Divagações
sobre as máquinas "invisíveis"
Há muito mais ligações entre cineastas
aparentemente tão díspares como M. Night
Shyamalan e Olivier Assayas do que percebemos em uma
leitura mais convencional. São os dois autores
que cultivam as "máquinas invisíveis",
que ativam a narrativa e são como motores, centrifugadoras,
do curso dos personagens. Pessoas orbitam segundo comandos
dessas máquinas, que, nos filmes, equilibram
a natureza; bombeiam e colocam silenciosamente à
prova a organização das relações
e dos projetos em coletividade. Para Shyamalan existe
força divina, e ela é a própria
máquina. Deus. Basta ver que em Sinais
o apocalipse não-concretizado do filme serve
como reanimador, na pequena esfera provinciana de um
pastor, da crença deste homem na lógica
das pequenas coisas e portanto em uma orquestração
anterior à consciência humana. O Deus escrito,
bíblico, é meio que dissipado, borrado,
para que surja um Deus maior e cujas ações
merecem fidelidade de fato, não apenas protocolar
e ritualística. É essa a crise que Shyamalan
dissolve, quando desvela o funcionamento de sua máquina.
A máquina invisível de Shyamalan é
nada menos do que a oculta e precisa conexão
entre os homens e entre eles o meio em que vivem.
Para Assayas, não há Deus, ele não
está em jogo, e não intervém no
jogo. Mas sua máquina invisível funciona
igualmente aquecida e azeitada. Para Assayas, essa máquina
se chama história. A história de cada
época que está sendo filmada pelo diretor,
deve ser dito. Podemos chamar de contemporaneidade -
cada contemporaneidade, então. No caso desta
nossa contemporaneidade, um universo nublado, aditivado
por milhões de signos, cheiros, torpores, propagados
por agentes das mais diversas natureza. Um universo
ao mesmo tempo perfumado, que embriaga e polui os corpos;
que gera um ciclo de eterna provisoriedade - hotéis
e a urbanidade em seu cosmopolitismo artificial são
fundamentais nesses filmes - e que em algum momento
terá de se envolver fortemente com parâmetros
atemporais: a família, a adolescência,
a criação dos filhos, o legado de gerações,
o pragmatismo do amadurecimento e da responsabilidade
ante a balizes conduta dentro nas escalas do trabalho
e da família. Um universo no qual Assayas penetra
convictamente porque é ele, em sua malha de cores,
espaços mutantes ou em curto-circuito arquitetônico,
em sua proposta nova e disfuncional para conceitos como
o tempo, o abastecedor dos movimentos e dos encontros
entre as pessoas.
É geralmente um universo muito próximo
das manifestações pop e das engrenagens
industriais cujas válvulas de produção
parecem ter menos a ver a com a pavimentação
de um plano de sociedade do que com a criação
da emoção (que Assayas ao mesmo tempo
visa filmar da bica, viva, bruta, em seu processo prático
- exemplo, um filme no set, uma banda de rock ensaiando
- e contrabandear como bombeador de sentimentos nos
filmes que constrói). Por isso, definidos por
essa máquina invisível da contemporaneidade,
de cada contemporaneidade, os filmes de Assayas são
tão sensíveis ao rock, ao cinema. É
um eterno fluxo de registro e contaminação,
registro dos meios de produção do rock,
contaminação pela linguagem e pelos sentimentos
que o rock oferece, por exemplo. Estamos falando do
recente Clean, mas poderia ser de Os Destinos
Sentimentais, em que a porcelana e sua beleza artesanal,
cultura fabril rústica na França do século
19, possuem a mesma significação e a mesma
função que a música possui em Clean.
Interessante: em Sinais e Corpo Fechado,
sobretudo nestes dois, Shyamalan aciona sua máquina
invisível na captura de temas atemporais, mas
mesmo assim chaves para a contemporaneidade (a - proteção
e b - responsabilidade nas redomas social e doméstica);
Assayas conduz sua máquina caótica e encantadora,
das prensagens e das searas do entretenimento moderno,
para o mesmo fim em seu último filme. Clean,
como na obra-prima de Shyamlan, é uma discussão
sobre responsabilidade e proteção, acima
de tudo em relação aos pequenos, aos filhos;
aqueles que conhecem e enxergam a contemporaneidade
como um mundo já formado e que terão de
olhá-lo, depois, como mundo velho (na via do
que foi dito por aqui
por Luiz Carlos Oliveira Jr.); aqueles que irão
continuar. Em Clean, essa visão para a
responsabilidade e para a proteção tem
como reguladora a máquina invisível dos
sentimentos e pulsações contemporâneas
de Assayas. Os dois cineastas regem máquinas
que, assim, acabam interferindo na imagem, mas não
são propostas de cinema tão próximas
assim.
