ENTREVISTA COM MARTHA NOWILL
Diretora de Dança

Dança, de Martha Nowill, foi um dos grandes destaques da competitiva de curtas da última edição do FBCU. Simples na sua estrutura, forte nas atuações, empenhado na captação da vida que pulsa nas pequenas coisas, Dança, embora seja seu filme de estréia, já traz uma visão bastante pessoal daquilo que envolve o universo da diretora e de suas personagens, assim como a busca inegável de um estilo. Num simpático encontro virtual, a diretora (que fez o filme como aluna da Faap) respondeu aos comentários e questões que enviamos.

Contracampo:

1) Uma primeira coisa que chama a atenção em Dança é o espaço concedido às atrizes (logo, às personagens), no sentido de deixá-las adquirir uma vida para além da articulação com um dispositivo narrativo. Muitas vezes, e isso vem se tornando uma constante no cinema universitário, parece que os personagens só têm uma validade secundária, uma vez já preenchida uma certa inteligência (ou esperteza) narrativa. Dança, ao contrário, prefere filmar nacos de vida (com força e também com doçura) a construir uma narrativa calcada em "sacações". Você poderia começar dizendo quais foram suas motivações para fazer o filme e como se desenvolveu o trabalho com as atrizes.
2) O filme faz um uso bastante pronunciado das tomadas externas, ressaltando sua inscrição no espaço. Existe uma relação forte do filme com aquele pedaço de São Paulo. O que há de estereótipo (se é que há) nessas personagens? Em que medida elas se assemelham a outras meninas que moram em Vila Madalena? E o que exatamente o filme tem de específico com o "universo feminino"?
3) O filme passa uma sensação de bem-estar ao final, em tom menor (mas profundamente sentimental), coroado por aquele belo plano da cidade acendendo sua luzes, enquanto as vozes em off falam de uma paixão em início, para uma, e de uma certa anestesia dos sentimentos bons, para outra. Fale um pouco desse aporte sentimental ao universo filmado.
4) Após a cena de namoro no parque, sem dúvida uma das cenas mais idilicamente bonitas do festival, ocorre a cena em que a menina ruiva, para quem o dia estava sendo bom, conta sobre um parente recém-nascido que morreu. Aquilo parece um pouco fora de tom, parece ali somente para quebrar um certo esquema de "tudo dá certo pra uma enquanto tudo dá errado pra outra". Qual a verdadeira importância daquela cena?
5) Como você descreveria sua experiência na faculdade de cinema (no caso, a Faap)? E quais seus planos futuros com o cinema?

Martha Nowill:

O que me encanta é a vida em si, mais do o que decorrer dela. Dou mais importância ao ser do que ao fazer, embora o último seja decorrência do primeiro. Acho que isso foi levado ao extremo neste meu primeiro filme e por isso as personagens vazam por todos os lados. Escrevi o roteiro falando alto, para que as falas coubessem na boca dos atores, para que tudo parecesse um improviso filmado de primeira. Mas não foi, tudo foi muito ensaiado. E assim, como na fase do roteiro, quando as ações criadas para cada cena foram decorrência inevitável da alma das personagens e da minha própria, durante os ensaios trabalhamos no mesmo sentido: do interno para o externo, da emoção à ação. E, apesar disso, sem muito "psicologismo", utilizando o concreto e focando na verdade. Para não desgastar, e para não correr o risco de tornar algum momento mecânico, preferi ensaiar menos as cenas escritas e improvisar em cima de situações não existentes no roteiro. Novas cenas, então, foram acrescentadas ao filme. A idéia era criar um universo com pulsão e personalidade. Toda a fotografia, direção de arte, pesquisa de locação, tudo foi voltado para isso, para dar vida às personagens, para expressar as personagens, para que elas pudessem ser, para ressaltar, facilitar e se agregar ao trabalho das atrizes. Trabalhamos com elementos opostos e complementares, dando espaço ao que talvez você chame de "estereótipo", para que, apesar de muito específicas, as personagens tivessem algum comportamento "caricatural", principalmente se vistas em contraposição. Nisso reside o humor do filme.

