A
Câmara dos Horrores do Dr. Burton
O
horror da fábula
A fábula de horror
infantil está no cerne de toda a obra de Tim Burton.
Mais do que qualquer outro cineasta, ele é aquele que
melhor absorveu a idéia de que um olhar infantil sobre
qualquer fábula revela um objeto de horror bastante
particular. Se este A Fantástica Fábrica de Chocolates termina por se revelar o melhor
filme do cineasta em muito tempo (desde Ed
Wood, talvez?), isto é em parte porque, pela primeira
vez desde sua estréia em As
Grandes Aventuras de Pee-Wee, ele se vê as voltas
com material que seja antes de mais nada infantil. A Fantástica Fábrica de Chocolates é um
objeto estranho no cinema americano, um curioso star vehicle onde a estrela é seu próprio autor, trabalhando aqui
com material que parece ter sido pensado sobre medida
para ele. Não se trata de Burton simplesmente canibalizar
as tendências que o deixaram famoso – embora, sem dúvidas,
A Fantástica Fábrica de Chocolates seja o tipo de filme de autor que o espectador familiarizado
reconhece ao primeiro passar de olhos (e de fato a primeira
imagem de neve artificial, preenchida com a trilha,
excepcional, de Danny Elfman, é inconfundível) –, mas
de um retorno necessário à matéria original para buscar
um novo foco após um filme um tanto desastrado (Peixe
Grande). Nada mais distante de um filme em que o
autor esteja preso a uma camisa de força de tiques
pessoais do que este A
Fantástica Fábrica de Chocolates, onde cada peça
delirante é um grande exercício de liberdade por parte
de um cineasta que há muito não se mostrava tão solto.
O cinema de Burton é dominado
por um medo primordial. Um medo que surge do imaginário,
que vem embutido no homem desde que era um feto - imagem-feto
talvez seja uma boa forma de descrever a maneira como
Burton revela o horror na beleza das suas imagens sintéticas.
Elas revelam o desejo – seja dos personagens, seja do
cineasta – de colocar para fora este imaginário inicial
que o homem carrega consigo desde o berço, mas também
a sua consciência de que estas imagens têm seu contraponto,
que estas imagens podem estar assombradas. Daí ser óbvio
que o verdadeiro horror que Burton acredita não se mostrara
nas seqüências iniciais do cotidiano miserável da família
de Charlie; o cineasta vê muito mais horror no espetáculo
da fábrica de chocolates do que na pobreza. Diz muito
sobre a estratégia de fábula de horror infantil que
– num dos melhores achados de Burton – o pai castrador
seja um dentista. Afinal, não há muitas imagens mais
assustadoras para uma criança do que a figura do dentista.
A imagem-feto de Tim Burton é
uma que reconhece o imaginário como uma espécie de maquina
sempre próxima de se revelar defeituosa. Logo, a fábrica
de Willy Wonka é um grande parque de diversões industrializado,
mais um parque temático do que uma fábrica de chocolates.
Parques de diversões são o cenário do gozo infantil,
mas também são o espaço por excelência do filme de horror.
São as mais doces imagens que revelam seu lado mais
doentio; cada uma das crianças do filme – com exceção
de Charlie – são figurativamente mortas por aquilo que
mais apreciam. Há um lado sinistro na coreografia dos
Oompas Loompas, uma celebração de morte cheia de escárnio
pelo cadáver, mesmo que saibamos que, sendo este um
filme infantil, nenhuma das crianças deve estar realmente
morta - mas isto
pouco importa, já que o horror infantil reside com igual
força na frustração e no fracasso. Metaforicamente,
se não de fato, Wonka está ali assassinando cada um
daqueles moleques a sangue frio (ele nem percebe quando
sobra somente um).
A visita à fábrica de chocolates
não é o passeio agradável que as crianças esperam, mas
a entrada numa câmera de horror que a sua maneira ultra-colorida
se assemelha aquelas dos médicos loucos de filmes B
preto e branco do início dos anos 60 que o cineasta
tanto aprecia. Desde Tex Avery o cinema infantil constrói
algumas das imagens mais violentas que residem no nosso
imaginário coletivo e aqui Burton dá as suas contribuições
mais diretas. Veruca Salt prepara-se para agarrar o
esquilo que escolheu como seu novo animal de estimação,
vemos o esquilo pelo ponto de vista da garota e a garota
pelo ponto de vista do esquilo; o animal, criatura até
ali adorável do universo Disney (é até mesmo antropoformizada),
salta sobre ela, seguido pela horda formada pelos demais
esquilos. A imagem da criança mimada atacada pelo que
ela escolhera como seu novo animal de estimação está
entre as mais fortes que Burton já produziu. O close
do esquilo antes do ataque ao mesmo tempo uma quase
criatura de pelúcia e uma besta-fera pronta para explodir
em violência talvez sintetize o filme. Vale destacar
aqui o excelente uso de lentes para distorcer a imagem
por parte de Burton e seu fotografo Philippe Rousselot,
cujo sucesso não tem paralelos na obra do cineasta.
O
instinto do homem
Se A
Fantástica Fábrica de Chocolates é a seqüência a
muito aguardada de As Grandes Aventuras de Pee-Wee, com seu
jardim das delicias infantil assombrado, revela-se também
a continuação lógica de O
Planeta dos Macacos. A porta de entradas da fábrica
de Wonka marco o momento em que o homem passa a dar
ouvidos aos seus instintos mais animalescos. De certa
forma, é como se o senso de horror primordial que tudo
cobre fosse aos poucos reduzido tudo a uma questão de
instinto. Se num primeiro momento há o estranhamento
geral ante a gargalhada histérica de Wonka, diante da
primeira área da fábrica este tom a todos contagia.
