Quando
um Burro Fala... de Roberto Robalinho e Aurélio
Aragão, realizado no melhor estilo de um filme
de formatura, reunindo um conjunto de amigos para pensar
e fazer um filme juntos, se revelou um filme-processo
com um belo resultado, no qual somos apresentados a
fábulas totalmente prosaicas contadas por pescadores
de Itaipu acerca das origens do lugar. Num papo descontraído
e irreverente, os dois diretores (ex-alunos da UnB,
agora formandos da UFF) conversaram conosco sobre a
epopéia que descreveu seu caminho da idéia
inicial ao filme na tela. (TM)
* * *
Luiz Carlos Oliveira Jr: Seguindo o conselho
do título, gostaríamos de começar
ouvindo vocês falarem um pouco sobre o processo
de composição do filme, sobre como surgiu
a idéia e como se deu sua realização.
Roberto Robalinho: É um filme de realização
da UFF, que começou quando uma amiga nossa, a
Rosângela (Cerqueira), sugeriu que a gente fizesse
um filme sobre Itaipu. Achamos boa idéia e sentamos
para conversar, pois ela tinha um trabalho fotográfico
sobre Itaipu. Começamos a ir a Itaipu para pensar
uma história, e foi aí que tudo começou.
Aurélio Aragão: Rolava que tinha
um grupo de amigos que se conhecia bem e que falava
de cinema o tempo inteiro. Esse grupo também
já tinha trabalhado junto, e estava todo mundo
se formando mais ou menos na mesma época. Então
falei: "Bom, vamos tentar fazer um filme todo mundo
junto". E, conversando, voltou essa proposta de
fazer um filme sobre Itaipu. A idéia de fazer
um filme junto a gente tinha, mas o que seria o filme
a gente não tinha. E então a Rosângela,
que tinha trabalhado lá, tinha tido contato com
os pescadores, tinha aquele lance com as fotografias,
chegou e falou: "Vamos fazer!". A primeira
idéia era trazer a coisa das histórias
de pescadores, fazer um trabalho quase documental de
registrar algumas histórias dos caras, de ir
lá e conversar com eles. Mas fomos deixando a
coisa correr e, quando chegou a hora de fazer o filme,
precisávamos já de um roteiro e não
tínhamos feito nada dessa parte documental. Nas
primeiras vezes em que fomos lá, chegamos muito
ansiosos para recolher as histórias dos pescadores,
e o que rolava era que os caras diziam: "História
tem um monte, história de pescador é o
que mais tem...". E quando eu pedia para ele contar,
a resposta era: "Eu não sei contar história
não, quem sabe mesmo são os mais antigos.
Bom mesmo é o Canduci, mas ele já morreu...
Seu Jair também, pai de fulano, mas já
morreu...". E o fato é que não estávamos
conseguindo pegar nenhuma história boa deles.
Fomos lá umas cinco ou seis vezes, tentamos conversar
com os caras, mas não saíam as histórias.
Estava já na hora de fazer o filme e não
tínhamos registrado nenhuma história legal,
o que vinha era muito perdido em termos de percurso,
então resolvemos tentar inventar alguma coisa,
deixar de lado a pretensão de fazer um puta filme
e começar a inventar as histórias.
RR: O primeiro argumento era sobre a iniciação
sexual de um menino e a preparação para
a morte de um velho. E as coisas se cruzavam na pesca,
na praia; o velho indo morrer e o menino começando
a vida. Foi a primeira idéia que a gente escreveu,
mas depois viu que estava muito chata.
AA: Na verdade a gente começou até
a produzir o filme a partir dessa idéia. A gente
meio que desenvolveu o roteiro e a Taís (Bastos)
entrou para produzir o filme nessa época. De
repente tínhamos o filme pronto para ser filmado,
mas eu e o Beto duvidávamos muito desse roteiro.
RR: Era artificial, estranho, não batia
com o que a gente tinha ouvido, não encaixava.
AA: Parecia que a gente estava juntando "A
terceira margem do rio" com O Velho e o Mar
e jogando em Itaipu. Não estava funcionando...
