A
Engenharia dos Sádicos
São poucos os ambientes que possuem mais interesse cênico
do que o parque de diversões: um complexo cujas dimensões
e partes evocam um conflito natural entre um certo artificialismo
sinistro e um lirismo juvenil; entre a emoção e a farsa
que está na sintetização das formas, nos limites da
mobilidade dos instrumentos - dos brinquedos -, no fato
de esse ambiente estar rigidamente definido por fronteiras
- do lado de lá já não vale mais, a jurisdição é do
mundo. Todos os elementos desse espaço se conjugam nesse
conflito. Todos: das luzes ao esmero carinhoso que envolve
a própria idéia de construir e fazer funcionar um doce
lugar de mentira. As estruturas são pura simulação,
mas o movimento humano e as sensações condicionadas
por elas não. Há nesse espaço uma fenda entre realidade
e fantasia.
Não é um parque de diversões convencional, em sua definição
como área de entretenimento público planejado em meio
a barracas e brinquedos, que existe em A Casa de
Cera. Mas é do conceito de parque de diversões que
estamos falando. Um parque de ideais meio gregos, por
assim dizer, em que vale menos os brinquedos propriamente
ditos do que o rigoroso labor da confecção de seus ambientes.
O objetivo final é a manutenção dos ambientes, feitos
para serem adorados. Pelos donos, diga-se. Os freqüentadores
solitários desse território. Toda a relação que o filme
A Casa de Cera travará com seu espectador no
fluxo da narrativa se baseia no posicionamento em uma
zona limite entre o fantástico e o "real"
(poderíamos chamar de possível). Numa espécie de convulsão
cênica que nasce do cruzamento entre essas duas áreas,
representados essencialmente por elementos concretos
que são centrais no parque de diversões: arquitetura
e corpos.
Na tétrica e francamente perturbadora proposta do filme,
reminiscente do pesadelo folk americano B dos anos 70
(filmes baratos que se embrenhavam no profundo rural
do país para, através desses intestinos geográficos,
confrontar os personagens com comunidades macabras ou
aberrações: agenda cinematográfica que na época resultou
na montagem de pequenos estudos sobre civilização, medo
e sobrevivência - o filme fundamental é The Hills
Have Eyes, de Wes Craven, e o padrinho mais
ilustre desse "estilo" é Mario Bava), há uma
cidade fictícia. Ela é monitorada de uma casa, via controles
de energia, por dois irmãos sádicos, gêmeos. Esses irmãos,
sendo Vincent (o outro é Bo) portador de deformidades
que em si poderiam esgotar a questão física de debate
entre real e fantástico que há no filme, são autores
intelectuais e práticos desse parque.
Os forasteiros desavisados que lá chegam, vindos do
asfalto, das universidades, de um mundo de TV americana
mais real do que qualquer outro, são capturados. Serão
capturados exatamente para, depois de procedimento anatômico
específico, se transmutarem em peças de um "freakshow",
numa lógica de imagem com enorme ressonância do elemento
"epiderme". Tornam-se peças processadas num
hibridismo entre o orgânico da carne, que será mantida
debaixo de camadas e camadas de cera aplicadas em uma
espécie de laboratório-ateliê, dentro no porão da casa
em que esses irmãos vivem. Camadas de cera, no caso,
imitarão as formas e os traços dos corpos que estão
debaixo dela. Esses novos corpos, réplicas perfeitas
em cima do original, mestiços entre tecidos humanos
e esculpidos, ou seja, "plásticos", povoarão
as instalações da cidade-parque de diversões. Ficarão
expostos em seus vários departamentos: nas lojas, na
igreja, nas casas, no cinema antigo. Lá ficarão.
Jaume Collet-Serra se revela dos cineastas novos mais
cuidadosos e atentos ao detalhe, à minúcia, desses processos,
desse planejamento, e em sua conseqüente interferência
nas imagens que engenha. O diretor consegue tecer um
filme que é acima de tudo sobre o sonho da construção.
O prazer divino da geração e do engendramento de um
determinado sistema protético, mas "funcional",
que, em seu desenho e em seus alicerces, imita algum
outro. No caso, uma pequena cidade americana pacata
e suas células vitais. Uma cidade retrô em seu desenho
paisagístico e social mais clichê e aprazível, evocando
tempos dourados american graffiti. Uma visão radicalizada,
e perfeitamente inserida em linguagem de gênero terror,
daquele prazer que meninos sentem com seus Legos.