Shyamalan é o autor da história escrita.
O autor das roldanas misteriosas disso que se chama
destino articuladas, meio sacramente, porque há
(há se refere, no caso, ao homem) de se chegar
em um determinado grau de consciência. A cegueira
da personagem de Bryce Dallas Howard em A Vila faz
parte da mesma qualidade de limitações
ou deficiências apresentadas pelas crianças,
filhas do pastor, em Sinais ou pela anomalia
fantástica do herói naturalista de quadrinhos
de Corpo Fechado, interpretado por Bruce Willis.
No final, tudo se encaixava: a anomalia não é
dos frágeis ou das aberrações,
como podem ser identificados os donos dessas características
nos inícios dos filmes (a bombinha de asma do
filho do pastor em Sinais, por exemplo, objeto
simbólico da fragilidade do mínimo da
sobrevivência, a respiração, e meio
que ícone de uma posição menor
em ambientes da vida mundana, como o escolar); é
antes a dádiva ferramental para a ordenação
do mundo, para a continuidade de um projeto comunitário
ou para sua restauração. Os claudicantes
são antes de tudo anjos. O condicionamento biológico
e os fenômenos sociais, sejam eles de qualquer
origem, estão conectados porque sempre estiveram
e assim tem de ser para que se chegue a uma determinada
constatação; ou à sabedoria necessária
para que um determinado modo de vida se ajuste, se pacifique,
se prolongue ou se regenere. A história está
esculpida em pedra.
Assayas não. O ex-crítico dos Cahiers
é o autor da história sendo escrita. O
espelho dessa idéia é sua própria,
inconfundível, cadência narrativa. Pequenos
encontros, sem grande lógica aparente, grandes
banalidades, sucessões de pequenos eventos e
lazeres cuja função essencial é
a de lançar os personagens no mundo. É
uma narrativa de estilhaços casuais, do viver
a vida, pois não se sabe que história
será escrita. Está sendo, e só
- dentro do filme, é a impressão que a
arquitetura narrativa de seu autor nos deixa. Esse cinema
invertebrado, ou, melhor, em que câmera e narrativa
são organismos suspensos, que vão se vertebrando
dentro de cena para na próxima começar
tudo de novo, atende com perfeição a essa
noção de escrita em continuidade. Narrativa
solta, destino solto. Temos a contemporaneidade, a máquina,
e a linguagem como instâncias dinâmicas
que engolem e metamorfoseiam-se em fluxo insano de contato,
e contagio, com os seres humanos. Aliás, Irma
Vep, o filme aqui em questão, imerso em um
desses lagos contemporâneos (o ambiente "fabril"
do cinema), reza nessa estrutura e expõe esse
patamar de comunicação entre dispositivos
(narrativa + câmera) e a máquina invisível
(história, a com "H" maiúsculo, daquela
contemporaneidade, miniaturizada, ou condensada, num
segmento artístico-industrial). A história
está sendo esculpida, e depois definhará,
recomeçará. E depois recomeçará,
definhará.
Garotas 96
Spike Lee é o (verdadeiro) primo americano
de Olivier Assayas. Os cinemas de um e de outro parecem
ressoar para o mesmo mundo e por vezes reverberar um
dentro do outro, mesmo com opções estéticas
razoavelmente diferentes. Embora, sobre a fluência
narrativa, tenha de ser dito: os dois parecem muito
preocupados em filmar, sobretudo olhando para os últimos
filmes de Spike Lee, cadências. A narrativa de
setores de Lee é feita de peças que se
conjugam, como notou
Filipe Furtado nesta mesma revista, como numa folha
impressa de caderno de jornal, no qual as histórias
vão, num ajuste editorial, evoluindo, dia a dia,
no batimento do cotidiano - talvez por isso os finais
de Lee sejam tão acachapantes e pujantes.
