O Coração da matéria
A imagem em Fim de Agosto, Começo de Setembro
flutua. A câmera móvel de Olivier Assayas
encontra aqui um dos seus universos mais adequados.
Trata-se de um filme em trânsito, em que cada
relação e cada situação
parece estar em constante transformação.
Se Irma Vep pode ser visto como um ponto de virada
que aponta uma nova direção para seu cineasta,
este subseqüente Fim de Agosto, Começo
de Setembro é a culminaçãoo
de uma série de preocupações que
trespassavam seus cinco primeiros filmes. Só
que aqui os dois personagens centrais são mais
velhos – Gabriel, um critico literário próximo
dos 30, interpretado por Mathieu Amalric, e Adrien,
um escritor cult de 40 que talvez esteja morrendo,
vivido por François Cluzet –, ainda que algumas
das cenas com Amalric sugiram que um protagonista de
Assayas não tem muito como escapar da pós-adolescência.
O título se refere não ao período
da ação (que, como na maior parte dos
filmes de Assayas, se expande por meses, no caso cerca
de um ano), mas a esta idéia de transição.
Há uma excepcional seqüência em que
Amalric convida Cluzet para o seu escritório;
ele acaba de arranjar um emprego como organizador da
parte literária de uma enciclopédia, e
quer fazer uma proposta ao amigo. A cena segue num crescendo
com a atuação primorosa de Amalric sugerindo
tanto a sua satisfação com o emprego –
pelo que podemos observar todos à sua volta vivem
de free lance – como o seu desconforto com ele
(o escritório é um primor de direção
de arte). Quando de súbito a proposta é
feita, na rápida alteração da expressão
de Cluzet podemos perceber que naquele instante a relação
entre estes dois homens mudou. E a seqüência
reinicia-se numa nova direção com a qual
os personagens não sabem muito bem como lidar.
Já dissemos que a imagem de Fim de Agosto,
Começo de Setembro flutua, mas é útil
tentar compreender como esta imagem fluida opera (e
vale dizer que o trabalho de Denis Lenoir com super-16mm
é primoroso). Consideremos uma das seqüências
mais impressionantes do filme, em que a câmera
de Assayas segue Virginie Ledoyen após uma briga
com Amalric: ela desce do táxi, entra numa loja
de conveniência, compra o cupom de um desses jogos
de azar do tipo raspe e ganhe, retorna ao táxi,
mas antes de entrar confere o que saiu no cupom. Não
dura mais de vinte segundos e a ação é
bastante banal, mas o trabalho de câmera garante
que essa cena permaneça como um momento privilegiado.
Como em todo filme de Assayas, há um desejo de
captar na imagem a percepção/experiência
da personagem. Mas, para além disso – ou como
parte disso, se preferirem –, há a criação
de um modo bastante particular de espaço fluído.
Uma forma talvez mais útil de descrever a cena
é justamente atentar para a relação
da câmera com Ledoyen: como ela vai de um close
do rosto da atriz, segue se perdendo no movimento dela,
é barrada na porta da loja, tenta segui-la novamente
na saída e termina num close de sua mão
raspando o cupom contra a janela do táxi. O que
se constrói aqui com toda esta movimentação
de câmera é justamente a idéia de
um mundo em constate movimento ao qual a personagem
tenta como pode se adaptar. Pouco antes no filme há
uma cena em que Amalric tem uma discussão com
um produtor de TV – a respeito da obra do amigo ser
ou não hermética – que termina com ele
questionando se contar uma história é
necessariamente a melhor forma de apresentar o mundo:
pode-se dizer que Olivier Assayas construiu seu próprio
modo particular de apresentr o mundo nessa relação
com o espaço via movimento de câmera.
O filme quase todo se constrói sobre cenas de
dupla: Amalric e Ledoyen; Amalric e a ex-namorada Jeanne
Balibar; Amalric e o amigo Cluzet; Cluzet e sua namorada
adolescente secreta (Mia Hansen-Love). È como
se toda a tensão, toda a troca só pudesse
se resolver a dois. A certa altura, Cluzet se revela
feliz em encontrar Ledoyen porque, por mais que goste
do amigo, sair somente com ele à noite seria
chato. O que vemos na seqüência seguinte,
no entanto, é Amalric desaparecendo misteriosamente,
mesmo que seja apenas ele o elo de ligação
entre as duas personagens em cena. Encenar cenas quase
sempre a dois vai muito além de uma opção
dramaturgica. É uma forma de valorizar a própria
opção estética do cineasta, mas
também de afirmar a dupla como elemento político.