A narrativa tem o mesmo movimento de construção do roteiro e das personagens: de dentro para fora. Da casa de Maria e Laura para o mundo. E por isso a cidade é intensamente explorada. Seus parques (Parque da Luz, Mirante da Lapa), suas ruas barulhentas e bagunçadas (Nove de Julho), seus altos e baixos (ladeiras e escadas do Sumaré) e o que é possível encontrar de vista e horizonte em São Paulo. Elas andam, "camelam", sobem, descem, pra lá e pra cá, o tempo todo, este é o movimento, a dança. Acrescentadas de música, as "cenas-canções" transmitem a sensação do que você chamou de bem-estar. E este é mesmo o meu propósito, falar entre outras coisas da leveza, do idílico... da leveza apesar de tudo. Eu mesma procuro transformar minha tragédia pessoal em riso. Por isso a existência da morte no filme, daquela cena que você denominou como "forçada", e eu, em parte, concordo com você. Ficou meio forçado, não pela situação, mas por um erro de tom. O tom da frase "...ela morreu." está melodramático e não era para estar. Aquilo deveria ter sido dito com naturalidade, com perplexidade em relação a estas curvas abruptas, a estes fatos inesperados, quase estúpidos que às vezes presenciamos no decorrer dos dias... Aquilo passou batido por mim, pela atriz, pelo sol que estava se pondo muito rápido. Mas sabe, o melodrama é uma tendência muito forte, por causa da influência excessiva da televisão. Ele funciona, não é de todo ruim, ele foca, cria um processo de identificação com o espectador. Ele deve ser utilizado na medida e expulso por nós quando se infiltra em uma cena sem percebermos. É interessante avaliar o que deu e o que não "deu certo" num filme, principalmente por ser um filme universitário, e ter uma margem de perdão maior. Embora eu sinceramente ache que o "erro" acompanha o artista a vida toda. A minha experiência na faculdade, aliás, foi boa. Eu volto uns para trás, e acho, realmente, que tem coisas que só vêm com o tempo. Faculdade nenhuma ensina, e por isso uma classe vira um caldeirão das mais diferentes personalidades, anseios e, como cinema se faz em equipe, você acaba convivendo, trabalhando com pessoas com quem você tem afinidade ou não. O que é bom. E não.

Sentia muita falta de aulas com duração maior, onde desse tempo de assistir ao filme e debatê-lo, o que na Faap acabava sendo feito em duas aulas. Tive professores que eu adorava, outros menos. Me dediquei a muitas coisas e deixei passar outras, enfim, como qualquer escola, o aprendizado depende muito mais do desejo do aluno do que da qualidade do ensino. É possível produzir muito na Faap, basta aproveitar os recursos. Eu mesma, antes de dirigir, fiz direção de arte, assistência de direção e até fotografei, com certa apreensão, um curta. Agora, aprender a finalizar de verdade, aula nenhuma consegue te preparar, só na prática, e, principalmente da primeira vez, é bastante cruel.

Você me pergunta do universo feminino, claro, o filme traz muito isso, mas eu não sei dizer o que é que tem nele que não poderia de jeito nenhum ser encontrado no universo masculino. Acho que entre outras coisas, o que eu costumo chamar de alegria melancólica, tipo de "complexidade" que traduz bem a alma feminina. Mas eu nunca pensei nestes termos, "quero fazer um filme bem feminino", não jamais, não dou importância a isso. O que acontece é que, principalmente por ser meu primeiro filme, coloquei nele muita auto-ironia, não é auto-biográfico, mas tem muito de mim. Talvez, num futuro próximo, eu consiga e escolha trabalhar num tema totalmente diferente, distante. Mas eu preferi, por necessidade e pela minha inexperiência, me ater ao que fosse mais sincero e espontâneo.

Quanto ao futuro, meu próximo roteiro está prontíssimo: "O Cochicho da Coxia ou A Dupla Jornada do Ator", o título é duplo mesmo. Mas como não quero me desfalcar como da primeira vez, busco alguma verba para filmá-lo. São muitos personagens, homens, mulheres, enfim, uma produção um pouquinho maior que será feita para 35 mm. Mas na parte maior do tempo trabalho como atriz, adoro sair da minha idéia e entrar na do outro, perambular por outros universos. Gosto de ser dirigida, é um ato de entrega e confiança.

Entrevista via e-mail por Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 





Dança de Martha Nowill