IRMA VEP
Olivier Assayas, Irma Vep, França, 1996

Divagações sobre as máquinas "invisíveis"

Há muito mais ligações entre cineastas aparentemente tão díspares como M. Night Shyamalan e Olivier Assayas do que percebemos em uma leitura mais convencional. São os dois autores que cultivam as "máquinas invisíveis", que ativam a narrativa e são como motores, centrifugadoras, do curso dos personagens. Pessoas orbitam segundo comandos dessas máquinas, que, nos filmes, equilibram a natureza; bombeiam e colocam silenciosamente à prova a organização das relações e dos projetos em coletividade. Para Shyamalan existe força divina, e ela é a própria máquina. Deus. Basta ver que em Sinais o apocalipse não-concretizado do filme serve como reanimador, na pequena esfera provinciana de um pastor, da crença deste homem na lógica das pequenas coisas e portanto em uma orquestração anterior à consciência humana. O Deus escrito, bíblico, é meio que dissipado, borrado, para que surja um Deus maior e cujas ações merecem fidelidade de fato, não apenas protocolar e ritualística. É essa a crise que Shyamalan dissolve, quando desvela o funcionamento de sua máquina. A máquina invisível de Shyamalan é nada menos do que a oculta e precisa conexão entre os homens e entre eles o meio em que vivem.

Para Assayas, não há Deus, ele não está em jogo, e não intervém no jogo. Mas sua máquina invisível funciona igualmente aquecida e azeitada. Para Assayas, essa máquina se chama história. A história de cada época que está sendo filmada pelo diretor, deve ser dito. Podemos chamar de contemporaneidade - cada contemporaneidade, então. No caso desta nossa contemporaneidade, um universo nublado, aditivado por milhões de signos, cheiros, torpores, propagados por agentes das mais diversas natureza. Um universo ao mesmo tempo perfumado, que embriaga e polui os corpos; que gera um ciclo de eterna provisoriedade - hotéis e a urbanidade em seu cosmopolitismo artificial são fundamentais nesses filmes - e que em algum momento terá de se envolver fortemente com parâmetros atemporais: a família, a adolescência, a criação dos filhos, o legado de gerações, o pragmatismo do amadurecimento e da responsabilidade ante a balizes conduta dentro nas escalas do trabalho e da família. Um universo no qual Assayas penetra convictamente porque é ele, em sua malha de cores, espaços mutantes ou em curto-circuito arquitetônico, em sua proposta nova e disfuncional para conceitos como o tempo, o abastecedor dos movimentos e dos encontros entre as pessoas.

É geralmente um universo muito próximo das manifestações pop e das engrenagens industriais cujas válvulas de produção parecem ter menos a ver a com a pavimentação de um plano de sociedade do que com a criação da emoção (que Assayas ao mesmo tempo visa filmar da bica, viva, bruta, em seu processo prático - exemplo, um filme no set, uma banda de rock ensaiando - e contrabandear como bombeador de sentimentos nos filmes que constrói). Por isso, definidos por essa máquina invisível da contemporaneidade, de cada contemporaneidade, os filmes de Assayas são tão sensíveis ao rock, ao cinema. É um eterno fluxo de registro e contaminação, registro dos meios de produção do rock, contaminação pela linguagem e pelos sentimentos que o rock oferece, por exemplo. Estamos falando do recente Clean, mas poderia ser de Os Destinos Sentimentais, em que a porcelana e sua beleza artesanal, cultura fabril rústica na França do século 19, possuem a mesma significação e a mesma função que a música possui em Clean.