Um dia, com a coisa já adiantada, já tínhamos
visitado locação e tudo, sentamos aqui
na pracinha, acho que o Baiano estava também,
o diretor de fotografia (Ricardo Maio), e aí
não lembro quem falou primeiro: "Para dizer
a verdade, não estou nem um pouco satisfeito".
E aí eu concordei: "também não,
isso está terrível". Começamos
então a mexer e avisávamos que estava
havendo umas "mexidinhas" no roteiro, para
não espantar a produção. Dizíamos
para tocar a produção, que logo em seguida
daríamos a versão final do roteiro, com
algumas mexidas em diálogos, especialmente. Era
época de São João, e a filmagem
estava marcada para agosto. Ficávamos aqui tentando
mexer e enrolando as pessoas, porque nada conseguia
ser resolvido a partir daquelas primeiras conversas.
A Rosângela, que estava fazendo a direção
de arte, e a Taís já estavam tensas, perguntando
pelo roteiro desesperadamente. Eu e Beto, então,
sentamos aqui num sábado à noite e começamos
a pensar no que fazer. Foi quando o Beto trouxe a citação
do Borges, de memória mesmo.
RR: E o Aurélio trouxe uma garrafa de
cachaça... (risos)
AA: Minha primeira idéia era fazer a coisa
dos três velhos contando histórias e a
partir daí tecer um mito de origem de Itaipu.
E eu estava achando aquilo genial, aquilo funcionava
muito. O Beto ainda veio com a idéia de jogar
a rede e puxar um jumento, eu achei ótimo. Já
tínhamos a estrutura do filme: três velhos,
três histórias, fechando com o jumento.
Faltava o quê? As histórias, "só"
as histórias. No domingo eu liguei para a Rosângela
lembrando de um livro do Jean-Claude Carrière
que falava, citando um outro livro, das 32 histórias
possíveis de serem contadas. Eu ligo então
para a Rosângela: "Só falta um pedacinho
para acabar o roteiro. Aquele trecho das 32 histórias
possíveis de serem contadas, onde é que
está?". E ela responde: "Bom saber
que só falta isso...". Em um dia, enlouquecidos,
pegando todas as referências possíveis,
parimos as três histórias. Na segunda à
tarde a gente tinha feito o roteiro mais ou menos como
ele ficou até o final. A gente mostrou para a
Taís, que tinha aquele roteiro original de O
Velho e o Mar mais "A terceira margem do rio",
que tinha três personagens, três mise
en scènes básicas, era muito fácil
de fazer, e a gente disse que tinha mudado um pouquinho
mais os diálogos. Eram já as três
histórias, com o casamento, com o puteiro...
A Taís se trancou então para ler, porque
não queria que ninguém a atrapalhasse.
Depois de uns cinco minutos ela, que tinha parado de
fumar, volta, pega um cigarro, começa a fumar,
sai de novo, volta depois de uns dez minutos e fala:
"Um sanfoneiro e um cortejo?!". E a gente:
"É, mas é tudo simples, um plano
só, tranqüilo". Ela continua: "Uma
sereia?! Vocês enlouqueceram completamente! Um
bordel, vocês querem um bordel?!".
RR: "Mas é um só..."
(risos)
AA: Mas então ela disse que tinha achado
ótimo, que tinha achado lindo, e que a gente
filmaria, mas depois de "Itaipu", pois seria
um outro filme. Eu comecei a argumentar e ela foi se
convencendo aos poucos. Ela dizia: "Mas eu não
entendi aquela idéia do jumento". Eu falei:
"Como tem isso metaforicamente na história,
a gente tem que colocar isso literal no filme, ir pro
concreto". Aí ela: "Ah, sim, entendi:
colocar a cartela no final...". Eu digo: "Não,
eu estou falando do jumento no final". E aí
ela explode: "Tem um jumento de verdade?!".
Mas acabou que ela se convenceu... E a partir daí
a história estava pronta. O que foi engraçado
foi correr atrás dos velhos para contar as histórias.
