O que leva Spielberg a abrir e fechar Guerra dos
Mundos com uma imagem do microcosmo é o mesmo
desejo de retorno que persegue sua obra. A unidade mínima
de vida é a imagem que precede a diáspora
humana e a iminência do fim do mundo (o filme-catástrofe,
portanto); ao final, retorna a célula, seu núcleo
reestabilizado. Não há engano: em se tratando
de Spielberg, a célula nada pode ser além
da família, e o núcleo nada mais é
do que o ponto frágil onde se aloja a ameaça
que cresce invisivelmente, até o dia de sua ofensiva.
Quem ameaça o quê? O personagem de Tom
Cruise, Ray, explica à pequena Rachel (Dakota
Fanning, mais histérica e menos interessante
do que a menina-problema de O Amigo Oculto, de
John Polson) que não são os terroristas,
nem os europeus: essa ameaça vem de "muito
mais longe". Ou de muito mais perto: adolescente
durável, Ray precisa atravessar o rito de passagem
que condensa todo o sentido normativo spielbergiano.
As duas primeiras cenas do filme resumem em poucas linhas
o que precisamos saber sobre o estado inicial contra
o qual se revolta o cosmo: Ray, que trabalha numa empilhadeira,
nova-iorquino fã de baseball, estereótipo
de americano middle brow, não parece ter
aspirações maiores do que a fruição
do instante-já, da mesma forma que não
consegue assumir seu papel de pai, tendo uma relação
conflituosa com a ex-esposa e os dois filhos. A primeira
coisa que o ataque extraterrestre lhe custará
é justamente o que o havia definido com maior
precisão arquetípica nos primeiros minutos
de filme: abdicar do carro esporte, envenenado, peça
de colecionador, signo de um individualismo imaturo,
para assumir o volante do carro que acha "ao acaso"
durante a fuga, aquele em que cabe a família,
mais forte e mais seguro. Tornar-se pai, salvar o mundo.
A premissa do americano médio é resgatada
do limbo da ficção familiar restauradora;
Guerra dos Mundos é o auto-remake
impossível de Tubarão.
É paralelamente ao gigantismo de seus enredos
e à brutalidade incontestável de seus
inimigos (o psicopata sem rosto, o tubarão desproporcional,
o nazismo, os marcianos) que Spielberg gosta de inserir
suas preocupações mais próximas,
seu microcosmo. Em Guerra dos Mundos, com o terreno
como que fertilizado sob encomenda, as pontuações
narrativas parecem obedecer a uma cartilha pessoal:
o golpe que marca a desarmonia – e, por que não
dizer, desencadeia o ataque – é a quebra do vidro
pela bola de baseball que Robbie, o filho adolescente,
atira na direção do pai. Aquele é
o gesto que, diante da possível suspeita de mais
uma ficção sobre invasores do espaço,
coloca-nos de vez em um filme de Spielberg. Ray não
tem heroísmo, não tem a virtude que faz
dele o escolhido para proteger e salvar o mundo. A peça
de articulação griffithiana (presença
relativamente constante em seu cinema) precisa se fabricar
de outro jeito. Por mais violento que seja o filme (de
que o ápice está numa seqüência
à Romero, quando a multidão se joga em
cima do carro), Ray é um herói naïf
na mesma medida de Martin Brody (Roy Scheider), o policial
sem fibra, o herói à revelia, o protagonista
acidental de Tubarão – que, contrariamente
a Ray, sabia ser um bom chefe de família (ponto
nodal que, uma vez perseguido de perto pelo vilão
da natureza, despertou sua obstinação
restauradora). Ray não possui os insights
nem as deduções cientificamente embasadas
dos heróis do cinema-catástrofe; assim
como o pacato Brody, ele é herói apesar
de si mesmo.
Desde Contatos Imediatos do Terceiro Grau Spielberg
sabe o momento certo de estancar o desejo coletivo de
ver o que havia dentro da nave. O que, momentos antes,
seria motivo de enorme frustração se converte
na comunhão de uma fundamental incapacidade de
imaginar o espaço do Outro. Em Guerra dos
Mundos a construção do ponto de vista
beira a radicalidade: não há narrativa
possível fora da área percorrida por Ray
(o que exclui, por exemplo, as decisões dos chefes
de Estado – afinal é um filme de Spielberg e
não de Roland Emmerich) – o desligamento narrativo
com o filho, nesse sentido, é uma marcação
extrema de posição. Não há,
também, ponto de vista exterior ao mundo que
o filme reconhece como o seu; aquela clássica
estratégia de assumir o campo de visão
do ameaçador, pedra angular da decupagem de Tubarão,
não possui mais cabimento: a mise en scène
de Spielberg afirma que, passados exatos trinta anos,
o mundo produziu inimigos cuja posição
é inescrutável o suficiente para desautorizar
qualquer inscrição direta em uma obra
ficcional (por aí passa, necessariamente, o tal
"impossível" desse auto-remake).
