões atrasadas e não desenvolvidas do planeta. Embora parta da curiosidade de Marty em conhecer o mundo selvagem, em desfrutar da liberdade em seu habitat natural, Madagascar reafirma as táticas de dominação que a cultura eurocêntrica – branca, cristã, capitalista, agora deslocada para os EUA, centro de poder – lança mão para subjugar as periferias, visto que a jornada dos quatro amigos, desde o início, esteve pautada sobre a confirmação do estilo de vida exercido no zôo de Nova York (que se baseia no hedonismo, no culto ao ego e no espetáculo exibicionista), jamais se preocupando em compreender de fato o outro ecossistema que se apresenta. A atitude dos personagens centrais é de conquista: submeter o novo meio aos próprios caprichos, ação predatória que enxerga a natureza como inimiga, “selva” deseducada com a qual não desejam o menor contato.

Na selva pejorativa de Madagascar, os lêmures alucinados sevem de contraponto aos heróis urbanos. Herdeiros das comédias anárquicas dos irmãos Marx, das animações virulentas de Ub Iwerks e de Chuck Jones e do besteirol da trupe inglesa Monty Phyton, os lêmures – sobretudo o rei Julian – tentam a todo custo tirar vantagem dos visitantes (chamados de “New York Giants”, alusão sem graça à equipe de futebol americano da cidade), já que necessitam de proteção contra as hienas. Interesseiros, histéricos, medrosos, fúteis, abobalhados, os lêmures encarnam todos os vícios e incorreções que os afastam, bem ao gosto da cartilha Dreamworks, dos personagens nobres, idealizados e infantis da principal concorrente, voltados para a família norte-americana. Apesar de felizmente distantes dos animais fofinhos e que clamam pela compaixão da platéia, típicos dos estúdios Disney, os coadjuvantes de Madagascar possuem, para os cineastas Tom McGrath e Eric Darnell, a função dramática exclusiva de contrastar com os protagonistas, a fim de estabelecer o choque de culturas que está no coração da estrutura do filme: nós contra eles, os turistas nova yorkinos contra os bárbaros selvagens.

Nós que, no tocante aos heróis de Madagascar, refere-se à nova coletivização da era global, em que as diferenças individuais são suprimidas em prol da convivência democrática e do respeito mútuo (entre “nós”, não entre “nós” e “eles”, pois estes devem ser descartados). Em meio às já datadas citações cinematográficas e piadas sobre o mundo do entretenimento – que vão de National Geographic a O Planeta dos Macacos –, o leão Alex renega seus instintos assassinos, despertados pelo contato com a natureza, para manter a amizade com o restante do grupo: marginalizar-se da micro-sociedade que forma com os amigos não aparece como opção viável, uma vez que é o companheirismo que os separa da esperteza tresloucada dos lêmures. Fechados entre si e insensíveis ao que acontece ao redor, os quatro visitantes da cidade permanecem alheios ao ambiente, trocando a ação predatória natural em consonância com o meio pela destruição sistemática e racional do espaço, característica das organizações sociais ditas evoluídas.

Em Madagascar, na destruição da natureza, na negação da própria identidade, na tentativa de dominar os “incivilizados”, faltaram apenas aos heróis-turistas a máquina fotográfica e a filmadora para registrar esses momentos divertidos das férias.

Paulo Ricardo de Almeida