RR: A gente sabia que era fundamental que parecesse
que eles é que tinham parido essas histórias,
e não que elas tivessem saído da gente.
A idéia inicial era procurar velhos pescadores
de Itaipu que já fossem contadores de histórias
e que pudessem adaptar essas histórias ao universo
deles. E aí mais uma epopéia.
AA: O engraçado é que quando a
gente chegou com as nossas histórias sobre Itaipu,
finalmente apareciam as deles, ou seja, os caras não
iam entregar de graça as histórias: você
me conta uma e eu te conto uma outra aqui. E aí
o engraçado é que eles iam corrigindo:
"Essa sereia apareceu mesmo, mas foi ali e não
nesse canto aqui. E ela tinha um cachimbo". Assim
foram crescendo as histórias. Só que dos
três caras que a gente pegou inicialmente, um
não engrenou de jeito nenhum, o terceiro era
um velhinho já muito beato e começou a
mudar a história da puta, que foi justamente
a que a gente contou para ele, e a coisa não
funcionava. E um estava indo muito bem, era bom contador
de história mesmo.
RR: Enrolava a gente, ficava quatro horas contando
outras histórias...
AA: Quando você conhece o cara e ele diz
que não sabe contar história, pode sentar
que lá vem uma boa. Nos dois primeiros dias ele
ia muito bem, mas no terceiro, quando a gente decidiu
gravar, o cara travou completamente, viu microfone e
gravador e não saía nada. Não dava
para arriscar, pois a chance de ele travar no set era
muito grande. Aí a gente saiu por Niterói
atrás de contadores de história.
RR: Parava na rua, pegava uma pessoa inocente
e dizia: "Você conhece algum bom contador
de história? Velho?". A gente batia nas
portas das casas, corria atrás das pessoas.
AA: Foi aí que a gente chegou aos três
contadores de história. Primeiro o Arduíno
(Colasanti), que era conhecido do pessoal de Itaipu,
e que a gente depois descobriu que era pescador e mergulhador,
além de ator, foi ótimo já de cara.
O outro era o Cabral, que faz a última história
e que era um dono de bar, ex-caminhoneiro, mora em Piratininga.
Faltava o terceiro, que era o cara para contar a primeira
história, e a gente encontrou um bêbado
ali no Cafubá que era ótimo, um cara bom
de história. Só que ele era completamente
alcoólatra. Fez uma vez, duas vezes, enquanto
estava passando bem, na terceira vez o cara desapareceu,
sumiu, não dava nenhuma segurança, isso
já a uma semana ou duas da filmagem. A gente
acabou descobrindo um pouquinho antes esse cara que
era na verdade um ator amador, ex-funcionário
da Petrobrás, aposentado, morando no Leblon,
cearense, que não tinha nada a ver com isso.
A gente começou a trabalhar com ele e a duras
penas saiu. Apesar de ele travar na hora das filmagens,
a gente conseguiu organizar de um modo que saiu. O legal
é que a gente juntou três contadores de
história que não tinham nada a ver um
com o outro.
RR: E que só se encontraram no dia da
filmagem, o que foi legal também. Eles sabiam
qual era a história do outro, mas não
tinham ouvido o outro contar.
LCOJr: É curioso isso porque o primeiro
plano do filme, assim como vai se repetir toda vez que
alguém for começar uma nova história,
é o movimento de câmera da rede de pesca
em direção ao rosto do cara que vai começar
a contar a história, ou seja, por mais que seja
uma história individual, o que a precede é
uma rede, a idéia de que tudo aquilo está
interconectado com um mesmo imaginário.
AA: É o pressuposto do filme. Que vem
na verdade de um conto do Italo Calvino, de As Cidades
Invisíveis, em que três velhos estão
tecendo uma rede e com isso construindo a cidade sem
parar. A idéia é que essas histórias
nunca acabam, eles estão sempre permanentemente
andando com isso.
RR: O filme também não acaba. Não
tem um percurso linear para encerrar a coisa.
LCOJr: O espaço mitológico é
inextenso assim como é atemporal.
