FIM DE AGOSTO, COMEÇO DE SETEMBRO
Olivier Assayas, Fin août, début septembre,
França, 1998

O Coração da matéria

A imagem em Fim de Agosto, Começo de Setembro flutua. A câmera móvel de Olivier Assayas encontra aqui um dos seus universos mais adequados. Trata-se de um filme em trânsito, em que cada relação e cada situação parece estar em constante transformação. Se Irma Vep pode ser visto como um ponto de virada que aponta uma nova direção para seu cineasta, este subseqüente Fim de Agosto, Começo de Setembro é a culminaçãoo de uma série de preocupações que trespassavam seus cinco primeiros filmes. Só que aqui os dois personagens centrais são mais velhos – Gabriel, um critico literário próximo dos 30, interpretado por Mathieu Amalric, e Adrien, um escritor cult de 40 que talvez esteja morrendo, vivido por François Cluzet –, ainda que algumas das cenas com Amalric sugiram que um protagonista de Assayas não tem muito como escapar da pós-adolescência. O título se refere não ao período da ação (que, como na maior parte dos filmes de Assayas, se expande por meses, no caso cerca de um ano), mas a esta idéia de transição. Há uma excepcional seqüência em que Amalric convida Cluzet para o seu escritório; ele acaba de arranjar um emprego como organizador da parte literária de uma enciclopédia, e quer fazer uma proposta ao amigo. A cena segue num crescendo com a atuação primorosa de Amalric sugerindo tanto a sua satisfação com o emprego – pelo que podemos observar todos à sua volta vivem de free lance – como o seu desconforto com ele (o escritório é um primor de direção de arte). Quando de súbito a proposta é feita, na rápida alteração da expressão de Cluzet podemos perceber que naquele instante a relação entre estes dois homens mudou. E a seqüência reinicia-se numa nova direção com a qual os personagens não sabem muito bem como lidar.

Já dissemos que a imagem de Fim de Agosto, Começo de Setembro flutua, mas é útil tentar compreender como esta imagem fluida opera (e vale dizer que o trabalho de Denis Lenoir com super-16mm é primoroso). Consideremos uma das seqüências mais impressionantes do filme, em que a câmera de Assayas segue Virginie Ledoyen após uma briga com Amalric: ela desce do táxi, entra numa loja de conveniência, compra o cupom de um desses jogos de azar do tipo raspe e ganhe, retorna ao táxi, mas antes de entrar confere o que saiu no cupom. Não dura mais de vinte segundos e a ação é bastante banal, mas o trabalho de câmera garante que essa cena permaneça como um momento privilegiado. Como em todo filme de Assayas, há um desejo de captar na imagem a percepção/experiência da personagem. Mas, para além disso – ou como parte disso, se preferirem –, há a criação de um modo bastante particular de espaço fluído. Uma forma talvez mais útil de descrever a cena é justamente atentar para a relação da câmera com Ledoyen: como ela vai de um close do rosto da atriz, segue se perdendo no movimento dela, é barrada na porta da loja, tenta segui-la novamente na saída e termina num close de sua mão raspando o cupom contra a janela do táxi. O que se constrói aqui com toda esta movimentação de câmera é justamente a idéia de um mundo em constate movimento ao qual a personagem tenta como pode se adaptar. Pouco antes no filme há uma cena em que Amalric tem uma discussão com um produtor de TV – a respeito da obra do amigo ser ou não hermética – que termina com ele questionando se contar uma história é necessariamente a melhor forma de apresentar o mundo: pode-se dizer que Olivier Assayas construiu seu próprio modo particular de apresentr o mundo nessa relação com o espaço via movimento de câmera.