Uma das forças do filme está na própria cidade, no sonho
de Vincent e Bo, na forma como o diretor Collet-Serra
elaborará esse sonho e conduzirá sua câmera por ali.
Jaume maneja com habilidade essa "informação",
a cidade, a ponto de ela ainda, como um brinquedo de
várias faces, ainda se revelar, num filme de 110 minutos,
no minuto 95. Apesar de Collet-Serra escolher claramente
pontos determinados da cidade para desenvolver cada
parte do filme, o desvelamento das unidades desse brinquedo
é conduzido com calma. Há um claro diálogo, dos mais
saudáveis, com os jogos de videogame de aventura ultramaleáveis,
exatamente aqueles que tentam se aproximar mais do cinema.
Jogos que apresentam uma dimensionalidade diferente,
ampliada, em que personagens têm de abrir portas, se
confrontar com o espaço e procurar as chaves para o
progresso de sua trajetória. Cada ambiente da cidade
comporta uma história, comporta uma possibilidade de
avanço ou perda em sua mobília, em sua lógica interna.
Há intensa morbidez, mas antes de tudo uma placidez
de olhos admirados na forma como essas estruturas da
cidade - em seu regime de paralisia farsesca e bela
e de plasiticidade - são estudadas pela câmera de Collet-Serra.
Há sem dúvida um certo classicismo embutido nesse olhar.
Se há uma virada para a violência extrema e para a escatologia
em muitas cenas, é mais por que esses elementos pouco
higiênicos condicionam parâmetros de conservação e continuidade
desse parque; menos por um esgotamento de opções dramáticas
e visuais. Fazem parte de seu abastecimento, de sua
organização cotidiana. Afinal o reartesanato de corpos
e a proteção do projeto dos irmãos dependem da brutalidade,
de ações para desovar lixo corporal. Nesse sentido,
Collet-Serra tenta, ousadamente, captar o perturbador
exatamente ao tatear um "naturalismo" impossível
no regime insano daquele lugar.
Além disso, interessa ao diretor, e isso é mais do que
nítido, discutir essa qualidade de violência, sua digestão
e o efeito, entre o visceral e o caricatural, que ela
pode provocar em um público 2005. Entre mutilações e
a manifestações hardcore da dor, há um ajuste sutil
entre a expressão da sensibilidade dos corpos jovens
no filme e o teste de sensibilidade do espectador em
relação às agressões que aqueles corpos estão sofrendo.
Essa virada para a escatologia é bancada por Collet-Serra
muito também porque sua abordagem crua é combustível
de uma "tabela" de gênero aqui a cada momento
evocada e respeitada - mas progressivamente vitaminada
e robustecida: a do cine das profundezas geográficas
americanas e de seus monstros ocultos, mas prováveis,
que praticam atos hediondos. Putrefatos, ou alienados,
em uma história cultural, o próprio país.
É curioso pensar que sobretudo uma nação moderna ("nova"),
como os EUA, clama por sua mitologia do terror dos que
moram nos bosques, nas camuflagens das árvores, e à
margem dos pactos sócio-culturais que com o tempo vão
sendo inventados e refinados. Nada estranho para um
país com acervo enorme de atrocidades cometidas entre
essas árvores, nos séculos 19 e 20 (primeira metade
sobretudo), excrementos da escravatura e de seu "pós",
mal resolvido nos centros urbanos e fora deles. Uma
idade na qual a sociedade rural nesse imaginário rudimentar
do terror parece ter estancado ou se empalhado. Jaume
Collet-Serra, um espanhol, eleva essa mitologia primitivista
de forma tão alegórica quanto visceral. Nos faz pensar
também, sendo A Casa de Cera um filme fruto de
um cinema anterior, da década de 70, que não é estranho
que em uma cultura tão visual esse "estilo"
de medo tenha tido sua gestação e tenha sido tão bem
implantado pelo próprio cinema.