Interessante: em Sinais e Corpo Fechado, sobretudo nestes dois, Shyamalan aciona sua máquina invisível na captura de temas atemporais, mas mesmo assim chaves para a contemporaneidade (a - proteção e b - responsabilidade nas redomas social e doméstica); Assayas conduz sua máquina caótica e encantadora, das prensagens e das searas do entretenimento moderno, para o mesmo fim em seu último filme. Clean, como na obra-prima de Shyamlan, é uma discussão sobre responsabilidade e proteção, acima de tudo em relação aos pequenos, aos filhos; aqueles que conhecem e enxergam a contemporaneidade como um mundo já formado e que terão de olhá-lo, depois, como mundo velho (na via do que foi dito por aqui por Luiz Carlos Oliveira Jr.); aqueles que irão continuar. Em Clean, essa visão para a responsabilidade e para a proteção tem como reguladora a máquina invisível dos sentimentos e pulsações contemporâneas de Assayas. Os dois cineastas regem máquinas que, assim, acabam interferindo na imagem, mas não são propostas de cinema tão próximas assim.

Shyamalan é o autor da história escrita. O autor das roldanas misteriosas disso que se chama destino articuladas, meio sacramente, porque há (há se refere, no caso, ao homem) de se chegar em um determinado grau de consciência. A cegueira da personagem de Bryce Dallas Howard em A Vila faz parte da mesma qualidade de limitações ou deficiências apresentadas pelas crianças, filhas do pastor, em Sinais ou pela anomalia fantástica do herói naturalista de quadrinhos de Corpo Fechado, interpretado por Bruce Willis. No final, tudo se encaixava: a anomalia não é dos frágeis ou das aberrações, como podem ser identificados os donos dessas características nos inícios dos filmes (a bombinha de asma do filho do pastor em Sinais, por exemplo, objeto simbólico da fragilidade do mínimo da sobrevivência, a respiração, e meio que ícone de uma posição menor em ambientes da vida mundana, como o escolar); é antes a dádiva ferramental para a ordenação do mundo, para a continuidade de um projeto comunitário ou para sua restauração. Os claudicantes são antes de tudo anjos. O condicionamento biológico e os fenômenos sociais, sejam eles de qualquer origem, estão conectados porque sempre estiveram e assim tem de ser para que se chegue a uma determinada constatação; ou à sabedoria necessária para que um determinado modo de vida se ajuste, se pacifique, se prolongue ou se regenere. A história está esculpida em pedra.

Assayas não. O ex-crítico dos Cahiers é o autor da história sendo escrita. O espelho dessa idéia é sua própria, inconfundível, cadência narrativa. Pequenos encontros, sem grande lógica aparente, grandes banalidades, sucessões de pequenos eventos e lazeres cuja função essencial é a de lançar os personagens no mundo. É uma narrativa de estilhaços casuais, do viver a vida, pois não se sabe que história será escrita. Está sendo, e só - dentro do filme, é a impressão que a arquitetura narrativa de seu autor nos deixa. Esse cinema invertebrado, ou, melhor, em que câmera e narrativa são organismos suspensos, que vão se vertebrando dentro de cena para na próxima começar tudo de novo, atende com perfeição a essa noção de escrita em continuidade. Narrativa solta, destino solto. Temos a contemporaneidade, a máquina, e a linguagem como instâncias dinâmicas que engolem e metamorfoseiam-se em fluxo insano de contato, e contagio, com os seres humanos. Aliás, Irma Vep, o filme aqui em questão, imerso em um desses lagos contemporâneos (o ambiente "fabril" do cinema), reza nessa estrutura e expõe esse patamar de comunicação entre dispositivos (narrativa + câmera) e a máquina invisível (história, a com "H" maiúsculo, daquela contemporaneidade, miniaturizada, ou condensada, num segmento artístico-industrial). A história está sendo esculpida, e depois definhará, recomeçará. E depois recomeçará, definhará.

Garotas 96

Spike Lee é o (verdadeiro) primo americano de Olivier Assayas. Os cinemas de um e de outro parecem ressoar para o mesmo mundo e por vezes reverberar um dentro do outro, mesmo com opções estéticas razoavelmente diferentes. Embora, sobre a fluência narrativa, tenha de ser dito: os dois parecem muito preocupados em filmar, sobretudo olhando para os últimos filmes de Spike Lee, cadências. A narrativa de setores de Lee é feita de peças que se conjugam, como notou Filipe Furtado nesta mesma revista, como numa folha impressa de caderno de jornal, no qual as histórias vão, num ajuste editorial, evoluindo, dia a dia, no batimento do cotidiano - talvez por isso os finais de Lee sejam tão acachapantes e pujantes.