Há outra leitura: as seqüências são
músicas que se encerram nelas mesmas. Músicas
bombeadas pelo movimento dos personagens, pelo aparelho
cenográfico, por situações que
nascem e morrem naquele momento específico da
narrativa, são pedaços de narrativa que
falam sobre o todo, mas existem nelas e para elas. Pensemos
no tour subterrâneo de Edward Norton e seus queridos
pela Nova Iorque das baladas e das ruínas do
11/9 como vizinhança. Pouca coisa pode ser mais
Olivier Assayas do que aquela, de certo modo, malemolência
narrativa, em que a imagem se constrói como produto
bruto das formas do território que a câmera
ocupa, e no qual passeia, e do andar das pessoas. Mas
as semelhanças ruidosas, em termos estéticos,
talvez cessem por aqui.
De qualquer forma, ninguém negará: é
uma coincidência assustadora o fato de que Girl
6, de Spike Lee, e Irma Vep tenham sido lançados
no mesmo ano, 1996. Pertencem à mesma contemporaneidade,
são talvez da mesma máquina. Antes de
qualquer coisa, os enredos: Irma Vep é
a história, contada vagamente, de uma filmagem
e do que acontece entre um plano e outro, entre um dia
e outro. No caso, estamos em um remake de uma série
francesa, muda, de 1915, Les Vampires. O diretor
do remake, René Vidal (Jean-Pierre Léaud),
impressionado com a presença mágica e
acrobática de Maggie Cheung (interpretada por
ninguém menos que... Maggie Cheung), consagrada
atriz de filmes de ação em Honk Kong,
chama-a para interpretar Irma Vep, personagem central
em Les Vampires. Uma personagem que é
espécie de ancestral de toda uma gama de mulheres
que, no cinema, propuseram uma química de apelo
sexual e maestria em expedientes normalmente associados
à masculinidade: traja um uniforme de borracha
preto, que inclui uma máscara similar àquela
utilizada pela Mulher Gato, e vive sombreada pelos espaços
ocultos de uma Paris soturna, meio de quadrinhos, engajada
como uma hábil artista nas mais diversas práticas
criminosas.
No filme realizado dentro de Irma Vep não
há diferença entre o que está dentro
e fora do set. O set se estende a reuniões sociais
alegres em que os temas mais fofocados giram em torno
- em ordem - do filme e das pessoas ligadas a ele. A
angústia do diretor Vidal, frustrado no set com
o andamento e com o que está sendo articulado
na filmagem, se estende a um surto que custa sua participação
como diretor.
Garota 6 é o codinome de uma atriz negra desempregada
que, depois de fracassar em testes de casting
para cinema, arranja um bico em uma empresa de telesexo.
Lá faz fama, ganha, rapidamente, status de lenda
telefônica. Uma primeira similaridade: como em
Irma Vep (em relação ao set) não
há diferença entre o que está dentro
e fora do universo audioabstrato dos fones. Pelo contrário,
tudo se transforma em imagem. As fantasias vestidas
e imaginadas em uma conversa se estendem ao cotidiano
e ao terreno de sonhos da personagem. É ela que
vai parar no parque de diversões de uma invernal
praia de Coney Island, instalação recorrente
na filmografia de Spike Lee e usada para criar ambigüidade
arquitetônica entre mundos: o das experiências
concretas e o dos devaneios, o do ludismo das crianças
e o da funcionalidade fria e bem coordenada, exposta
nas luzes programadas e nas peças dos brinquedos.
Lá, a garota vai esperar alguém que conheceu
através do serviço e por quem se encantou.
Ou seja, já aqui temos um elo perceptível:
a dimensão profissional não existe, ela
inunda a dimensão pessoal e a vida dessas personagens
está em um invólucro só.
Os dois filmes dão partida mais ou menos da mesma
maneira, e no mesmo lugar: o escritório de uma
produtora. Lá, onde filmes são engendrados
e pessoas, nos corredores conturbados, testadas. Papeladas
se amontoam, mesas estão distribuídas
e compõem um ambiente "profissional". Para além
do uso formal desses escritórios, por parte dos
encenadores Lee e Assayas, como zonas de trânsito
doentio de informações protocolares e
gente, laboratórios burocráticos e caóticos
no âmbito institucional do planejamento das imagens,
há algo que chama a atenção: a
metalinguagem.