É inegável que muito do encanto de A Casa de Cera
reside na forma como Collet-Serra manuseia a percepção
de seus personagens em relação à artificialidade epidérmica
e paisagística do que vêem. Há uma clara observação
sobre a crise de crença no olhar nas entranhas desse
filme, já que todos os objetos se apresentam palpáveis
para depois se revelarem falsos, no auge do filme. Réplica,
original, artificial, orgânico. Brilhante é a maneira
como o diretor contrabandeia esse jogo do objeto falso
para a dimensão de percepções do público. Por que escalar
Paris Hilton, que vive uma das componentes do grupo
de jovens que no bosque se embrenhará e na cidade chegará,
para esse filme? Poucas vezes na atualidade uma opção
de casting foi tão saudável para a pretensão conceitual
de uma obra. Principalmente porque a visão que o diretor
lança sobre ela parece ser tão vulgarmente fetichista
como é doentiamente obsessiva a relação dos irmãos gêmeos
com as esculturas naturalistas de seu parque. Paris
aparece no filme basicamente como um estranho artefato
de sentidos e desejos masculinos jovens: na verdade
é por meio dela que a relação construída desde o começo
no filme, entre imagem e dispositivo, reverbera e se
fecha como conceito. Plástico e pele, fantasia e realidade.
Temas como gravidez, camisinha e voyeurismo orbitam
seu corpo de modo que é possível entender Collet-Serra
como tarado, brincando com taras de todas as filiações
na atriz, de todas as instâncias: interiores e exteriores
(nós).
Paris é um monte de pele e peitos anabolizados, carne
e membros tão vistosos e estimulantes dos sentidos quanto
artificiais. É uma escultura de cera perfeita, que anda
e fala. Produto tão farto dessa mesa de quitutes calóricos
que é o imaginário americano setor sexo, ela parece
nascer como réplica de um certo modelo Malibu "blondie"
de enchimento e turbinamento; de hedonismo pornô, nascido,
ou amadurecido, na década de 90. Gritando, ou melhor
urrando de pavor, e sendo absorvida pelo filme, via
tratamento do diretor, como uma adolescente cujas fotos
tarja preta poderiam estar aí rodando a net, ela sintetiza
todos os conflitos epidérmicos de imagem do filme, que
passam pela questão da réplica, da simulação perfeccionista
de um modelo, e chegam ao equivoco da percepção.
Ratifica, para além de qualquer outra questão, todo
o esforço de Jaume Collet-Serra numa mise en scène
da aparência e da força da aparência, para um filme
no qual a constituição das imagens, e de todo o desconforto
do sinistro trabalhado na narrativa, gira em torno do
que parece: da cortesia de um chucro caminhoneiro caipira
de estrada (ele conduz os jovens à cidade, mas no final
será de fato revelado em suas intenções) à animação
elétrica de uma casa. Uma casa que primeiro é vista
como porto seguro por essas jovens que na cidade chegaram
com o objetivo de procurar outros dois, que por sua
vez foram procurar combustível e não deram mais notícias.
Na formosa casinha, tudo está ligado, sons, luzes, e
há a sombra de uma velhinha. No ponto crucial, muito
bem esperado por Collet-Serra, que conjuga tempo e planos
com caligrafia visual das mais precisas, e também com
o aditivo da montagem, a senhora que lá vive revela-se
um desses objetos processados pelos irmãos, corpo embalsamado.
A Casa de Cera parte de uma conjugação quase
simbiótica de arquitetura e corpos. Esses se locomovem
a princípio em uma relação tradicional, mas que é sempre
manancial de tensão, com um projeto paisagístico provinciano
e sedentarizado, imutável: abrem portas, correm, andam
e observam fachadas, interpretam a paisagem e coordenadas
territoriais; depois, se integram como decoração zumbi
dessa arquitetura. Se essa ligação entre arquitetura
e corpos é tão vigorosa, não é estranho que ambos sejam
concebidos e talhados a partir de materiais e técnicas
similares. No fluxo entre real e fantasia que Collet-Serra
entende tão bem, a origem e o destino dos corpos esculpidos
é o derretimento da cera. Com um pé num surrealismo
eminentemente gráfico, articulando planos que manifestam
uma densidade melancólica do desmantelamento, da degeneração,
a casa, QG do sonho, tem o mesmo destino - do concreto
para o liquido. Revela a si própria como estrutura protética,
da aparência. Falsa. Monumento à réplica e ao equívoco
dos sentidos que, assim como os corpos humanos, é um
artefato maleável e forjado através de um determinado
procedimento técnico.