AA: É espiral.
LCOJr: Quando um Burro Fala... foi a primeira
co-direção de vocês, mas eu sei
que vocês já tinham trabalhado juntos,
ao menos que eu lembre e já tenha visto, em Pra
Onde.
AA: A gente se conheceu em 1997, num grupo de
trabalho de cinema que existia na UnB.
RR: Um grupo de malucos, já que queriam
fazer cinema em Brasília...
AA: O primeiro projeto nosso já era super
coletivo, já era uma coisa de turma. Quatro curtas
ficaram prontos, sendo que o meu filme e o do Beto foram
filmados quase simultaneamente. O Beto fez fotografia
no Cá e Lá, o meu filme, e eu fiz
assistência de alguma coisa, não lembro
de quê, no Bumba, o filme dele. Na verdade
fui assistente de qualquer coisa: de maquinista, de
diretor, qualquer coisa que passasse na minha frente
eu fazia a assistência. Terminamos isso em 1998,
e desde então trabalhamos juntos, não
só fazendo filme, mas qualquer abacaxi que aparece.
Então nos conhecemos razoavelmente, funciona
bem. Fizemos o Pra Onde juntos, com a Taís
já sendo produtora de finalização,
e na verdade fizemos também algumas mostras juntos,
conversamos muito...
RR: O filme de realização já
tem uma proposta, de início, de ser coletivo,
de ter quatro alunos realizando o filme. Então
nos juntamos eu, o Aurélio, o Mauro (Reis), a
Taís e a Rosângela. Sempre tivemos uma
coisa de estar discutindo o filme os quatro. Eles são
co-autores do filme também. Claro que na filmagem
precisava distribuir as funções, mas o
conceito era todo discutido em conjunto.
Tatiana Monassa: E agora está se perdendo
esse sentido do filme de realização. Existe
toda uma facilidade, as pessoas vão lá,
se inscrevem e realizam o próprio filme. Não
tem mais essa coisa de uma turma fazer um filme.
LCOJr: Acho até que vocês e essa
turma, que estão sempre pensando o cinema juntos,
representam uma exceção. É um grande
paradoxo, mas a faculdade de cinema forma poucos grupos
assim. O que você vê, na verdade, é
uma tendência cada vez maior à individualização
dos projetos, com a faculdade desempenhando um papel
de viabilização material. Está
se perdendo um pouco a idéia de gerações
que se juntam ali para pensar e fazer cinema, as pessoas
simplesmente participam do filme do outro a convite.
TM: Em relação à mise
en scène de Quando um Burro Fala...,
eu vejo no filme um incrível poder de síntese
nas imagens. Gostaria que vocês falassem um pouco
da decupagem do filme.
RR: A gente pode pensar, por exemplo, na idéia
de não ter raccord de espaço nos
planos. A câmera seria mais um elemento para denotar
aquela história que está sendo contada.
A gente queria ter a liberdade de articular determinada
fala com determinada imagem, sem mais nenhuma coisa
interferindo. A câmera quase sempre está
num ponto de vista de observador daquela história.
Tanto que a gente usou sempre uma lente normal, não
tem nenhum contra-plongé ou plongé, só
às vezes por uma questão de colocar determinada
coisa em cena. É como se estivéssemos
sendo espectadores daquelas histórias que estão
sendo narradas ali. E a articulação com
as falas: são as falas que vão te mostrando
os elementos que estão em quadro.
AA: A câmera é muito menos retórica
do que deveria ser, e por isso deve haver ainda maior
cuidado com os elementos em cena. A câmera fica
fixa em algum lugar, ou se movimenta para aumentar o
tamanho da observação daquele espaço,
mas não é para sublinhar nenhuma ação.
