O
primeiro plano de Désordre revela uma
inscrição em neon que apresenta uma loja
de instrumentos musicais. É a França,
estamos em 1986, assistindo ao primeiro longa-metragem
de um novo cineasta. Poderíamos pensar: estaria
ele se inscrevendo logo de início à algo
infame ainda que naquele momento ainda nascente
escola do neon realismo, com aqueles personagens
esquisitos porém fofinhos que fizeram
a fama de Jean-Jacques Beineix (Betty Blue é
do mesmo ano, 1986) e voltam à tona hoje com
Jeunet? O segundo plano nos esclarece tudo: saímos
do neon e de sua realidade decantada a golpes de fantasia
artificialmente colorida e vemos, em plano bastante
aproximado, os rostos de dois homens dentro de um carro,
numa noite em que chove torrencialmente. Do banco de
trás, uma menina beija um, depois o outro rapaz.
Eles riem e bebem bastante, e a realidade que se apresenta
a eles é um tanto diferente daquela dos personagens-neon.
Eles são desgarrados, mas o charme deles não
é de bonequinhos, mas algo que deriva do talento
que eles têm para a auto-destruição,
para um certo extremismo de juventude. Esse pendor suicida,
esse desejo pelo perigo no que valha aí
também a falta de dinheiro para comprar bons
instrumentos vai fazer com que eles assaltem
a loja de música e acabem ferindo mortalmente
o proprietário. ponto de partida para uma intriga
policial que vai revelando a personalidade de cada um,
à Chabrol ou Simenon? Não exatamente.
Da investigação, ninguém mais ouvirá
falar. Désordre prefere analisar os efeitos
do acidente exclusivamente a partir dos comportamentos
e das mudanças de atitude dos três jovens
envolvidos.
Assim instituído, o projeto se assemelha bastante
talvez um pouco mais do que o necessário
aos filmes de André Techiné do
mesmo período. Uma mesma investigação
psicológica, um mesmo tempo dado para a evolução
e a pesquisa do comportamento dos personagens, mas dessa
vez associado ao universo que interessava a Assayas
e que ainda interessa: jovens artistas que flutuam
pelo mundo da música, sobretudo o rock. Henri
e Yvan participam de uma banda de rock que caminha bem:
fazem seus shows, tem produtor querendo lançar,
tem apresentação agendada na Inglaterra,
etc. Os anseios dos dois e de seus amigos são
os mesmos de uma infinidade de outros: namoradas, conflitos
com os pais, futuro. A música não sendo
um caminho seguro para esses jovens tornarem-se adultos,
surgem os conflitos: largar a carreira artística,
passar ao terreno sem charme porém mais palpável
do trabalho familiar, do exército. Ou então:
estar apaixonado, querer manter um relacionamento estável,
ou estar aberto a novos encontros sexuais. Esse universo
muito particular, próprio da passagem da juventude
à idade adulta, esse período de indefinição
existencial, profissional, sentimental
dos jovens adultos aparece com toda a força em
Désordre, e é uma seara que faria
poseteriormente as glórias de Assayas em filmes
mais bem sucedidos, como Une nouvelle vie e principalmente
Água Fria.
Désordre se constitui em dois eixos centrais.
Um, mais pautado na narrativa, observa a progressiva
dissolução do grupo de amigos, e, conseqüentemente,
da banda, a partir do confrontamento com a vida "real",
e principalmente com o acidente da primeira seqüência.
Cada jovem, como os personagens de Jia Zhangke em Prazeres
Desconhecidos e Plataforma, parece estampar
"no future" em sua testa. Não exatamente
pela condenação policial que nunca vem
e que na verdade só afetaria a três
deles , mas pela aparente inexistência de
uma saída que dê conta da ânsia de
cada um. O crime inicial funciona como catalizador:
se no começo eles já não viam com
muita clareza um futuro a sua frente, agora eles também
querem se desfazer o mais rápido possível
de um passado que os incrimine moralmente, que lhes
faça lembrar do acidente que vitimou uma pessoa.
O segundo eixo, talvez mais importante, é mais
abstrato e poderoso: o simples desejo de filmar os jovens
à deriva, saltando de decisão a decisão,
mulher a mulher, ou da vida à morte. Não
à toa, no meio do filme há uma cena de
navio, em que o grupo viaja para a Inglaterra (para
não tocar). É o momento em que tudo degringola
para Yvan: ele começa a beijar uma fotógrafa
diante dos olhos de Anne, que é apaixonada por
ele (é Henri, o outro da dupla, que morre de
amores por Anne). A câmera de Assayas não
induz, não força. Ela simplesmente tenta
registrar esses instantes em que tudo parece fora de
controle, em que os lances decisivos parecem ser jogados
à nossa revelia, puros golpes do azar.
Mas eis que algo em Désordre parece não
funcionar com plenos poderes. Para nos mantermos no
universo e no vocabulário musical, há
algo de poseur nessa irritabilidade de algumas
cenas, na forma como alguns personagens chegam logo
às vias de fato, nesse sturm und drang roqueiro
um tanto precipitado. Ainda faltava a Assayas, em seu
primeiro longa, nuançar melhor suas cenas, atribuir
maior naturalidade como o faz Hou Hsiao-hsien,
um de seus mestres à passagem entre a
calma e a violência, o momento imprevisível
em que tudo muda. Aqui, ao contrário, tanto a
cena da explosão sentimental após a primeira
cena de show quanto a briga na grama aparecem um tanto
forçadas, levadas mais por uma superdramatização
dos conflitos insegurança de primeiro
filme? e menos pela criação da
atmosfera que permeava o filme. Tanto esse exagero no
andamento quanto a vampirização psicológica
dos personagens herança de Bergman, outro
de seus heróis, possivelmente quebram
um pouco o poder de instalação de Désordre.
Ver um longa de estréia sobre rock no momento
em que um outro filme sobre rock, desta vez seu mais
recente, está em cartaz certamente traz idéias.
Impossível não ver nesses roqueiros iniciantes
um cineasta em começo de carreira, da mesma forma
que Clean já trata da carreira de um cantor
institucionalizado e já um pouco anacrônico,
maduro. Passagem de um momento da carreira para outro,
mas também outra posição que hoje
a própria carreira de Assayas quer ocupar: uma
reflexão sobre a maturidade, seus prós
e seus contras, o adolescente inconjurável que
ainda persiste, ainda que ficar "clean" e
poder voltar à cadeia familiar seja o objetivo.
Em Désordre, nada disso: é ainda
um panorama em formação, que não
impede o planejamento curioso como em ambos os
filmes existe a figura do produtor, da pessoa que filtra
o rentável, o tino para o que está acontecendo,
a relação com o mercado , mas que
aqui ainda flutua instável pelas vidas de moleques
recém saídos da adolescência
ou ainda não saídos completamente
que lutam para se fixar a alguma coisa; ou, ao menos,
para saber se realmente querem se fixar. Em seu primeiro
longa, Olivier Assayas diz a que vem, e já prepara
terreno para o choque de seus melhores filmes.
Ruy Gardnier
|