A seqüência de dilapidação da casa, um oceano de cera
derretendo, escorrendo pelo chão e se revelando como
cera, nos é dada pelo diretor num fluxo estético que
mistura pompa e consternação, o que me parece dar forma
ao tom ideal de morte de um ideal grandioso. O castelo
dos últimos reinantes, os loucos megalomaníacos, que
cai. Últimos reinantes cujo estatuto violenta as setas
e paradigmas sociais que vigoram fora seu território,
rompe com o modelo de razão e se posiciona em nome do
individualismo de um ideal artístico que primaria pela
eternidade, pela eterna exposição (tem portanto, de
ser algo mais importante que sociedade e humanidade
modernas, mas contorna os ideais mais nobres de civilização
labutada sob o apuro da luz da criação sublime, bela).
Temos em última instância um filme do embalsamamento
- um embalsamamento de estruturas, corpos e ideais:
sobretudo aqueles alinhados com um modelo de vida americano
anacrônico, em um casamento perverso com um sentido
de terror. O passado é fantasmicamente embalsamado,
persiste, e ecoa no presente, ou antes, é penetrado
pelo presente. Os dois tempos se encontram subterraneamente,
nas tripas geográficas: esforço metafórico? pode ser,
talvez não, mas em nenhum dos casos o brilho do filme
seria menor. O sentido de sinfonia entre esses elementos
é tão bem combinado com o terror mais glandular, mais
instintivo, que nada destoa ou soa carregado.
Se o castelo cai e se transforma fisicamente (cera erguida
para cera que se derrete e se deforma) é porque não
resistiu a esse combate, ou choque simplesmente, com
o continente moral que estava fora de seu território:
continente cujos indivíduos são muito antes (bem-vindos)
invasores (afinal terão de fazer parte do projeto) do
que vítimas. Falamos dos jovens, dos quais sobram apenas
os dois irmãos, que vão sendo mortos um a um. Do definhamento
espetacular do projeto dos irmãos sobra a mensagem de
que digno também era o esforço classicista e esteticista
dos irmãos. Um esforço anacrônico, aliás como a cidade,
fadado ao silêncio e às ruínas de um tempo mais praticista
- de pessoas que moldam seu corpo num praticismo da
reprodução. Reproduzem-se padrões gráficos, de consumo
- não a pele, como fazem os irmãos em sua utopia de
ligação entre o cirúrgico e o artístico na concepção
de suas obras. Esses padrões são reproduzidos para que
a adolescência seja reproduzida para sempre; e nem por
isso impeça que fluam estímulos de reprodução propriamente
dita, continuidade natural da espécie. Essa idéia de
“proliferação”, casada com outra bem próxima, a de circulação,
é antagônica ao ideal dos irmãos, que é o da conservação
e da perpetuação.
De qualquer modo, o filme acaba resultando numa fábula,
de contornos claramente bíblicos, da irmandade e da
união do ventre como condição para a construção e a
destruição do mundo. O mundo aqui, claro, representado
pela cidade de horrores dos gêmeos, combatidos por outros
gêmeos, personagens jovens. Pode ser vista também uma
fábula que arranha esses limites e parte para uma reflexão
da aventura literária infantil no cinema. Essa reflexão
é assumida radicalmente como experimento pelo filme,
ao propor para os personagens uma trajetória em que
impulsos clássicos de medo e de encanto diante da fuga
para um mundo encantado, presentes nessas narrativas
infantis, serão hipertrofiados, se misturarão com uma
história de cinema; terão a assistência da brutalidade
e tirarão, assim, essas histórias, assustadoras em um
sentido mais sugestivo e lúdico, da candura elegante
dos livros. Nesse sentido, A Casa de Cera percorre
a mesma estrada do potentíssimo filme de David Gordon
Green, Contracorrente, recentemente em cartaz
nas salas de São Paulo.
Uma fábula, no caso de A Casa de Cera, que é,
de toda maneira, revestida pela idéia meio aguada e
arcaica de que estrutura familiar tem mais consistência
e sobrevive acima de qualquer outro pacto fraterno,
vide serialização das mortes dos outros personagens.
Há clara, às vezes pragmática demais, uma cadeia de
eventos que se costura para ao final cravar em cena
um embate óbvio entre essas duas forças, as duas representações
familiares, simbolizadas pela identificação genética
máxima: Elisha Cuthbert (a Kim Bauer de 24
Horas) e seu irmão gêmeo (interpretado por Chad
Michael Murray)/ Bo e Vincent. Mas há de ser pensado.
