DÉSORDRE
Olivier Assayas, Désordre, França, 1986

O primeiro plano de Désordre revela uma inscrição em neon que apresenta uma loja de instrumentos musicais. É a França, estamos em 1986, assistindo ao primeiro longa-metragem de um novo cineasta. Poderíamos pensar: estaria ele se inscrevendo logo de início à algo infame – ainda que naquele momento ainda nascente – escola do neon realismo, com aqueles personagens esquisitos porém fofinhos que fizeram a fama de Jean-Jacques Beineix (Betty Blue é do mesmo ano, 1986) e voltam à tona hoje com Jeunet? O segundo plano nos esclarece tudo: saímos do neon e de sua realidade decantada a golpes de fantasia artificialmente colorida e vemos, em plano bastante aproximado, os rostos de dois homens dentro de um carro, numa noite em que chove torrencialmente. Do banco de trás, uma menina beija um, depois o outro rapaz. Eles riem e bebem bastante, e a realidade que se apresenta a eles é um tanto diferente daquela dos personagens-neon. Eles são desgarrados, mas o charme deles não é de bonequinhos, mas algo que deriva do talento que eles têm para a auto-destruição, para um certo extremismo de juventude. Esse pendor suicida, esse desejo pelo perigo – no que valha aí também a falta de dinheiro para comprar bons instrumentos – vai fazer com que eles assaltem a loja de música e acabem ferindo mortalmente o proprietário. ponto de partida para uma intriga policial que vai revelando a personalidade de cada um, à Chabrol ou Simenon? Não exatamente. Da investigação, ninguém mais ouvirá falar. Désordre prefere analisar os efeitos do acidente exclusivamente a partir dos comportamentos e das mudanças de atitude dos três jovens envolvidos.

Assim instituído, o projeto se assemelha bastante – talvez um pouco mais do que o necessário – aos filmes de André Techiné do mesmo período. Uma mesma investigação psicológica, um mesmo tempo dado para a evolução e a pesquisa do comportamento dos personagens, mas dessa vez associado ao universo que interessava a Assayas – e que ainda interessa: jovens artistas que flutuam pelo mundo da música, sobretudo o rock. Henri e Yvan participam de uma banda de rock que caminha bem: fazem seus shows, tem produtor querendo lançar, tem apresentação agendada na Inglaterra, etc. Os anseios dos dois e de seus amigos são os mesmos de uma infinidade de outros: namoradas, conflitos com os pais, futuro. A música não sendo um caminho seguro para esses jovens tornarem-se adultos, surgem os conflitos: largar a carreira artística, passar ao terreno sem charme porém mais palpável do trabalho familiar, do exército. Ou então: estar apaixonado, querer manter um relacionamento estável, ou estar aberto a novos encontros sexuais. Esse universo muito particular, próprio da passagem da juventude à idade adulta, esse período de indefinição – existencial, profissional, sentimental – dos jovens adultos aparece com toda a força em Désordre, e é uma seara que faria poseteriormente as glórias de Assayas em filmes mais bem sucedidos, como Une nouvelle vie e principalmente Água Fria.

Désordre se constitui em dois eixos centrais. Um, mais pautado na narrativa, observa a progressiva dissolução do grupo de amigos, e, conseqüentemente, da banda, a partir do confrontamento com a vida "real", e principalmente com o acidente da primeira seqüência. Cada jovem, como os personagens de Jia Zhangke em Prazeres Desconhecidos e Plataforma, parece estampar "no future" em sua testa. Não exatamente pela condenação policial que nunca vem – e que na verdade só afetaria a três deles –, mas pela aparente inexistência de uma saída que dê conta da ânsia de cada um. O crime inicial funciona como catalizador: se no começo eles já não viam com muita clareza um futuro a sua frente, agora eles também querem se desfazer o mais rápido possível de um passado que os incrimine moralmente, que lhes faça lembrar do acidente que vitimou uma pessoa. O segundo eixo, talvez mais importante, é mais abstrato e poderoso: o simples desejo de filmar os jovens à deriva, saltando de decisão a decisão, mulher a mulher, ou da vida à morte. Não à toa, no meio do filme há uma cena de navio, em que o grupo viaja para a Inglaterra (para não tocar). É o momento em que tudo degringola para Yvan: ele começa a beijar uma fotógrafa diante dos olhos de Anne, que é apaixonada por ele (é Henri, o outro da dupla, que morre de amores por Anne). A câmera de Assayas não induz, não força. Ela simplesmente tenta registrar esses instantes em que tudo parece fora de controle, em que os lances decisivos parecem ser jogados à nossa revelia, puros golpes do azar.

Mas eis que algo em Désordre parece não funcionar com plenos poderes. Para nos mantermos no universo e no vocabulário musical, há algo de poseur nessa irritabilidade de algumas cenas, na forma como alguns personagens chegam logo às vias de fato, nesse sturm und drang roqueiro um tanto precipitado. Ainda faltava a Assayas, em seu primeiro longa, nuançar melhor suas cenas, atribuir maior naturalidade – como o faz Hou Hsiao-hsien, um de seus mestres – à passagem entre a calma e a violência, o momento imprevisível em que tudo muda. Aqui, ao contrário, tanto a cena da explosão sentimental após a primeira cena de show quanto a briga na grama aparecem um tanto forçadas, levadas mais por uma superdramatização dos conflitos – insegurança de primeiro filme? – e menos pela criação da atmosfera que permeava o filme. Tanto esse exagero no andamento quanto a vampirização psicológica dos personagens – herança de Bergman, outro de seus heróis, possivelmente – quebram um pouco o poder de instalação de Désordre.

Ver um longa de estréia sobre rock no momento em que um outro filme sobre rock, desta vez seu mais recente, está em cartaz certamente traz idéias. Impossível não ver nesses roqueiros iniciantes um cineasta em começo de carreira, da mesma forma que Clean já trata da carreira de um cantor institucionalizado e já um pouco anacrônico, maduro. Passagem de um momento da carreira para outro, mas também outra posição que hoje a própria carreira de Assayas quer ocupar: uma reflexão sobre a maturidade, seus prós e seus contras, o adolescente inconjurável que ainda persiste, ainda que ficar "clean" e poder voltar à cadeia familiar seja o objetivo. Em Désordre, nada disso: é ainda um panorama em formação, que não impede o planejamento – curioso como em ambos os filmes existe a figura do produtor, da pessoa que filtra o rentável, o tino para o que está acontecendo, a relação com o mercado –, mas que aqui ainda flutua instável pelas vidas de moleques recém saídos da adolescência – ou ainda não saídos completamente – que lutam para se fixar a alguma coisa; ou, ao menos, para saber se realmente querem se fixar. Em seu primeiro longa, Olivier Assayas diz a que vem, e já prepara terreno para o choque de seus melhores filmes.

Ruy Gardnier

 

 



Wadeck Stanczak e Ann-Gisel Glass em
Désordre de Olivier Assayas (1986)