Wonka informa que tudo ali é comestível, e as crianças
e seus pais se entregam à selva. Neste filme onde os
sentidos deslizam e as imagens se revelam sempre em
transformação – a lógica do filme é apresentada honestamente
por Burton já na anedota sobre o príncipe indiano que
deixa de comer seu castelo de chocolate para quase ser
soterrado por ele – é como se todos fossem dominados
pela selva. Um garoto desanda a comer grama, outros
se dedicam a destruição pura e simples. Seus pais não
se comportam melhor. Dali por diante a selvageria impera
no comportamento das personagens – e é brilhante a forma
como Burton demole a fronteira criança/adulto. Se o
cinema de hoje é predominantemente infantilizado, Burton
realiza aqui uma das criticas mais ácidas a este estado
das coisas – como também da máquina infernal que a fábrica
de Burton se revela na sua construção de cenários vingativos.
A Fantástica Fábrica
de Chocolates é um dos filmes mais saudavelmente
sádicos que surgem em muito tempo.
Se o animalesco impera, a exceção
é o jovem Charlie, que Freddie Highmore interpreta com
uma passividade rara na figura central de um filme tão
hiper-ativo. A
Fantástica Fábrica de Chocolates se estrutura como
uma competição por eliminação, mas, ao contrário do
que o formato normalmente sugere, o que se celebra aqui
não é o mérito, mas a ausência de demérito. Como Wonka
deixa claro ao declará-lo o vencedor, Charlie ganha
por ser o menos chato dos fedelhos. Todos os atores
do filme são convidados por Burton a se prenderem em
uma nota central, Highmore não é exceção, mas a dele
é a de reserva. É como se dentro salve-se quem puder
do filme, a única forma de manter humanidade intacta
é via uma operação de quase desaparecimento. Em alguns
momentos chegamos a nos esquecer que o pequeno Charlie
e seu avô estão ali, dada a agressividade das atuações
ao redor deles.
O
espetáculo do horror
O primeiro ponto da visita à fábrica
é um show de bonecos, em que a convenção nos faz esperar
que se revele Willy Wonka. De fato estamos diante do
seu cartão de visitas, mas, em vez de o vermos surgir
do palco, assistiremos ao espetáculo dos bonecos em
chamas de forma bastante detalhada (faces derretendo,
olhos saltando, etc). Quando Wonka surge, é para rir
histericamente de seu próprio espetáculo. Está ali um
homem que não apenas cria o horror, mas se deleita com
ele. O horror em Burton está sempre no espetáculo. Logo,
é preciso criar um grande show. As coreografias dos
Oompas Loompas, por exemplo, transformam o sadismo num
grande espetáculo de cultura pop. A destruição do último
e mais insuportável – ao menos para Wonka – dos garotos
se dá quando ele se transforma em um corpo televisivo.
A fábrica como já dito é um grande parque temático,
tudo nela parece ter de ser espetacular – e não industrialmente
funcional, como se esperaria de uma central de produção-modelo.
Tudo nessa fábrica será a sua maneira uma extensão do
sinistro show de bonecos. Como os Oompas Loompas sabiam que poderiam encaixar o nome do garoto guloso
na canção?,
todos se perguntam. É óbvio: naquele ponto o horror
precisava brotar, e aos Oompas Loompas cabe o papel
de celebrá-lo.
Johnny Depp interpreta menos um
personagem do que um mestre de cerimônias. O estranhamento
que seu Wonka causa, a maneira que se mantém ao largo
do espectador, deriva muito desta opção. Mesmo os flashbacks psicologizantes têm menos o efeito de explicar o personagem – até
por ele não ser exatamente um – do que acrescentar uma
camada a mais de distância, interrompendo a narrativa
(basta observar como o filme, muito bem editado, parece
sempre forçar a barra nas transições dos flashbacks).
Se o filme é uma longa visita, o Wonka de Depp (que
parece buscar imitar Lon Chaney nos maneirismos) está
lá para envolver os garotos de forma que caiam vítimas
dos seus próximos excessos. Um sádico moralista que,
cheio de energia, manipula os garotos e seus pais para
que encontrem seus fins. Uma figura desconfortável para
se ancorar um filme, mas que outro tipo de mestre de
cerimônias seria possível num filme de horror infantil?
Se Wonka
tem alguma existência como personagem, a visita à sala
de invenções é o momento em que ele chega mais próximo
de deixar cair a máscara do grande performer.
Porque Willy Wonka é um primo distante do Edward,
Mãos de Tesoura, outro grande inventor (e este é
o filme mais de invenção de Burton em muito tempo). A lógica de sua fábrica é a
da sua própria satisfação como inventor. Por que criar
um chiclete que vale por uma refeição? Bem, por que
não? Todas as invenções que vemos existem a partir da
sua lógica particular e nelas mesmas. Willy Wonka de
Burton não é um grande industrial, mesmo que tenha uma
fortuna, mas um grande artista. Suas invenções parecem
protótipos destinados a permanecer para sempre longe
das ruas. Chocolate não precisa fazer sentido, ele nos
lembra, assim como os filmes de Tim Burton. É o garoto
entorpecido pela lógica do videogame que revolta Wonka,
não há nada pior do que a falta de imaginação. Wonka,
assim como Burton, é um grande fabulista a construir
seu espetáculo de horror infantil. A Fantástica Fábrica de Chocolates é um
grande elogio a fábulação, ao imaginário no que ele
tem de mais lúdico e assustador. Tim Burton, retornando
às bases fundadoras do seu cinema, talvez realize aqui
a melhor síntese da sua crença nele.
Filipe Furtado
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