Essa forçação, aqui vista biblicamente, sob o signo
da genética recebe outra coloração na leitura de Jorge
Coli (Folha de S. Paulo, Caderno Mais! de 26/06/2005).
Uma coloração que nos mostra que o laço consangüíneo
não é outra coisa senão eco "extremo alucinado"
da estrutura que rege o projeto dos irmãos. "Traços
familiares idênticos", que se repetem na cara de
um, na cara de outro. Assim, natural um projeto todo
da réplica e do mimetismo, realizado em cera.
Embora o filme se pareça muito com Psicose, na
climatização da loucura em um ambiente anestesiado e
na aparência pacífico, na aposta nos contornos sinistros
de figuras cadavéricas, Collet-Serra deve menos a Hitchcock
do que a outro diretor. A grade estilística à qual Collet-Serra
recorre está relacionada mesmo com o cinema de Wes Craven.
Um cineasta, aliás, que sempre problematizou a imagem
do corpo humano dentro de seus filmes, principalmente
aqueles filmes sobre pequenos e ocultos sistemas em
que humanos fisicamente alterados elaboravam, oprimidos
ou opressores, regime comunitário alternativo, longe
dos olhos estabelecidos por certos mecanismos da contemporaneidade:
TV, por exemplo (estamos falando de Quadrilha de
Sádicos e de As Criaturas Atrás das Paredes).
Interessante é que Collet-Serra articula, no exercício
de linguagem mais primitivo da tensão e do medo, longe
dessa seara da reflexão sobre a imagem e o corpo, um
cinema cimentado nas funções "básicas" e mais
intuitivas do cinema de Craven. Sobretudo a função da
caçada humana, essa que acaba levando o diretor espanhol
a emular e vislumbrar todos aqueles temos caros à mitologia
rural americana dos seres macabros esquecidos pelo fluxo
da máquina histórica (Deliverance, ou Amargo
Pesadelo, é outro grande exemplo a ser encontrado,
fora dos domínios de Craven). São dois diretores que
se deslocam no mesmo registro discutindo, não raro,
pontos similares: mais sensoriais, como a pele e o medo,
através desse exercício de linguagem da caçada humana;
ou menos, como o acervo da imagem americana como detonador
de uma série de questionamentos sobre essa própria imagem
e as imagens que estão sendo manejadas e expelidas pelo
próprio filme (pensamos em Paris Hilton, aliás, a cada
momento sendo filmada por um equipamento digital por
seus amigos, e na série Pânico, com todos os
seus jogos de firmação & inversão do olhar - filme
que também se calca em abundante uso de dispositivos
de filmagem, câmeras, dentro de cena, na engenharia
de sua própria ficção).
Mas mais interessante é que, em um diálogo com um outro
tipo de cinema que estava sendo feito na época em que
Craven estava começando, o filme de Collet-Serra lembra
muito mais Clint Eastwood. Um autor que estava contaminado
por uma nova visáo - grão inseminado tanto pelo italianos
contextualizados na "América" quanto por Monte
Hellman - do western como gênero fantasmagórico: caravana
ou paragem dos zumbis da história, e não mais dos formadores
da história. Algo que casa bem com o que chamamos aqui
de cinema do pesadelo folk americano, ao qual Craven
pode ser considerado filiado, principalmente com seu
The Hills Have Eyes, ou, aqui, Quadrilha de
Sádicos. O fato é que se lembrarmos de O Estranho
Sem Nome, grande filme de Clint Eastwood de 1973,
o sentiremos ecoando, uivando, em meio à arquitetura,
portas e becos da cidade dos irmãos bizarros em A
Casa de Cera. São dois filmes que coincidem na forma
como a imagem é instrumentalizada e acabam desaguando,
por meio da articulação das imagens, no mesmo tema:
a morte de um sistema. Dramas da cidade esvaziada, velada
após um fenômeno dantesco de teor quase punitivo. O
sonho da construção, no caso de A Casa de Cera,
se esfacelou.
Jaume Collet-Serra, na chave do novo filme de horror
adolescente slasher, uma seara industrial que
olha para trás e sampleia uma velha tradição que volta
a estar na moda, mas modernizada, mutante e ultra-equipada,
essa do filme B interiorano, obviamente é ele mesmo
um arquiteto mandado. Um projetista de "parque
de diversões dos horrores" cinematográfico; esse
tipo de exemplar de terror jovem, pensado, como o do
de A Casa de Cera, em torno da manipulação de
réplicas e do aperfeiçoamento na expressão de certos
imaginários já há muito conhecidos.