È curiosa a forma como o filme afirma esta opção,
já que, mais do que em qualquer outro filme de
Assayas, o recorte proposto é claramente de geração.
Se é um grupo bem especifico da sociedade francesa
– e um claramente próximo do cineasta – que surge
aqui, surpreende justamente a ausência de cenas
em grupo. Há apenas duas: um jantar extremamente
desconfortável e um funeral. È como se
a teia de relações que os personagens
almejam fosse inalcançável: nenhuma comunidade
possível, no máximo o casal que se torna
única peça possível de troca e/ou
transformação. O que é confirmado
pelo filme, sobretudo nas seqüências com
François Cluzet: ali esta um homem reservado,
tão privado que os amigos só descobriram
após sua morte incapaz de efetivamente
se comunicar com os outros que ele não
passou seu último ano de vida sozinho. Cluzet
descobre ao longo do filme diferentes maneiras de se
retrair em cena; sabemos que há alguma coisa
muito errada com um sujeito que não informa nem
aos amigos mais próximos que vai passar por uma
operação grave. Ao mesmo tempo, esta figura
incapaz de se comunicar funciona como uma espécie
de compasso benigno sobre todos a sua volta, em especial
nas cenas com Amalric, como se aquilo que ele não
consegue comunicar em palavras, ele consiga comunicar
inconscientemente com o corpo.
Quando perguntado sobre qual teria sido sua inspiração
para a estrutura fragmentada do filme, Olivier Assayas
se referiu aos trabalhos em polaroid de David Hockney,
em especial na sua capacidade de sugerir que existam
tantos pontos focais quanto fotos (por si só
já seria interessante observar como neste filme
sobre meio literário o principal ponto de referência
ser o trabalho de um fotografo). Logo, Fim de Agosto,
Começo de Setembro sugere um sem número
de portas de entrada. Temos menos uma narrativa do que
uma série de flagrantes em torno das figuras
de Amalric e Cluzet. Ocasionalmente alguém preencherá
as lacunas provocadas pelas constantes elipses, outras
vezes somos deixados no escuro e há sempre a
certeza constante de que uma série de ações
importantes permanecem no fora de quadro. Centrais para
que o efeito funcione são a habilidade de Assayas
e seus atores de sugerir as mudanças graduais
que surgem entre uma elipse e outra e o lado democrático
presente na arbitrariedade das elipses do cineasta.
As elipses aqui não existem simplesmente para
sugerir passagens de tempo ou para reter informação
que por uma razão ou outra o filme prefere que
o espectador desconheça, as elipses simplesmente
existem. O que termina por reforçar a sensação
de que muito do que não vemos é tão
vital quanto o que presenciamos.
Fim de Agosto, Começo de Setembro, seguindo
um preceito que atravessa a obra de Assayas, pode ser
descrito como um filme feito contra Irma Vep
– especialmente na sua determinação de
ser quase invisível de tão simples –,
mas absorve do trabalho anterior uma preocupação
com formas de expressão que transpassa toda a
segunda metade da filmografia de Assayas. A diferença
entre o cineasta René Vidal de Jean Pierre-Léaud
e o escritor Adrien Willer de François Cluzet
é bem pequena. Ambos dividem com o seu cineasta
a mesma angústia de expressão. Quando
do lançamento do filme, dada a forma encontrada
por Assayas, alguns críticos sucumbiram à
tentação de classificá-lo como
um filme cubista, o que parece um tanto despropositado.
Se vamos comparar o trabalho de Assayas aqui, talvez
seja mais útil aproximá-lo a Samuel Beckett.
Nem tanto pelo desejo de ambos de levar a crise ao limite,
mas pelo que eles têm de imersão direta
na matéria. Olivier Assayas aqui encontra um
método para pintar na imagem a experiência
do grupo que decidiu acompanhar, de entrar em contato
direto com a matéria-prima da qual ela é
feita. Fim de Agosto, Começo de Setembro
decerto não é o seu melhor filme, mas
talvez seja o que melhor equilibra as tendências
que dominam toda a sua obra. Há até espaço
aqui, apesar da presença constante da morte,
para uma imagem final impossível nos filmes anteriores
ou posteriores, algo que se assemelhe a um final feliz.
Filipe Furtado
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