Na Nova York de Guerra dos Mundos, seguindo mais
ou menos a mesma lógica que exclui qualquer compreensão
dos "motivos" dos invasores, o 11 de setembro
é a nuvem carregada que ensombra a cidade, mas
é também o recalcamento da irredutibilidade
da História. O atentado existe, mas nunca aconteceu,
nunca (se) passou – é a cena primitiva de uma
tragédia espectral. Por isso não há
susto, a princípio, diante do bizarro daqueles
raios; muito pelo contrário, as pessoas querem
ir lá para ver de perto o estrago provocado.
Muito do enredo de Guerra dos Mundos se desenvolve
como no filme de 1975, espécime ancestral de
blockbuster, neoclássico que transportou
Spielberg ao grande orçamento. A cuidadosa arquitetura
de imagens de Tubarão disfarça
o fato de que seu diretor estava jogando parcialmente
fora de casa: o filme foi rodado em cinemascope, uma
conhecida exceção na obra de Spielberg,
que curiosamente é um esteta do 1.85:1, formato
de tela de Guerra dos Mundos e da grande maioria
dos seus filmes (ele talvez seja o único cineasta
a assumir como preferência artística o
formato standard – e afirmar todo seu conceito
de cinema a partir dessa posição). A parceria
com o diretor de fotografia Janusz Kaminski, iniciada
em A Lista de Schindler, estimulou ainda mais
um gosto pelo detalhe mínimo, pela poeira que
flutua ao redor dos personagens enquanto eles conversam
em campo-contracampo. Mesmo que sua obra nunca tenha
sido um triunfo da composição, é
inegável o esforço de sempre significar
alguma coisa com o enquadramento. Se em Guerra dos
Mundos os efeitos gráficos se substituem,
ao menos em parte, à equação com
as distâncias que dava o tom dominante na composição
de Tubarão, é na relação
com a profundidade e com o fora de campo que tudo continua
se resolvendo. O Mal continua aparecendo do fundo (do
mar, da terra, do quadro) em direção à
superfície (da água, do asfalto, da tela),
nunca o contrário. Um olhar para o horizonte,
portanto, pode surpreender o Mal – verdadeiro ponto
de fuga da imagem – no justo momento de sua aparição,
e a câmera reservará ao rosto de Tom Cruise
toda a duração necessária para
sublinhar sua expressão de suspense.
Será, logicamente, após um mergulho aos
porões da nação que Ray poderá
sair pronto para a investida vitoriosa. Seu percurso
é claro: de Nova York em direção
a uma América mais profunda, com casas de madeira
a configurar o conforto suburbano – mas em cujos porões
se escondem as neuroses mais arraigadas. Harlan, o personagem
de Tim Robbins, é como Quint, o pescador que
se revela um traumatizado de guerra em Tubarão
(após umas bebidas, Quint diz que estava
no submarino que transportou a bomba atômica ao
Japão). Harlan é ainda Hiroshima, é
ainda o Vietnã, mas é também o
paranóico pós-11/09, ou mesmo o ex-combatente
seqüelado pelas guerras mais recentes. Ele precisa,
tanto quanto os invasores, ser eliminado da face da
América, o que de fato ocorre logo após
a seqüência em que os alienígenas
descem ao porão, verdadeira seqüência
de suspense do filme – ao mesmo tempo seu refúgio
e seu subterfúgio. Uma vez que os monstros metálicos
pilotados pelos alienígenas possuem um campo
invisível que funciona como escudo, protegendo-se
da artilharia norte-americana, a destruição
precisa se fazer de dentro. Parcialmente sugado pela
cloaca orgânico-sintética de uma das naves,
Ray despeja as granadas que detonarão aquela
unidade e inicia o efeito dominó que vai pondo
fim ao ataque. É a mesma atitude de Brody, que
acerta um tiro na garrafa de mergulho que o tubarão
havia engolido. Se a podridão é interna,
profunda, alguém deve implodi-la. E não
é mais uma ilha de veraneio que está sendo
atacada, e sim o mundo inteiro. Mas Spielberg não
precisa mais punir a juventude libertária e transgressora
que virava a madrugada ao redor de uma fogueira – aquela
juventude da qual sai a primeira vítima de Tubarão.
É o adulto acometido pela "síndrome
da adolescência durável" (S.A.D.)
o que ele sente necessidade de "curar", assim
como é a América pré-11/09 o que
ele pesca em meio aos próprios escombros das
construções atingidas. Apagar a História
(empresa que seu cinema deu por fracassada já
em Os Caçadores da Arca Perdida), primeiramente,
e depois limpar o salão para que, com a população
quase reduzida a zero, seja possível reconduzir
tudo desde o início, com o antigo projeto familiar
na proa. Estava bem melhor quando Spielberg, embora
insistindo nos temas que já vinham se desbotando
filme a filme, usava sua tendência retrô
em prol de uma dramaturgia de aparências sedutoras
e fugidias (Prenda-me se For Capaz é um
belo exemplo recente). Mas um estranho ar resignado
toma conta desse mundo agora entregue às cinzas.
So S.A.D.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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