A cara dos figurantes é super importante, como
eles vão estar na cena, o figurino também,
tudo isso é muito importante para dar o máximo
de riqueza possível para essas imagens, e para
estar condizente com a história. Há um
esforço tremendo de fazer o filme atemporal,
de tentar fazer um filme em que não se localizasse
o tempo, em que não se pudesse dizer se aquilo
aconteceu há cinco anos, há dez anos,
na década de 50 ou na década de 10. A
idéia é tentar jogar para esse tempo mítico
de que você falou mesmo: não conseguir
localizar esse filme no percurso histórico. A
gente ia lá cutucar o trabalho de arte da Rosângela
para ela não deixar sublinhar nenhum traço
desse tipo, porque existe aquela tentação
do pessoal da arte em tentar descobrir exatamente o
que é aquele tempo. A Rosângela sofreu
um pouco, porque ela vinha com a proposta e a gente
dizia que tinha de mexer um pouquinho, não podia
ser claro daquele jeito. E o legal é que ela
pegou bem rápido, acabaram funcionando todos
os elementos que ela trouxe. Às vezes você
tem quadros super despojados, quase vazios, como a figura
do malandro na última história. O cara
é um renegado, não tem nada, vive dele
mesmo, então esvaziamos o quadro, não
levamos muitos elementos. Ao passo que as putas têm
todos os badulaques e coisas do tipo, então os
quadros ficaram mais cheios.
RR: Outro fator importante era a coisa realmente
acontecer: eu quero ver a mulher mijando, eu quero ver
a sereia, eu quero ver o jumento saindo do mar. Pautamos
o filme para não sugerir apenas, mas para colocar
aquilo em cena.
LCOJr: Não filmar uma fábula com
"licenças poéticas", mas filmar
uma fábula da forma mais prosaica possível.
RR: Eu quero ver a puta com o santo na cama.
Tudo bem que é uma encenação, mas
a gente precisa ver as cenas, só assim elas são
interessantes.
AA: A gente previu o seguinte diálogo,
ou entrecruzamento de coisas: o sublime contra o baixo
ventre. O casamento tinha tudo para ser um casamento
lindo e tal, tinha até um plano opcional que
pegava muito mais a noiva e o céu na hora em
que ela está mijando, mas a gente concluiu que
não podia, não dava: o que interessa é
o choque do bonitinho, desse momento sublime, com a
coisa dela agachada mijando de fato, mostrando o mijo.
Resolvemos brincar com esse choque de coisas. A puta
tinha que ficar pelada, pegar o santo e levar para a
cama. A gente precisa dos peitos da sereia, de outro
modo não funciona. O prato com o cara comendo
o rabo da sereia. Esses elementos quebravam um pouco
esses personagens tradicionais de fábula: você
tem a sereia, toda encantada e tal, e de repente rola
um diálogo de casal entediado entre ela e o cara,
o que traz todo esse tom fabulesco da história
para uma coisa mais próxima, palpável.
LCOJr: O uso que vocês fazem do espaço
realmente salta aos olhos. Em um movimento de câmera
que é simples, como na cena da noiva mijando
e seu mijo desaguando no mar, você utiliza tudo
o que já está ali no espaço para
criar, naquele momento, uma dimensão até
épica. Esse uso do espaço segue em grande
medida a fórmula que o Erwin Panofsky, um historiador
da arte, criou num texto sobre cinema que ele escreveu:
é a fórmula dos diretores que sabem criar
estilo utilizando o meio físico. Não pré-estilizar
o espaço, mas criar estilo com o que há
no espaço. É mais ou menos isso: "manipular
e filmar uma realidade não estilizada de maneira
tal que o resultado tenha estilo".
AA: E o filme pedia isso, afinal de contas o
tema dele é Itaipu. Era preciso estar preso ao
lugar, de algum jeito.
RR: Mesmo que a gente não coloque um plano
geral de Itaipu, para as pessoas poderem dizer: "Chegamos
a Itaipu!".
LCOJr: Não tem cartão-postal.
RR: Você vai ter que descobrir Itaipu pelas
histórias e por aqueles enquadramentos que estão
nas cenas, e aí você tira sua conclusão,
qualquer que seja.
TM: Eu queria perguntar um pouco sobre a montagem.
Tendo estado no set e não tendo visto as imagens
brutas, mas apenas o filme acabado, sempre fica uma
sensação de descompasso. Eu queria saber
como foi o processo de montagem. Vocês tiveram
algum tipo de dificuldade em juntar as falas deles com
as imagens?