Há outra leitura: as seqüências são músicas que se encerram nelas mesmas. Músicas bombeadas pelo movimento dos personagens, pelo aparelho cenográfico, por situações que nascem e morrem naquele momento específico da narrativa, são pedaços de narrativa que falam sobre o todo, mas existem nelas e para elas. Pensemos no tour subterrâneo de Edward Norton e seus queridos pela Nova Iorque das baladas e das ruínas do 11/9 como vizinhança. Pouca coisa pode ser mais Olivier Assayas do que aquela, de certo modo, malemolência narrativa, em que a imagem se constrói como produto bruto das formas do território que a câmera ocupa, e no qual passeia, e do andar das pessoas. Mas as semelhanças ruidosas, em termos estéticos, talvez cessem por aqui.

De qualquer forma, ninguém negará: é uma coincidência assustadora o fato de que Girl 6, de Spike Lee, e Irma Vep tenham sido lançados no mesmo ano, 1996. Pertencem à mesma contemporaneidade, são talvez da mesma máquina. Antes de qualquer coisa, os enredos: Irma Vep é a história, contada vagamente, de uma filmagem e do que acontece entre um plano e outro, entre um dia e outro. No caso, estamos em um remake de uma série francesa, muda, de 1915, Les Vampires. O diretor do remake, René Vidal (Jean-Pierre Léaud), impressionado com a presença mágica e acrobática de Maggie Cheung (interpretada por ninguém menos que... Maggie Cheung), consagrada atriz de filmes de ação em Honk Kong, chama-a para interpretar Irma Vep, personagem central em Les Vampires. Uma personagem que é espécie de ancestral de toda uma gama de mulheres que, no cinema, propuseram uma química de apelo sexual e maestria em expedientes normalmente associados à masculinidade: traja um uniforme de borracha preto, que inclui uma máscara similar àquela utilizada pela Mulher Gato, e vive sombreada pelos espaços ocultos de uma Paris soturna, meio de quadrinhos, engajada como uma hábil artista nas mais diversas práticas criminosas.

No filme realizado dentro de Irma Vep não há diferença entre o que está dentro e fora do set. O set se estende a reuniões sociais alegres em que os temas mais fofocados giram em torno - em ordem - do filme e das pessoas ligadas a ele. A angústia do diretor Vidal, frustrado no set com o andamento e com o que está sendo articulado na filmagem, se estende a um surto que custa sua participação como diretor.

Garota 6 é o codinome de uma atriz negra desempregada que, depois de fracassar em testes de casting para cinema, arranja um bico em uma empresa de telesexo. Lá faz fama, ganha, rapidamente, status de lenda telefônica. Uma primeira similaridade: como em Irma Vep (em relação ao set) não há diferença entre o que está dentro e fora do universo audioabstrato dos fones. Pelo contrário, tudo se transforma em imagem. As fantasias vestidas e imaginadas em uma conversa se estendem ao cotidiano e ao terreno de sonhos da personagem. É ela que vai parar no parque de diversões de uma invernal praia de Coney Island, instalação recorrente na filmografia de Spike Lee e usada para criar ambigüidade arquitetônica entre mundos: o das experiências concretas e o dos devaneios, o do ludismo das crianças e o da funcionalidade fria e bem coordenada, exposta nas luzes programadas e nas peças dos brinquedos. Lá, a garota vai esperar alguém que conheceu através do serviço e por quem se encantou. Ou seja, já aqui temos um elo perceptível: a dimensão profissional não existe, ela inunda a dimensão pessoal e a vida dessas personagens está em um invólucro só.

Os dois filmes dão partida mais ou menos da mesma maneira, e no mesmo lugar: o escritório de uma produtora. Lá, onde filmes são engendrados e pessoas, nos corredores conturbados, testadas. Papeladas se amontoam, mesas estão distribuídas e compõem um ambiente "profissional". Para além do uso formal desses escritórios, por parte dos encenadores Lee e Assayas, como zonas de trânsito doentio de informações protocolares e gente, laboratórios burocráticos e caóticos no âmbito institucional do planejamento das imagens, há algo que chama a atenção: a metalinguagem.