O filme quase todo se constrói sobre cenas de dupla: Amalric e Ledoyen; Amalric e a ex-namorada Jeanne Balibar; Amalric e o amigo Cluzet; Cluzet e sua namorada adolescente secreta (Mia Hansen-Love). È como se toda a tensão, toda a troca só pudesse se resolver a dois. A certa altura, Cluzet se revela feliz em encontrar Ledoyen porque, por mais que goste do amigo, sair somente com ele à noite seria chato. O que vemos na seqüência seguinte, no entanto, é Amalric desaparecendo misteriosamente, mesmo que seja apenas ele o elo de ligação entre as duas personagens em cena. Encenar cenas quase sempre a dois vai muito além de uma opção dramaturgica. É uma forma de valorizar a própria opção estética do cineasta, mas também de afirmar a dupla como elemento político. È curiosa a forma como o filme afirma esta opção, já que, mais do que em qualquer outro filme de Assayas, o recorte proposto é claramente de geração. Se é um grupo bem especifico da sociedade francesa – e um claramente próximo do cineasta – que surge aqui, surpreende justamente a ausência de cenas em grupo. Há apenas duas: um jantar extremamente desconfortável e um funeral. È como se a teia de relações que os personagens almejam fosse inalcançável: nenhuma comunidade possível, no máximo o casal que se torna única peça possível de troca e/ou transformação. O que é confirmado pelo filme, sobretudo nas seqüências com François Cluzet: ali esta um homem reservado, tão privado que os amigos só descobriram após sua morte – incapaz de efetivamente se comunicar com os outros – que ele não passou seu último ano de vida sozinho. Cluzet descobre ao longo do filme diferentes maneiras de se retrair em cena; sabemos que há alguma coisa muito errada com um sujeito que não informa nem aos amigos mais próximos que vai passar por uma operação grave. Ao mesmo tempo, esta figura incapaz de se comunicar funciona como uma espécie de compasso benigno sobre todos a sua volta, em especial nas cenas com Amalric, como se aquilo que ele não consegue comunicar em palavras, ele consiga comunicar inconscientemente com o corpo.

Quando perguntado sobre qual teria sido sua inspiração para a estrutura fragmentada do filme, Olivier Assayas se referiu aos trabalhos em polaroid de David Hockney, em especial na sua capacidade de sugerir que existam tantos pontos focais quanto fotos (por si só já seria interessante observar como neste filme sobre meio literário o principal ponto de referência ser o trabalho de um fotografo). Logo, Fim de Agosto, Começo de Setembro sugere um sem número de portas de entrada. Temos menos uma narrativa do que uma série de flagrantes em torno das figuras de Amalric e Cluzet. Ocasionalmente alguém preencherá as lacunas provocadas pelas constantes elipses, outras vezes somos deixados no escuro e há sempre a certeza constante de que uma série de ações importantes permanecem no fora de quadro. Centrais para que o efeito funcione são a habilidade de Assayas e seus atores de sugerir as mudanças graduais que surgem entre uma elipse e outra e o lado democrático presente na arbitrariedade das elipses do cineasta. As elipses aqui não existem simplesmente para sugerir passagens de tempo ou para reter informação que por uma razão ou outra o filme prefere que o espectador desconheça, as elipses simplesmente existem. O que termina por reforçar a sensação de que muito do que não vemos é tão vital quanto o que presenciamos.

Fim de Agosto, Começo de Setembro, seguindo um preceito que atravessa a obra de Assayas, pode ser descrito como um filme feito contra Irma Vep – especialmente na sua determinação de ser quase invisível de tão simples –, mas absorve do trabalho anterior uma preocupação com formas de expressão que transpassa toda a segunda metade da filmografia de Assayas. A diferença entre o cineasta René Vidal de Jean Pierre-Léaud e o escritor Adrien Willer de François Cluzet é bem pequena. Ambos dividem com o seu cineasta a mesma angústia de expressão. Quando do lançamento do filme, dada a forma encontrada por Assayas, alguns críticos sucumbiram à tentação de classificá-lo como um filme cubista, o que parece um tanto despropositado. Se vamos comparar o trabalho de Assayas aqui, talvez seja mais útil aproximá-lo a Samuel Beckett. Nem tanto pelo desejo de ambos de levar a crise ao limite, mas pelo que eles têm de imersão direta na matéria. Olivier Assayas aqui encontra um método para pintar na imagem a experiência do grupo que decidiu acompanhar, de entrar em contato direto com a matéria-prima da qual ela é feita. Fim de Agosto, Começo de Setembro decerto não é o seu melhor filme, mas talvez seja o que melhor equilibra as tendências que dominam toda a sua obra. Há até espaço aqui, apesar da presença constante da morte, para uma imagem final impossível nos filmes anteriores ou posteriores, algo que se assemelhe a um final feliz.


Filipe Furtado

 

 



Virginie Ledoyen e Mathieu Amalric...


...Mia Hansen-Love e François Cluzet: Fim de Agosto,
Começo de Setembro
(1998) e a lógica da dupla.