RR: A principal questão da decupagem é
a principal questão da montagem, que é
como articular aquelas falas com aquelas imagens e aquilo
funcionar de alguma maneira, porque até então
a gente não tinha a menor idéia se aquilo
ia funcionar. Tanto que a gente filmou os planos deles
falando a história inteira; se alguma coisa desse
errado a gente pularia para o contador contando a história.
O principal artifício da montagem foi sentar
e articular esses planos às falas. Como os planos
em si não tinham raccord de espaço
nem de tempo, a gente não tinha muita opção:
era o plano tal, take tal, o que é uma questão
também, sabe quanto tempo deve durar esse plano.
AA: Tem a questão do espaço, de
como explorar o enquadramento, e a questão do
tempo, de como vai funcionar esse diálogo do
tempo de cada plano e as falas.
RR: Esse é um ponto difícil, porque
a gente inventou essas histórias e estava ouvindo-as
durante dois meses, e depois tinha que tentar ouvir
aquilo como se nunca tivesse ouvido, para saber se elas
podiam ser compreendidas por alguém. O esforço
foi esse: saber se aquela história pode ser compreendida,
fazer com que ela seja dinâmica com as imagens,
com que a duração daquelas imagens funcione
com o texto narrado.
AA: A gente não queria impor um tempo
de narração das histórias para
os contadores, cada um tinha o seu tempo. Na direção
de atores já tinha então esse problema:
como fazer o cara que conta uma história em sete
minutos passar a contá-la em três, sem
ter que cortar sua espontaneidade de fala, seu fluxo
de conversa? Esse foi um exercício: ficar tentando
puxar as histórias no tempo que fosse compatível
com o filme. E, coincidentemente, os três caras
contaram as histórias praticamente no mesmo tempo
que a gente precisava, três minutos e meio, quatro
minutos. Mas mesmo assim, na hora da montagem, e especialmente
com o Cabral que era o mais inventivo dos três,
a gente tinha que tirar algumas coisas, algumas até
geniais. O lance da sereia, por exemplo, quando ele
conta que com a parte de cima ele alimentava a alma
e com a parte de baixo alimentava o bucho, teve uma
hora em que ele emendou: "Dava uma mamada!".
A gente teve de tirar aquilo.
RR: E toda vez que a gente ria o cara inventava
mais.
AA: "E naquela época era leite mesmo,
porque nem tinha silicone!" (risos)
LCOJr: Essa, aliás, imagino que tenha
sido uma tensão do filme: pegar essas histórias
que foram escritas por vocês, e que estavam no
roteiro, e dar ao filme um tom de oralidade.
RR: A gente tentou reduzir ao máximo o
contato do ator com o texto. A gente contava a história
e ele contava depois, repetidamente.
AA: Os caras construíram as histórias
sem ler o roteiro, foi tudo a partir da nossa fala.
A gente esperava eles terminarem e perguntava: "Então
é isso? Mas está faltando aquele pedacinho...".
RR: Na hora em que a gente ouviu a história
e parecia que ela tinha vindo deles, a gente percebeu
que estava bom. Quando o Cabral acrescentou à
história o lance da "mamada", aí
a história já tinha a invenção
dele.
AA: A gente podia fazer uma coisa mais fácil:
bastava filmar o filme inteiro, depois montar do jeito
que a gente queria e pegar o sujeito e dizer: "fala
em cima disso aqui". Mas a gente não queria
isso, porque ia parecer uma dublagem. Não era
para ser um narrador, mas um cara contando história.
Interessava pegar a fala inteira do cara e fazê-la
encaixar ali.
TM: Porque as imagens saem da fala... É
justamente o contrário.
AA: Exatamente. Por mais que às vezes
desse trabalho, se a passagem do plano não estava
legal, estava sublinhando demais, a gente resolvia:
diminuía ou aumentava um plano, colocava uma
pausa entre uma fala e outra, dava um respiro. Tentamos
respeitar ao máximo o fluxo normal da fala do
cara, sem mexer muito.
