GUERRA DOS MUNDOS
Steven Spielberg, War of the Worlds, EUA, 2005

O que leva Spielberg a abrir e fechar Guerra dos Mundos com uma imagem do microcosmo é o mesmo desejo de retorno que persegue sua obra. A unidade mínima de vida é a imagem que precede a diáspora humana e a iminência do fim do mundo (o filme-catástrofe, portanto); ao final, retorna a célula, seu núcleo reestabilizado. Não há engano: em se tratando de Spielberg, a célula nada pode ser além da família, e o núcleo nada mais é do que o ponto frágil onde se aloja a ameaça que cresce invisivelmente, até o dia de sua ofensiva. Quem ameaça o quê? O personagem de Tom Cruise, Ray, explica à pequena Rachel (Dakota Fanning, mais histérica e menos interessante do que a menina-problema de O Amigo Oculto, de John Polson) que não são os terroristas, nem os europeus: essa ameaça vem de "muito mais longe". Ou de muito mais perto: adolescente durável, Ray precisa atravessar o rito de passagem que condensa todo o sentido normativo spielbergiano. As duas primeiras cenas do filme resumem em poucas linhas o que precisamos saber sobre o estado inicial contra o qual se revolta o cosmo: Ray, que trabalha numa empilhadeira, nova-iorquino fã de baseball, estereótipo de americano middle brow, não parece ter aspirações maiores do que a fruição do instante-já, da mesma forma que não consegue assumir seu papel de pai, tendo uma relação conflituosa com a ex-esposa e os dois filhos. A primeira coisa que o ataque extraterrestre lhe custará é justamente o que o havia definido com maior precisão arquetípica nos primeiros minutos de filme: abdicar do carro esporte, envenenado, peça de colecionador, signo de um individualismo imaturo, para assumir o volante do carro que acha "ao acaso" durante a fuga, aquele em que cabe a família, mais forte e mais seguro. Tornar-se pai, salvar o mundo. A premissa do americano médio é resgatada do limbo da ficção familiar restauradora; Guerra dos Mundos é o auto-remake impossível de Tubarão.

É paralelamente ao gigantismo de seus enredos e à brutalidade incontestável de seus inimigos (o psicopata sem rosto, o tubarão desproporcional, o nazismo, os marcianos) que Spielberg gosta de inserir suas preocupações mais próximas, seu microcosmo. Em Guerra dos Mundos, com o terreno como que fertilizado sob encomenda, as pontuações narrativas parecem obedecer a uma cartilha pessoal: o golpe que marca a desarmonia – e, por que não dizer, desencadeia o ataque – é a quebra do vidro pela bola de baseball que Robbie, o filho adolescente, atira na direção do pai. Aquele é o gesto que, diante da possível suspeita de mais uma ficção sobre invasores do espaço, coloca-nos de vez em um filme de Spielberg. Ray não tem heroísmo, não tem a virtude que faz dele o escolhido para proteger e salvar o mundo. A peça de articulação griffithiana (presença relativamente constante em seu cinema) precisa se fabricar de outro jeito. Por mais violento que seja o filme (de que o ápice está numa seqüência à Romero, quando a multidão se joga em cima do carro), Ray é um herói naïf na mesma medida de Martin Brody (Roy Scheider), o policial sem fibra, o herói à revelia, o protagonista acidental de Tubarão – que, contrariamente a Ray, sabia ser um bom chefe de família (ponto nodal que, uma vez perseguido de perto pelo vilão da natureza, despertou sua obstinação restauradora). Ray não possui os insights nem as deduções cientificamente embasadas dos heróis do cinema-catástrofe; assim como o pacato Brody, ele é herói apesar de si mesmo.

Desde Contatos Imediatos do Terceiro Grau Spielberg sabe o momento certo de estancar o desejo coletivo de ver o que havia dentro da nave. O que, momentos antes, seria motivo de enorme frustração se converte na comunhão de uma fundamental incapacidade de imaginar o espaço do Outro. Em Guerra dos Mundos a construção do ponto de vista beira a radicalidade: não há narrativa possível fora da área percorrida por Ray (o que exclui, por exemplo, as decisões dos chefes de Estado – afinal é um filme de Spielberg e não de Roland Emmerich) – o desligamento narrativo com o filho, nesse sentido, é uma marcação extrema de posição. Não há, também, ponto de vista exterior ao mundo que o filme reconhece como o seu; aquela clássica estratégia de assumir o campo de visão do ameaçador, pedra angular da decupagem de Tubarão, não possui mais cabimento: a mise en scène de Spielberg afirma que, passados exatos trinta anos, o mundo produziu inimigos cuja posição é inescrutável o suficiente para desautorizar qualquer inscrição direta em uma obra ficcional (por aí passa, necessariamente, o tal "impossível" desse auto-remake). Na Nova York de Guerra dos Mundos, seguindo mais ou menos a mesma lógica que exclui qualquer compreensão dos "motivos" dos invasores, o 11 de setembro é a nuvem carregada que ensombra a cidade, mas é também o recalcamento da irredutibilidade da História. O atentado existe, mas nunca aconteceu, nunca (se) passou – é a cena primitiva de uma tragédia espectral. Por isso não há susto, a princípio, diante do bizarro daqueles raios; muito pelo contrário, as pessoas querem ir lá para ver de perto o estrago provocado.

