Alex, Marty, Melman e Gloria -
o leão, a zebra, a girafa e o hipopótamo: amigos e estrelas
no zoológico de Manhattan que se vêem desterrados para
a longínqua Madagascar, onde, em face dos próprios instintos
anteriormente adormecidos, precisam compreender o valor
do companheirismo e do trabalho em equipe. Seguindo
a fórmula consagrada por Shrek – comédia pastelão
em teoria ácida e incorreta, que na verdade exalta o
pressuposto de adequação social contido nos desenhos
animados padrão Disney –, a mais recente animação da
Dreamworks, ao falar do conflito entre civilização e
barbárie, assemelha-se aos vídeos institucionais que
grandes empresas exibem para os funcionários, pois também
discursa a respeito da homogeneização coletiva a partir
das potencialidades individuais, do descarte sumário
da diferença e de sua conquista e sujeição pelas leis
advindas da sociedade que se proclama “mais avançada”.
Rudyard Kipling, no século
XIX, forjou o conceito do “fardo do homem branco”, que
serviu como justificativa moral para as potências imperialistas
européias colonizarem a África e a Ásia, pois se tratava
de levar a civilização e o avanço científico-tecnológico
a regiões atrasadas e não desenvolvidas do planeta.
Embora parta da curiosidade de Marty em conhecer o mundo
selvagem, em desfrutar da liberdade em seu habitat natural,
Madagascar reafirma as táticas de dominação que
a cultura eurocêntrica – branca, cristã, capitalista,
agora deslocada para os EUA, centro de poder – lança
mão para subjugar as periferias, visto que a jornada
dos quatro amigos, desde o início, esteve pautada sobre
a confirmação do estilo de vida exercido no zôo de Nova
York (que se baseia no hedonismo, no culto ao ego e
no espetáculo exibicionista), jamais se preocupando
em compreender de fato o outro ecossistema que se apresenta.
A atitude dos personagens centrais é de conquista: submeter
o novo meio aos próprios caprichos, ação predatória
que enxerga a natureza como inimiga, “selva” deseducada
com a qual não desejam o menor contato.
Na selva pejorativa de Madagascar, os lêmures
alucinados sevem de contraponto aos heróis urbanos.
Herdeiros das comédias anárquicas dos irmãos Marx, das
animações virulentas de Ub Iwerks e de Chuck Jones e
do besteirol da trupe inglesa Monty Phyton, os lêmures
– sobretudo o rei Julian – tentam a todo custo tirar
vantagem dos visitantes (chamados de “New York Giants”,
alusão sem graça à equipe de futebol americano da cidade),
já que necessitam de proteção contra as hienas. Interesseiros,
histéricos, medrosos, fúteis, abobalhados, os lêmures
encarnam todos os vícios e incorreções que os afastam,
bem ao gosto da cartilha Dreamworks, dos personagens
nobres, idealizados e infantis da principal concorrente,
voltados para a família norte-americana. Apesar de felizmente
distantes dos animais fofinhos e que clamam pela compaixão
da platéia, típicos dos estúdios Disney, os coadjuvantes
de Madagascar possuem, para os cineastas Tom
McGrath e Eric Darnell, a função dramática exclusiva
de contrastar com os protagonistas, a fim de estabelecer
o choque de culturas que está no coração da estrutura
do filme: nós contra eles, os turistas nova yorkinos
contra os bárbaros selvagens.
Nós que, no tocante aos heróis de Madagascar,
refere-se à nova coletivização da era global, em que
as diferenças individuais são suprimidas em prol da
convivência democrática e do respeito mútuo (entre “nós”,
não entre “nós” e “eles”, pois estes devem ser descartados).
Em meio às já datadas citações cinematográficas e piadas
sobre o mundo do entretenimento – que vão de National
Geographic a O Planeta dos Macacos –, o leão
Alex renega seus instintos assassinos, despertados pelo
contato com a natureza, para manter a amizade com o
restante do grupo: marginalizar-se da micro-sociedade
que forma com os amigos não aparece como opção viável,
uma vez que é o companheirismo que os separa da esperteza
tresloucada dos lêmures. Fechados entre si e insensíveis
ao que acontece ao redor, os quatro visitantes da cidade
permanecem alheios ao ambiente, trocando a ação predatória
natural em consonância com o meio pela destruição sistemática
e racional do espaço, característica das organizações
sociais ditas evoluídas.
Em Madagascar, na
destruição da natureza, na negação da própria identidade,
na tentativa de dominar os “incivilizados”, faltaram
apenas aos heróis-turistas a máquina fotográfica e a
filmadora para registrar esses momentos divertidos das
férias.
Paulo Ricardo de Almeida
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