LCOJr: Até porque uma característica
do bom contador de história é diminuir
aqui ou aumentar ali, quando assim lhe interessa, então
vocês não podiam fazer ele modular a história
a partir das imagens.
RR: Tem também a questão das músicas.
A gente tinha decidido colocar três músicas
na montagem, e uma delas já era a marchinha.
Na cena quando ele chega em casa com a sereia, ele a
perseguiria pelo barraco ao som da marchinha de carnaval.
Aí na montagem decidi colocar uma música
no cortejo, já tinha pensado a música
também, mas não sabia se botava som direto
ou não, se botava música original... "Brancaleone"
também, se não me engano, surgiu na montagem,
ou um pouco antes das filmagens, e a gente também
não tinha idéia se ia funcionar.
AA: A gente tinha previsto a idéia da
música, só não sabia exatamente
qual música.
RR: Um problema da montagem foi que a gente tinha
feito planos muito marcados, então não
tinha como fugir daquilo. A opção que
a gente tinha era: tira o plano e põe o cara
falando. Se a gente invertesse as coisas, ou as fizesse
ser menos linear, o filme seria outra coisa.
AA: Sobre saber se a montagem funcionava ou não,
é óbvio que a gente ficou inseguro. Na
época a gente estava fazendo uma oficina de cinema
com os pacientes de um CAPS de álcool e drogas,
aqui em Niterói. A gente já tinha filmado
com eles, e estávamos terminando a edição
dos filmes deles e terminando a edição
do nosso filme. A gente decidiu passar o primeiro corte
para eles, que são muito perdidos e se fixam
muito pouco nas coisas, e o resultado foi que eles vibraram
com o filme, participaram, deram palpite. Foi o primeiro
teste de público e funcionou. Prestamos atenção
em algumas coisas que eles não tinham pegado
direito e foi batata: aquilo precisou ser mexido mesmo.
Eu recomendo esse teste, os alunos deviam usar isso.
Os alcoólatras têm uma capacidade de perceber
os defeitos dos filmes... Uma dúvida em relação
à montagem foi aquele texto final. Eu, Beto e
Mauro sustentávamos que o texto era bom, enquanto
o resto da equipe mais namoradas e esposas e etc odiavam
o texto final. Tinha aquele peido e tal...
RR: A Taís disse que se botasse o peido
ela morria. Na verdade ela só soube no dia da
primeira exibição. Ela veio e disse: "Primeiro
vem o jumento, e agora um peido!". (risos)
LCOJr: No final do filme rola um sentimento bufão
que eu acho muito bom.
RR: Essa é a idéia mesmo.
AA: O texto foi escrito por um amigo nosso que
é antropólogo, que resolveu fazer um escracho
com esses textos de antropologia clássicos, então
ele faz uma confusão tremenda daqueles negócios,
mas sempre com um tom muito acadêmico. A gente
queria um cara com uma narração bem escrota,
escrachada, e a gente começou a procurar esse
cara. Estava difícil de achar, até gravamos
com um cara que é locutor gaúcho, mas
o cara foi muito pesado, muito formal, e tinha que ter
uma coisa meio debochada. A gente estava para terminar
a edição de som do filme e já tinha
posto o texto, aí começamos a fazer testes
entre nós mesmos e descobrimos o que já
sabíamos: que temos um ator genial entre nós,
o Beto. (risos) E tanto funciona que o Fernando
Morais (editor de som) e a Fabiana, que não sabiam
da história, não reconheceram que era
a voz do Beto. Então ficou bom. A gente achou
que precisava justamente dar esse tom no final, descontraído
mesmo, para relaxar, vibrar com o filme, não
ficar uma coisa muito fechadinha. Aí entra o
baixo ventre de verdade.
LCOJr: De fato não era um filme para terminar
com uma imagem de céu...
Entrevista realizada no dia 28/06/2005. Transcrição
e edição de Luiz Carlos Oliveira Jr.;
revisão de Tatiana Monassa
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