Em dois escritórios, os dois filmes se calcam
na evocação da ironia por meio do recurso
da metalinguagem. Como assim? Trata-se de trazer, para
o mundo interno dos dois filmes, imaginários
ou rostos pertencentes ao universo real dos bastidores
do cinema, borrando as delimitações que
poderiam existir entre filmes de verdade e produções
de mentirinha que existem dentro dos enredos que Irma
Vep e Garota 6 apresentam. O artifício
de metalinguagem em Irma Vep está claro,
a princípio, na presença de Maggie Cheung,
atriz "de verdade", que chega para uma espécie
de entrevista de luxo, na qual será mais adulada
do que experimentada, em alguma sala mais privada. Em
Girl 6, a face de Theresa Randle, interpretando
Judy, abre o filme, numa entrevista com "o grande diretor
Quentin Tarantino", caçando atrizes. Interpretando
a si mesmo, ele irá dirigir um filme cujo papel
principal será de uma atriz negra (um ano depois,
em 1997, bom lembrar que Tarantino lançaria seu
Jackie Brown).
Os dois, desse modo, situam-se radicalmente num terreno
da problematização e da investigação
da imagem e da indústria, em diferentes instâncias
(o arthouse francês e o cinema americano
de entretenimento-autoral), que formula a imagem. Eles
contrabandeiam peças dessas indústrias
para seus filmes para dissecar o que ocorre no lado
de dentro das portas e conviver com suas distorções
e também sua exuberância. Promover essa
contaminação, no caso do filme de Lee,
na órbita dos autores, no caso do de Assayas,
na das atrizes, envolve fluxos diferentes, mas igualados
na mesma lógica: o autor real em Girl 6,
Tarantino, pretende manusear uma atriz fictícia,
Judy. O autor-fictício Vidal pretende manusear
a atriz real Maggie. Ambos (no caso de Irma Vep,
mais o projeto ao qual Vidal está vinculado)
as manuseiam como pedaços de plástico,
materiais sintéticos eficientes para o tipo de
máquina que tem de ser ativada. Mas assim os
dois, Lee e Assayas, ironicamente, manuseiam a indústria
das imagens, suas grifes, seus monumentos, como principais
personagens, como plástico para seus próprios
filmes articularem análises sobre esse universo.
Assim, fica claro, o verbo-chave dos dois filmes é
manusear. O ato chave, claro, o manuseio. Não
à toa, dentro do enredo de Les Vampires,
um dos procedimentos essenciais na esfera do crime é
o hipnotismo, que coloca corpo e talentos de Irma
Vep, Maggie, sempre na órbita da submissão,
do objeto governável. Já é por
si só tal traço um eco do manuseio, que
assombra cada intenção e ação
no set de filmagens e no filme Irma Vep.
Porém, tanto na entrevista com Quentin como no
telesexo, para o qual ela apela como tentativa de sobrevivência,
Judy está envolta de códigos de manuseio
de estereótipos pertencentes ao seu corpo. Da
mesma forma que Maggie está, a nova Irma Vep,
produto feminino de um mundo de formas e texturas que
se misturam, globalizante; um espectro do submundo parisiense
de olhos puxados e um quase iconográfico talento
para o malabarismo, para as "armas". No caso de Garota
6, Judy amolda seu corpo de acordo com estímulos
e fragrâncias de um acervo gráfico (revistas
diversas) e televisivo/ cinematográfico (cheer
leaders, pornô barato) que alimenta e regula
o repertório erótico dos homens do outro
lado da linha.
É possível dizer que os dois filmes basicamente
tratam da mesma história: como duas atrizes vão
funcionar diante de engrenagens profissionais que a
elas ordenam o uso do corpo como instrumento de fabulação.