Em dois escritórios, os dois filmes se calcam na evocação da ironia por meio do recurso da metalinguagem. Como assim? Trata-se de trazer, para o mundo interno dos dois filmes, imaginários ou rostos pertencentes ao universo real dos bastidores do cinema, borrando as delimitações que poderiam existir entre filmes de verdade e produções de mentirinha que existem dentro dos enredos que Irma Vep e Garota 6 apresentam. O artifício de metalinguagem em Irma Vep está claro, a princípio, na presença de Maggie Cheung, atriz "de verdade", que chega para uma espécie de entrevista de luxo, na qual será mais adulada do que experimentada, em alguma sala mais privada. Em Girl 6, a face de Theresa Randle, interpretando Judy, abre o filme, numa entrevista com "o grande diretor Quentin Tarantino", caçando atrizes. Interpretando a si mesmo, ele irá dirigir um filme cujo papel principal será de uma atriz negra (um ano depois, em 1997, bom lembrar que Tarantino lançaria seu Jackie Brown).

Os dois, desse modo, situam-se radicalmente num terreno da problematização e da investigação da imagem e da indústria, em diferentes instâncias (o arthouse francês e o cinema americano de entretenimento-autoral), que formula a imagem. Eles contrabandeiam peças dessas indústrias para seus filmes para dissecar o que ocorre no lado de dentro das portas e conviver com suas distorções e também sua exuberância. Promover essa contaminação, no caso do filme de Lee, na órbita dos autores, no caso do de Assayas, na das atrizes, envolve fluxos diferentes, mas igualados na mesma lógica: o autor real em Girl 6, Tarantino, pretende manusear uma atriz fictícia, Judy. O autor-fictício Vidal pretende manusear a atriz real Maggie. Ambos (no caso de Irma Vep, mais o projeto ao qual Vidal está vinculado) as manuseiam como pedaços de plástico, materiais sintéticos eficientes para o tipo de máquina que tem de ser ativada. Mas assim os dois, Lee e Assayas, ironicamente, manuseiam a indústria das imagens, suas grifes, seus monumentos, como principais personagens, como plástico para seus próprios filmes articularem análises sobre esse universo.

Assim, fica claro, o verbo-chave dos dois filmes é manusear. O ato chave, claro, o manuseio. Não à toa, dentro do enredo de Les Vampires, um dos procedimentos essenciais na esfera do crime é o hipnotismo, que coloca corpo e talentos de Irma Vep, Maggie, sempre na órbita da submissão, do objeto governável. Já é por si só tal traço um eco do manuseio, que assombra cada intenção e ação no set de filmagens e no filme Irma Vep.

Porém, tanto na entrevista com Quentin como no telesexo, para o qual ela apela como tentativa de sobrevivência, Judy está envolta de códigos de manuseio de estereótipos pertencentes ao seu corpo. Da mesma forma que Maggie está, a nova Irma Vep, produto feminino de um mundo de formas e texturas que se misturam, globalizante; um espectro do submundo parisiense de olhos puxados e um quase iconográfico talento para o malabarismo, para as "armas". No caso de Garota 6, Judy amolda seu corpo de acordo com estímulos e fragrâncias de um acervo gráfico (revistas diversas) e televisivo/ cinematográfico (cheer leaders, pornô barato) que alimenta e regula o repertório erótico dos homens do outro lado da linha.

É possível dizer que os dois filmes basicamente tratam da mesma história: como duas atrizes vão funcionar diante de engrenagens profissionais que a elas ordenam o uso do corpo como instrumento de fabulação. Funcionar é sempre um bom verbo porque estamos no domínio da circulação, da imagem de mercantilização. Assim, tanto Lee quanto Assayas fazem filmes sobre suportes. Sobre os corpos como suporte, como manequins - as imagens e toda uma nova experiência de imagem se constróem e se dissolvem no corpo das personagens. Filmes irônicos com relação a esse sistema, que se pautam corajosamente (ou seja, levando essa característica para seus cernes e não apenas olhando-a de longe) na vulgaridade.