É alguém contratado e adaptado em uma lógica de mercado
clara, para edificar e dar traços de magia e atualidade
a um parque sonhado pragmaticamente pelos gerentes dessas
engrenagens, os produtores e executivos. Mas, nesse
sentido, é um diretor que consegue se destacar. Tanto
no domínio como encenador quanto no aproveitamento da
ambigüidade de certas opções, que parecem se descolar
da mise en scène para criar colapsos na percepção (exemplo
- Paris Hilton) em torno do filme. Em suma, é um daqueles
diretores que sugam mais desse sistema de produção do
que por ele é sugado; controla a máquina, dominando
seus comandos e órgãos, aproveitando o aparato que ela
oferece, mais do que a máquina parece saber. Pode não
ser exatamente um contrabandista, como diria Scorsese,
mas há pegadas além do comum em seu filme. Em outras
palavras, se mostra como uma excelente surpresa no ano
de 2005.
E A Casa de Cera é uma daquelas obras que, na
atual carta andróide do "bom-gosto" cinematográfico,
será devastada, ou apenas ignorada. Filminho americano
de adolescentes extraviolento, passará desapercebido,
ou infantilizado, como diversão corriqueira ou manca.
Será assim nos multiplexes populares, pelo pecado da
inverossimilhança não anestesiada por um tratamento
reconhecivelmente mercantilizável, pertencente a um
certo maneirismo de catálogo de hoje (Sr e Sra Smith
e Batman Begins, por exemplo, "embutidos"
que, para além de representar a debilidade total das
cartilhas industriais que os formulam, são emblemas
de uma curiosa inverosimilhança "realista",
calcada nesse maneirismo nosso da "padaria",
do dia-a-dia das imagens 2005) ou pela, apenas aparente,
repetição de um formato enrugado (jovens viajam e se
ferram, muito sangue jorra até se ferrarem).
Será assim perante o público das salas mais especializadas,
por, é claro, repetir clichês, não se enquadrar na chave
do "gosto aprimorado para o cinema de arte ou autoral",
ou faltar gritantemente com um certo estatuto bitolado
em relação aos valores humanos e sociais do agora, que
têm de ser refletidos na construção de imagens e de
enredo. Em suma, essa confusa empolação do que é "preciso
ser visto", ciclo do mal no Brasil condicionado
por um estranho condomínio de fatores culturais e sociais.
É preciso, entretanto, muito para não notar a ressonância
social desse filme: ele penetra cortando questões das
mais urgentes sobre o nosso olhar e sobre o desenvolvimento
da imagem fabricada e pensada nos parques industriais
do cinema.
Em suma, A Casa de Cera é um belo filme, mas
vão afastar muita gente de sua órbita essas teias do
bom gosto esclarecido e da "nova" iluminação
estética, que tem como "plano de ação" gerar
outra iluminação, político-filosófica - em síntese,
novas iluminações como grife das imagens. Grife que
está longe de um Manoel de Oliveira, acervista e observador
frio da civilização, mas muito perto de um Lars Von
Trier, por exemplo, que encarna tão bem a figura do
autor superstar ativista. Engajado em questões tão vazias
e em voga como é espesso o tingimento, de urgência universal
e politizante, que marca seu cinema. Antes de tudo um
cinema da vaidade. Aliás, a questão da vaidade (ou o
seu contrário ideal, que indica muitas vezes em seu
cinema um caminho para o abismo final do sacrifício)
sempre pontua seus personagens e seu campo de relações
com universos que constroem, controlam ou participam,
da mesma forma que pontua a postura criativa desse autor.
No mesmo tipo de expedição pela virgindade e selvageria
do interior americano (lembramos de Dogville),
A Casa de Cera também acaba pavimentando um cinema
que tem a vaidade como satélite: cercando o corpo dos
jovens e sobretudo a operação utópica e clássica de
construção do parque de cera, capitaneada por Vincent
e seu irmão gêmeo. Porém, as questões a partir daí serão
outras. A Casa de Cera é cinema bem menor; seu
espectro, contudo, é, sem dúvida, muito mais assombroso.
Claudio Szynkier
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