Funcionar é sempre um bom verbo porque estamos
no domínio da circulação, da imagem
de mercantilização. Assim, tanto Lee quanto
Assayas fazem filmes sobre suportes. Sobre os corpos
como suporte, como manequins - as imagens e toda uma
nova experiência de imagem se constróem
e se dissolvem no corpo das personagens. Filmes irônicos
com relação a esse sistema, que se pautam
corajosamente (ou seja, levando essa característica
para seus cernes e não apenas olhando-a de longe)
na vulgaridade.
Captam a vulgaridade de seus mundos, mas não
a abandonam, incluem-na em suas planilhas visuais e
humanas. Só poderiam falar de vulgaridade se
contaminassem plenamente por ela. Os gestos das pessoas,
os idiomas mutantes, os sotaques pedregosos, feios (Maggie
fala inglês apenas, os franceses se esforçam
para se comunicar), as indiscrições da
esfera privada (paqueras lésbicas, a saber),
em Irma Vep, são calcados em uma vulgaridade
de códigos de comportamento e expressão
que só poderia ter paralelo mesmo nos filmes
de Spike Lee pós-Clockers. Sendo Girl
6 o primeiro e mais vulgar de todos, exagerado e
hipertrofiado em seu organismo visual e nas relações
verbais e gestuais que as personagens travam mutuamente,
num microambiente corporativo chinfrim, que pode ser
comparado à grosso modo com a produtora em torno
da qual as ações em Irma Vep gravitam.
É uma vulgaridade do artificialismo de consumo,
que na verdade encontra seu grande eco no fotógrafo
Malik Hassan-Sayeed. Um dos que melhor poderiam ter
entendido o trabalho de Lee nesse período de
engenharia do incômodo. A saber, período
que não acabou até agora: She Hate
Me (Elas me odeiam, mas me querem, 2004)
observa a maternidade e a formação da
família como questões que derivam de uma
nova "gênese", corporativa, condicionando sociedades
modernizadas e supernutridas de serviços e opções
de "bem estar". É, talvez, o filme mais bem acabado
nessa engenharia, que parte do roteiro e infesta cada
elemento na formação do quadro. Em Garota
6, as cores e enquadramentos são emporcalhados
por luzes, filtros berrantes, saturações
e distorções de ângulo que mais
valem pelo espetáculo inflável e pela
radicalização da vulgaridade do que agenda
simbolista, essa tão cara a um certo paradigma
de cinema arte. Até os olhos dos diretores que
experimentam o controle de Irma Vep (Vidal é
substituído por outro, interpretado por Lou Castel)
são tratados como suportes ópticos/ sensíveis
para a configuração de um projeto artístico.
Num fluxo de infecção mútua entre
tema e olhar, as duas atrizes são em algum ponto realmente
tragadas por essas operações que são os filmes dos quais
participam. Isso se considerarmos o telesexo como um
grande filme, que envolve e exige figurinos (Judy é
filmada como é imaginada) e atuação. Há cenas emblemáticas,
nos dois filmes, nesse sentido. Cenas em que as personagens
encontram-se numa fenda cênica, seqüências em que os
encenadores Lee e Assayas parecem se divertir e, ao
mesmo tempo, aproveitar com grande intensidade estética
os colapsos que seus filmes propõem. Colapsos que são
na verdade convulsões de registro, que desorientam as
personagens em relação aos conteúdos e funções dos espaços,
em relação ao que é interpretação e o que não é, ao
mesmo tempo portas de questionamentos e amplo manancial
de possibilidades para que esses diretores naveguem
por novos códigos estéticos e violentem certos parâmetros
de encenação.
Em Girl 6, há por exemplo a cena em que
Judy se isola em casa e passa a trabalhar particularmente.
Simplesmente recebendo, de forma quase espírita,
alguma personagem erótica, se depara, na linha,
com um maníaco qualquer. A seqüência
evolui para uma explosão confusa de medo, hostilidade
e tesão, e Spike Lee lança mão
de um arsenal expressionsta-kitsch, tão
caro a seu cinema, que através de movimento e
luz arremessa o filme para a inverossimilhança.
Lee parece não saber mais para onde aquela personagem
teria ido, mas vai atrás dela.