Captam a vulgaridade de seus mundos, mas não a abandonam, incluem-na em suas planilhas visuais e humanas. Só poderiam falar de vulgaridade se contaminassem plenamente por ela. Os gestos das pessoas, os idiomas mutantes, os sotaques pedregosos, feios (Maggie fala inglês apenas, os franceses se esforçam para se comunicar), as indiscrições da esfera privada (paqueras lésbicas, a saber), em Irma Vep, são calcados em uma vulgaridade de códigos de comportamento e expressão que só poderia ter paralelo mesmo nos filmes de Spike Lee pós-Clockers. Sendo Girl 6 o primeiro e mais vulgar de todos, exagerado e hipertrofiado em seu organismo visual e nas relações verbais e gestuais que as personagens travam mutuamente, num microambiente corporativo chinfrim, que pode ser comparado à grosso modo com a produtora em torno da qual as ações em Irma Vep gravitam.

É uma vulgaridade do artificialismo de consumo, que na verdade encontra seu grande eco no fotógrafo Malik Hassan-Sayeed. Um dos que melhor poderiam ter entendido o trabalho de Lee nesse período de engenharia do incômodo. A saber, período que não acabou até agora: She Hate Me (Elas me odeiam, mas me querem, 2004) observa a maternidade e a formação da família como questões que derivam de uma nova "gênese", corporativa, condicionando sociedades modernizadas e supernutridas de serviços e opções de "bem estar". É, talvez, o filme mais bem acabado nessa engenharia, que parte do roteiro e infesta cada elemento na formação do quadro. Em Garota 6, as cores e enquadramentos são emporcalhados por luzes, filtros berrantes, saturações e distorções de ângulo que mais valem pelo espetáculo inflável e pela radicalização da vulgaridade do que agenda simbolista, essa tão cara a um certo paradigma de cinema arte. Até os olhos dos diretores que experimentam o controle de Irma Vep (Vidal é substituído por outro, interpretado por Lou Castel) são tratados como suportes ópticos/ sensíveis para a configuração de um projeto artístico.

Num fluxo de infecção mútua entre tema e olhar, as duas atrizes são em algum ponto realmente tragadas por essas operações que são os filmes dos quais participam. Isso se considerarmos o telesexo como um grande filme, que envolve e exige figurinos (Judy é filmada como é imaginada) e atuação. Há cenas emblemáticas, nos dois filmes, nesse sentido. Cenas em que as personagens encontram-se numa fenda cênica, seqüências em que os encenadores Lee e Assayas parecem se divertir e, ao mesmo tempo, aproveitar com grande intensidade estética os colapsos que seus filmes propõem. Colapsos que são na verdade convulsões de registro, que desorientam as personagens em relação aos conteúdos e funções dos espaços, em relação ao que é interpretação e o que não é, ao mesmo tempo portas de questionamentos e amplo manancial de possibilidades para que esses diretores naveguem por novos códigos estéticos e violentem certos parâmetros de encenação.

Em Girl 6, há por exemplo a cena em que Judy se isola em casa e passa a trabalhar particularmente. Simplesmente recebendo, de forma quase espírita, alguma personagem erótica, se depara, na linha, com um maníaco qualquer. A seqüência evolui para uma explosão confusa de medo, hostilidade e tesão, e Spike Lee lança mão de um arsenal expressionsta-kitsch, tão caro a seu cinema, que através de movimento e luz arremessa o filme para a inverossimilhança. Lee parece não saber mais para onde aquela personagem teria ido, mas vai atrás dela.