Muito do enredo de Guerra dos Mundos se desenvolve como no filme de 1975, espécime ancestral de blockbuster, neoclássico que transportou Spielberg ao grande orçamento. A cuidadosa arquitetura de imagens de Tubarão disfarça o fato de que seu diretor estava jogando parcialmente fora de casa: o filme foi rodado em cinemascope, uma conhecida exceção na obra de Spielberg, que curiosamente é um esteta do 1.85:1, formato de tela de Guerra dos Mundos e da grande maioria dos seus filmes (ele talvez seja o único cineasta a assumir como preferência artística o formato standard – e afirmar todo seu conceito de cinema a partir dessa posição). A parceria com o diretor de fotografia Janusz Kaminski, iniciada em A Lista de Schindler, estimulou ainda mais um gosto pelo detalhe mínimo, pela poeira que flutua ao redor dos personagens enquanto eles conversam em campo-contracampo. Mesmo que sua obra nunca tenha sido um triunfo da composição, é inegável o esforço de sempre significar alguma coisa com o enquadramento. Se em Guerra dos Mundos os efeitos gráficos se substituem, ao menos em parte, à equação com as distâncias que dava o tom dominante na composição de Tubarão, é na relação com a profundidade e com o fora de campo que tudo continua se resolvendo. O Mal continua aparecendo do fundo (do mar, da terra, do quadro) em direção à superfície (da água, do asfalto, da tela), nunca o contrário. Um olhar para o horizonte, portanto, pode surpreender o Mal – verdadeiro ponto de fuga da imagem – no justo momento de sua aparição, e a câmera reservará ao rosto de Tom Cruise toda a duração necessária para sublinhar sua expressão de suspense.

Será, logicamente, após um mergulho aos porões da nação que Ray poderá sair pronto para a investida vitoriosa. Seu percurso é claro: de Nova York em direção a uma América mais profunda, com casas de madeira a configurar o conforto suburbano – mas em cujos porões se escondem as neuroses mais arraigadas. Harlan, o personagem de Tim Robbins, é como Quint, o pescador que se revela um traumatizado de guerra em Tubarão (após umas bebidas, Quint diz que estava no submarino que transportou a bomba atômica ao Japão). Harlan é ainda Hiroshima, é ainda o Vietnã, mas é também o paranóico pós-11/09, ou mesmo o ex-combatente seqüelado pelas guerras mais recentes. Ele precisa, tanto quanto os invasores, ser eliminado da face da América, o que de fato ocorre logo após a seqüência em que os alienígenas descem ao porão, verdadeira seqüência de suspense do filme – ao mesmo tempo seu refúgio e seu subterfúgio. Uma vez que os monstros metálicos pilotados pelos alienígenas possuem um campo invisível que funciona como escudo, protegendo-se da artilharia norte-americana, a destruição precisa se fazer de dentro. Parcialmente sugado pela cloaca orgânico-sintética de uma das naves, Ray despeja as granadas que detonarão aquela unidade e inicia o efeito dominó que vai pondo fim ao ataque. É a mesma atitude de Brody, que acerta um tiro na garrafa de mergulho que o tubarão havia engolido. Se a podridão é interna, profunda, alguém deve implodi-la. E não é mais uma ilha de veraneio que está sendo atacada, e sim o mundo inteiro. Mas Spielberg não precisa mais punir a juventude libertária e transgressora que virava a madrugada ao redor de uma fogueira – aquela juventude da qual sai a primeira vítima de Tubarão. É o adulto acometido pela "síndrome da adolescência durável" (S.A.D.) o que ele sente necessidade de "curar", assim como é a América pré-11/09 o que ele pesca em meio aos próprios escombros das construções atingidas. Apagar a História (empresa que seu cinema deu por fracassada já em Os Caçadores da Arca Perdida), primeiramente, e depois limpar o salão para que, com a população quase reduzida a zero, seja possível reconduzir tudo desde o início, com o antigo projeto familiar na proa. Estava bem melhor quando Spielberg, embora insistindo nos temas que já vinham se desbotando filme a filme, usava sua tendência retrô em prol de uma dramaturgia de aparências sedutoras e fugidias (Prenda-me se For Capaz é um belo exemplo recente). Mas um estranho ar resignado toma conta desse mundo agora entregue às cinzas. So S.A.D.

Luiz Carlos Oliveira Jr.