Cena prima ocorre em Irma Vep, quando Maggie
veste seu uniforme de filmagem e saí pelo hotel da equipe
do filme. Meio que hipnotizada, invade um quarto e rouba
uma jóia. É uma sinfonia silenciosa de pequenos movimentos
que remete ao tipo de ação que caracteriza sua personagem
nas filmagens da obra de René Vidal, mas que também
nos informa um desconforto. Naquela sucessão de gestos,
há alguma incorporação, mas não performance. Para onde
foi a personagem? Para onde foi Maggie Cheung? Assayas
também vai atrás, por meio do filme. Poucos diretores
sabem filmar personagens perdidos com tanto talento,
alcance e naturalidade quanto Assayas; gente que tem
de optar por uma certa timidez, ou gente tropeçando
ou se esforçando para não tropeçar nos ambientes em
que interagem. Talvez esse destino para Maggie Cheung
seja a seqüela mais radical desse talento. Assayas e
Maggie assim vão parar numa cena chuvosa, no teto do
hotel, quase levando Irma Vep para um país de
exagero Spike Lee.
Nesse estatuto do colapso cênico (que começa
na metalinguagem e passa por essa crise da interpretação
e da percepção dos espaços que
se manifesta nas personagens), a narrativa dos dois
filmes viaja emulando e exumando freneticamente um sem
número de velhos cinemas, velhas imagens e imagens
que estão sendo confeccionadas nos filmes ficcionais
dentro de seus próprios enredos. Parece ser preciso:
fundir velho e novo, recriar o velho ou misturá-lo
com o novo, repensar o velho a partir da formulação
simulatória do novo, para que, nessa confusão,
erga-se uma espécie de mapa, rabiscado, dos signos
relacionados a essas imagens. As significações
e as mutações dessas significações
através do tempo. Parece ser preciso notar como
que o passado se instala no presente e vice-versa. Como
a contemporaneidade "exótica" (no caso de Irma
Vep, a mágica da violência rítmica
e frenética dos filmes de artes-marciais chineses,
evocada por Vidal e por todo mundo dentro do enredo),
identificada como reservatório de valores de
uma cultura, se instala em uma tradição
de outro país, via físico e "grife" da
atriz. Como as células corporativas desse organismo
maior, o cinema, se aproveitam desse "choque" e como
tudo isso repavimenta a história do cinema: Assayas,
promovendo esse fluxo, acaba falando do cinema de sua
época e do próprio filme que está
realizando.
Assayas, antes de passar por filmes militantes de Chris
Marker e pelo próprio Les Vampires, filtra
para a própria imagem de seu filme aquilo que
está sendo gravado pela câmera do filme
realizado dentro do enredo, por exemplo. René
Vidal liga a câmera e seu enquadramento passa
a ser também o de Assayas, que capta claquetes,
os takes de ensaios, tudo mudo e em preto &
branco. É um experimento em delicadeza mecânica,
em que Assayas parece querer buscar no rudimento, no
mais primitivo (o corpo da câmera), a chave para
o colapso entre seu filme e filme dentro do filme e
ao mesmo tempo um fascínio pelo próprio
procedimento e sua extração bruta (pura).
Só se ouve o barulho da câmera. O ruído
de seu coração, nitidamente saboreado,
enquanto os planos estão sendo feitos. Quem é,
por trás? René Vidal? Olivier Assayas?
Os filmes não se separam: O remake de Les
Vampires e Irma Vep; o telesexo e o filme
de Spike Lee.
Já Lee reencena ácida e efusivamente,
com aparelhos vintage (câmeras das décadas
de 70 e 80), de época, séries televisivas
negras, nas quais implanta sua Judy, que vai viajando
por programas e canais. Lee investe num mosaico televisivo
que chupa a mise en scène de Girl 6 para
dentro desse mundo, meio de fantasia televisiva à
Joe Dante (diretor de Gremlins e Pequenos
Guerreiros, dos raríssimos cineastas da história
americana que podem ser relacionados ao cinema de Spike
Lee) quase um trajeto de ficção científica.
O filme assim discute a pluralidade e a proliferação
da imagem negra na TV americana ao mesmo tempo em que
nota o componente "mercantil" dessas imagens. A menina
negra presa em um elevador, reportagem ficcional de
TV, divide espaço com um "The Jeffersons"
de camelô (Judy e Spike Lee como filha e pai na
lendária série negra de TV) e com blaxploitation
emulada e falseada. Esse tour é também
um meio de dar à dimensão de Girl 6
a dimensão desse material reprocessado, e transformar
Judy, numa equação de imagens que lembra
àquela em que surge foto em O Iluminado,
de Kubrick, em memória e projeção,
presente e passado desse acervo-selva de imagens americanas.