Cena prima ocorre em Irma Vep, quando Maggie veste seu uniforme de filmagem e saí pelo hotel da equipe do filme. Meio que hipnotizada, invade um quarto e rouba uma jóia. É uma sinfonia silenciosa de pequenos movimentos que remete ao tipo de ação que caracteriza sua personagem nas filmagens da obra de René Vidal, mas que também nos informa um desconforto. Naquela sucessão de gestos, há alguma incorporação, mas não performance. Para onde foi a personagem? Para onde foi Maggie Cheung? Assayas também vai atrás, por meio do filme. Poucos diretores sabem filmar personagens perdidos com tanto talento, alcance e naturalidade quanto Assayas; gente que tem de optar por uma certa timidez, ou gente tropeçando ou se esforçando para não tropeçar nos ambientes em que interagem. Talvez esse destino para Maggie Cheung seja a seqüela mais radical desse talento. Assayas e Maggie assim vão parar numa cena chuvosa, no teto do hotel, quase levando Irma Vep para um país de exagero Spike Lee.

Nesse estatuto do colapso cênico (que começa na metalinguagem e passa por essa crise da interpretação e da percepção dos espaços que se manifesta nas personagens), a narrativa dos dois filmes viaja emulando e exumando freneticamente um sem número de velhos cinemas, velhas imagens e imagens que estão sendo confeccionadas nos filmes ficcionais dentro de seus próprios enredos. Parece ser preciso: fundir velho e novo, recriar o velho ou misturá-lo com o novo, repensar o velho a partir da formulação simulatória do novo, para que, nessa confusão, erga-se uma espécie de mapa, rabiscado, dos signos relacionados a essas imagens. As significações e as mutações dessas significações através do tempo. Parece ser preciso notar como que o passado se instala no presente e vice-versa. Como a contemporaneidade "exótica" (no caso de Irma Vep, a mágica da violência rítmica e frenética dos filmes de artes-marciais chineses, evocada por Vidal e por todo mundo dentro do enredo), identificada como reservatório de valores de uma cultura, se instala em uma tradição de outro país, via físico e "grife" da atriz. Como as células corporativas desse organismo maior, o cinema, se aproveitam desse "choque" e como tudo isso repavimenta a história do cinema: Assayas, promovendo esse fluxo, acaba falando do cinema de sua época e do próprio filme que está realizando.

Assayas, antes de passar por filmes militantes de Chris Marker e pelo próprio Les Vampires, filtra para a própria imagem de seu filme aquilo que está sendo gravado pela câmera do filme realizado dentro do enredo, por exemplo. René Vidal liga a câmera e seu enquadramento passa a ser também o de Assayas, que capta claquetes, os takes de ensaios, tudo mudo e em preto & branco. É um experimento em delicadeza mecânica, em que Assayas parece querer buscar no rudimento, no mais primitivo (o corpo da câmera), a chave para o colapso entre seu filme e filme dentro do filme e ao mesmo tempo um fascínio pelo próprio procedimento e sua extração bruta (pura). Só se ouve o barulho da câmera. O ruído de seu coração, nitidamente saboreado, enquanto os planos estão sendo feitos. Quem é, por trás? René Vidal? Olivier Assayas? Os filmes não se separam: O remake de Les Vampires e Irma Vep; o telesexo e o filme de Spike Lee.

Já Lee reencena ácida e efusivamente, com aparelhos vintage (câmeras das décadas de 70 e 80), de época, séries televisivas negras, nas quais implanta sua Judy, que vai viajando por programas e canais. Lee investe num mosaico televisivo que chupa a mise en scène de Girl 6 para dentro desse mundo, meio de fantasia televisiva à Joe Dante (diretor de Gremlins e Pequenos Guerreiros, dos raríssimos cineastas da história americana que podem ser relacionados ao cinema de Spike Lee) quase um trajeto de ficção científica. O filme assim discute a pluralidade e a proliferação da imagem negra na TV americana ao mesmo tempo em que nota o componente "mercantil" dessas imagens. A menina negra presa em um elevador, reportagem ficcional de TV, divide espaço com um "The Jeffersons" de camelô (Judy e Spike Lee como filha e pai na lendária série negra de TV) e com blaxploitation emulada e falseada. Esse tour é também um meio de dar à dimensão de Girl 6 a dimensão desse material reprocessado, e transformar Judy, numa equação de imagens que lembra àquela em que surge foto em O Iluminado, de Kubrick, em memória e projeção, presente e passado desse acervo-selva de imagens americanas. Como Nicholson no encerramento da obra de Kubrick, a presença de Judy parece refletir uma construção (um hotel, no caso de Kubrick, a imagem network americana, de teledifusão nacional, no caso de Lee) que está lá, atrás, e está aqui, agora. Idéia que Lee revisitaria e remontar em Bamboozled (A Hora do Show), ou seja, o acervo de imagens negras americanas como um inventário que não se encerra em um tempo, existe aqui e lá com a mesma substância carnavalesca e ideológica.

