A
arte de retomar uma imagem
No terreno das refilmagens, poucas foram recebidas
com tanta desconfiança por cinéfilos como
este A Força de um Amor. Trata-se afinal
de um remake americano do Acossado de
Jean-Luc Godard. Esta desconfiança não
deixa de ser curiosa e sintomática quando observamos
alguns pontos relacionados a esta refilmagem e seu original.
Primeiro, A Força de um Amor não
é um mero caça-níqueis. Jim McBride
não era nenhum novato em 1983, apesar de estar
então inativo havia cerca de uma década,
tendo começado sua carreira com uma série
de filmes (David Holzman’s Diary, My Brother’s
Wedding, Glen and Randa) que estão
entre os mais arriscados realizados nos EUA entre o
final dos anos 60 e começo dos 70 – logo estamos
diante de um cineasta que, se não é um
Godard, tem uma obra com sua força e coerência.
Observar a carreira de McBride ilumina o filme – já
que A Força de um Amor é um trabalho
de transição entre estes primeiros filmes
e os de gênero com baixo orçamento aos
quais se dedicaria a partir do fim dos anos 80 – que
ganha bastante com sua posição intermediária
absorvendo um pouco do melhor dos dois pólos
que orientaram o começo e o final da obra do
cineasta. Qual o escândalo, afinal, em se refilmar
um filme como Acossado? A Força de
um Amor, mesmo se fosse um filme bastante frágil
– o que decerto não é –, já teria
o mérito indiscutível de trazer para primeiro
plano alguns dos aspectos menos positivos da cinefilia
que se formou a partir da explosão dos cinemas
ditos modernos, na qual o filme de Godard é figura
essencial. Nada mais distante do museu do que o filme
de Godard (que a cinefilia formada em torno dele com
freqüência degenera) – ele próprio
construído a partir de peças retomadas
de outros filmes –, mas é justamente uma ossificação
de obra intocável, a ser adorada à distância,
o que inevitavelmente empobrece os olhares sobre ela.
É justamente sobre a questão do que significa
refilmar Acossado que Jim McBride constrói
o seu filme. Estamos aqui no terreno das imagens decalcadas,
elas próprias inspiradas em imagens sobre imagens.
O único estado possível para a imagem
aqui é o signo da apropriação.
Cada elemento de cultura pop, dos carros esportivos
ao Surfista Prateado, passando pelo Mortalmente
Perigosa de Joseph H. Lewis e o mito do pequeno
criminoso cool que vive apenas pelo seu senso
de aventura a cada instante, existe aqui por si mesmo,
mas – mais ainda do que no filme de Godard – eles existem
afastados de qualquer realidade. A câmera de McBride
os objetiva, filma-os como se viessem de um outro mundo
– imagens-fetiches há muito gastas, mas ainda
adoráveis –, dá-lhes um aspecto de imaterialidade
fake. Isto porque todos estes elementos tipicamente
americanos que o filme respeita chegam até ele
apenas após um passeio pela França. A
Força de um Amor é um dos melhores
comentários sobre as dificuldades do cinéfilo
americano de encarar os aspectos mais vulgarmente popularescos
do seu cinema (pondo em ação o processo
que a geração Tarantino/Rodriguez concretizaria,
e não deixa de ser relevante que o primeiro tenha
o filme de McBride como um dos seus favoritos). Parte
do achado do cineasta é retomar o elemento de
mal entendido cultural que está por trás
de boa parte do primeiro Godard, logo inverte-se o casal,
com a estudante francesa (Valerie Kapriski) apreendendo
a arquitetura das imagens com o personagem de cinema
americano (Richard Gere). O olhar perspicaz de McBride
reconhece as confusões que este mal entendido
gera. Aqui ele inverte a equação de forma
que tenhamos uma desrepresentação essencialmente
americana de uma desrepresentação essencialmente
francesa de um original tipicamente americano (e se
há momentos em que o filme gira em falso, eles
existem justamente quando a força do conceito
não se completa nas imagens). O andamento e o
tom do filme com seu romantismo exacerbado não
podia ser uma desleitura da essência do original,
mas não deixa de ser uma forma de ser fiel a
Godard e sua desleitura completa do filme B americano.
McBride trabalha sobre o desgaste da especificidade
de uma imagem que perde por completo contato com seu
referente. A cada novo retomar de uma imagem, mais ela
se desgasta. Resta aqui apenas o mito, no qual o filme
mergulha de vez no seu final que consegue articular-se
ao mesmo tempo de modo farsesco e no de grande crença
na força dos mitos populares. É como se
de alguma forma a textura das imagens do filme nos garantisse
que Richard Gere fosse alcançar a arma, pegar
a garota, furar o cerco policial e alcançar o
ensolarado México por mais absurda que esta seqüência
de ações seja. No lugar disso temos apenas
um final em suspenso (os créditos sobem no momento
em que ele agarra a arma), em parte porque o filme não
pode resolver suas contradições, em parte
porque o cineasta sabe que tais imagens talvez ganhem
mais forças quando completadas pelo imaginário
do espectador.
Jim McBride é bem mais um moralista da imagem
do que um Tarantino ou mesmo o jovem Godard, daí
a ambivalência que o filme registra a respeito
do estado das imagens que ele tematiza. Há uma
obvia fascinação pela porta que Godard
abriu em 59, mas ao mesmo tempo um grande temor. De
certa forma, A Força de um Amor se aproxima
mais de Detetive (o retorno amargo à cena
do crime do próprio Godard e, não surpreendentemente,
o provável menos popular de seus filmes pós-grupo
Dziga Vertov) do que do seu modelo original. McBride
na sua ambivalência acaba jogando para primeiro
plano um elemento de tensão presente desde a
primeira geração de cineastas cinéfilos:
um fetiche pela imagem e seu contraponto num senso de
responsabilidade na hora de representar o mundo. Isto
tudo bem representado na figura de Richard Gere (filmado,
como bem observou Dave Kehr, de forma francamente pornográfica),
que se revela ao mesmo tempo fascinante na sua crença
no instante, no raso, nas imagens que existem no seu
próprio fluxo, mas que também é
repugnante na maneira como usa estas mesmas características
para criar um rosto fixo e inexpressivo incapaz de sentir
nada que não seja esta euforia momentânea
e assumir a responsabilidade. Tensão esta que
Jim McBride não pode resolver, mas cuja angústia
ele expressa com grande força.
Filipe Furtado
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