Como Nicholson no encerramento da obra de Kubrick, a
presença de Judy parece refletir uma construção
(um hotel, no caso de Kubrick, a imagem network
americana, de teledifusão nacional, no caso de
Lee) que está lá, atrás, e está
aqui, agora. Idéia que Lee revisitaria e remontar
em Bamboozled (A Hora do Show), ou seja, o acervo
de imagens negras americanas como um inventário
que não se encerra em um tempo, existe aqui e
lá com a mesma substância carnavalesca
e ideológica.
É o melhor do cinema de Lee, exercício
extremo de uma de suas grandes sensibilidades: fundir
história negra com a história das imagens
de seu país e dar plataforma para essa fusão
através da expressão, quase hipnotizada
cenicamente, de bonecos (no caso, Judy travestida nesses
vários programas). Bonecos que ele manipula grosseiramente,
dentro desses devaneios visuais, como personagens e
que representam, nos enredos dos filmes de fato (a própria
personagem Judy), não raramente, bonecos.
Ambos, o de Assayas e o de Lee, são filmes que
comentam os métodos de fabricação
da imagem, em suas estruturas e no corpo das personagens,
a cada momento. Não faltam dispositivos de produção
e reprodução de imagens trafegando ou
espalhados por ali, por aqui. Câmeras, monitores
de vigilância, poluem os espaços cênicos.
São filmes íntimos e ao mesmo tempo, curiosamente,
reféns dos ambientes sistematizados de trabalho
nos quais as atrizes vivem e se locomovem profissionalmente.
Há, em última instância, a explosão
de uma estética contratual no cinema desses dois
brilhantes autores que poucas vezes na história
do cinema parece ter sido trabalhada com tanta ênfase.
É a opacidade e a precisão de objetos
visíveis ou invisíveis, como ramais, edificações
impessoais como hotéis e cenários, sempre
provisórios, que estão sempre em evidência
aqui.
***
A câmera de Olivier Assayas é o traço
que mais me atrai em seu cinema. Há uma pulsação
de vida e movimento que não é atingida
apenas nas seqüências mais dilatadas. Há
uma sintonia muito rítmica e latejante entre
corte e "metabolismo" dessa câmera viva. Uma lógica
que parece estar instalada no olhar desse cineasta.
Mas em Irma Vep esse talento de condutor, ou
animador, da câmera me choca mais. Há no
filme uma clara tendência, relacionada à
relação de Assayas com a arquitetura:
mais precisamente, as estruturas de vidro. As placas
envidraçadas de janelas, que parecem atrair demais
o corpo de sua câmera.
Assayas, sobretudo nesse filme, gosta de filmar conversas
dos personagens fora das vidraças, enquadrando-os
nos interiores. Dessa forma consegue criar uma simbiose
entre decoração, pilares, corpos de pessoas
e reflexos. Tudo se torna uma só grande estrutura,
híbrida, meio andróide. Pessoas e seus
espaços. Talvez, muito particularmente em Irma
Vep, ele queira comentar com isso a pouca diferença
que há entre os personagens e os locais em que
eles transitam, instalações do set, suas
áreas de descanso e operações.
Como já foi escrito, há um contrabando
constante entre estatutos pessoais e profissionais.
Não há parasitas, corpos estranhos: espaços
e pessoas são partes da mesma essência.
Só que após demarcar esses espaços
de dentro das janelas e filmar essas estruturas híbridas
(humanos e artefatos arquitetônicos) que são
produzidas, Assayas adora cortar e, no plano seguinte,
correr lá para dentro. Quer dizer, já
está lá. Filmar de dentro, sem vidros.
Na verdade, se sujar naqueles espaços, se misturar.
Sua câmera é assim ao mesmo tempo consciência
externa e produto dos espaços que estuda. Tipo
de idéia mais ou menos reiterada em toda a estrada
estética e dramatúrgica que percorre o
filme.
Claudio Szynkier
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