É o melhor do cinema de Lee, exercício extremo de uma de suas grandes sensibilidades: fundir história negra com a história das imagens de seu país e dar plataforma para essa fusão através da expressão, quase hipnotizada cenicamente, de bonecos (no caso, Judy travestida nesses vários programas). Bonecos que ele manipula grosseiramente, dentro desses devaneios visuais, como personagens e que representam, nos enredos dos filmes de fato (a própria personagem Judy), não raramente, bonecos.

Ambos, o de Assayas e o de Lee, são filmes que comentam os métodos de fabricação da imagem, em suas estruturas e no corpo das personagens, a cada momento. Não faltam dispositivos de produção e reprodução de imagens trafegando ou espalhados por ali, por aqui. Câmeras, monitores de vigilância, poluem os espaços cênicos. São filmes íntimos e ao mesmo tempo, curiosamente, reféns dos ambientes sistematizados de trabalho nos quais as atrizes vivem e se locomovem profissionalmente. Há, em última instância, a explosão de uma estética contratual no cinema desses dois brilhantes autores que poucas vezes na história do cinema parece ter sido trabalhada com tanta ênfase. É a opacidade e a precisão de objetos visíveis ou invisíveis, como ramais, edificações impessoais como hotéis e cenários, sempre provisórios, que estão sempre em evidência aqui.

***

A câmera de Olivier Assayas é o traço que mais me atrai em seu cinema. Há uma pulsação de vida e movimento que não é atingida apenas nas seqüências mais dilatadas. Há uma sintonia muito rítmica e latejante entre corte e "metabolismo" dessa câmera viva. Uma lógica que parece estar instalada no olhar desse cineasta. Mas em Irma Vep esse talento de condutor, ou animador, da câmera me choca mais. Há no filme uma clara tendência, relacionada à relação de Assayas com a arquitetura: mais precisamente, as estruturas de vidro. As placas envidraçadas de janelas, que parecem atrair demais o corpo de sua câmera.

Assayas, sobretudo nesse filme, gosta de filmar conversas dos personagens fora das vidraças, enquadrando-os nos interiores. Dessa forma consegue criar uma simbiose entre decoração, pilares, corpos de pessoas e reflexos. Tudo se torna uma só grande estrutura, híbrida, meio andróide. Pessoas e seus espaços. Talvez, muito particularmente em Irma Vep, ele queira comentar com isso a pouca diferença que há entre os personagens e os locais em que eles transitam, instalações do set, suas áreas de descanso e operações. Como já foi escrito, há um contrabando constante entre estatutos pessoais e profissionais. Não há parasitas, corpos estranhos: espaços e pessoas são partes da mesma essência.

Só que após demarcar esses espaços de dentro das janelas e filmar essas estruturas híbridas (humanos e artefatos arquitetônicos) que são produzidas, Assayas adora cortar e, no plano seguinte, correr lá para dentro. Quer dizer, já está lá. Filmar de dentro, sem vidros. Na verdade, se sujar naqueles espaços, se misturar. Sua câmera é assim ao mesmo tempo consciência externa e produto dos espaços que estuda. Tipo de idéia mais ou menos reiterada em toda a estrada estética e dramatúrgica que percorre o filme.


Claudio Szynkier

 

 



Maggie Cheung em Irma Vep (1996)