A GRAÇA PERDIDA DOS CAÇADORES
Os Caçadores da Arca Perdida de Steven Spielberg

George Lucas construiu boa parte de seu sucesso a partir da idéia simples de que o público de cinema, agora educado pela televisão e pelas histórias em quadrinhos, desejava reencontrar na tela grande seus hábitos de leitura.Enquanto o cinema persiste inspirando-se na forma romanesca que foi dominante para a geração anterior – que ainda lia –, Lucas, não sem demagogia, capta a ligação fundamental do espectador adolescente com uma estrutura em episódios e personagens familiares que constituem o laço de um filme a outro. É sociologicamente hábil e financeiramente sem igual: é sempre mais vantajoso procurar a mina de ouro do que peneirar o rio para extrair apenas uma pepita.

Essa tradição popular remoída, ruminada pelos meios de comunicação modernos e que faremos remontar, por questões de comodidade de demonstração, ao romance de folhetim, tem a característica de, apesar de todas as denegações, privilegiar sempre a narração à ficção. A maré – em última análise, a técnica – destinada a conduzir o espectador será sempre mais forte, e de longe, do que a matéria própria do relato, personagens, situações, cenas, propósitos, em suma tudo aquilo que contribui a fazer de uma ficção algo consistente.

Um relato tem um começo, um meio e um fim. Uma narração só vive graças a uma rede estreita de procedimentos, encadeamento paralelo das ações, sistema de tensões sempre deixadas em suspenso, multiplicação dos cenários, das ambiências, digressões, figuras retóricas (o resumo, a perseguição, o rapto, a fuga) e elipses estratégicas. Os Caçadores da Arca Perdida não é fabricado de outra forma.

Aqui estamos de pés fincados no domínio reservado da série televisiva em que o dispositivo reina mestre. O conceito é o abre-te-Sésamo que sozinho conduz à elaboração do perpetuum mobile destinado a durar, se não até o fim dos tempos, ao menos até o cansaço do espectador, o que em todo caso está a anos-luz de distância do obsoleto ponto final das ficções.

O espectro do inquietante público médio das sondagens ditará seus desejos em reuniões de produção em que se modelarão os traços dominantes do herói, as características visuais ou narrativas do filme, ou seja, uma série de elementos fixos, de parâmetros imutáveis. Do enquadramento nascerá o relato, do continente o conteúdo. A televisão tem por tradição inaugurar suas séries com um episódio de localização, um episódio anzol realizado com um orçamento mais importante por um cineasta de confiança. Steven Spielberg fez um filme de tipo novo, o piloto da série Indiana Jones. Já se podia sentir indistintamente há um bom tempo que o formato do cinema estava desestabilizado: os filmes se alongavam de forma extravagante, vimos várias séries televisivas adaptadas a partir do sucesso da tela grande e a sistematização das segundas partes imprevistas, carregadas pelos cabelos, solicitadas pelo público que desejava reencontrar os personagens que ele tinha amado. Tudo indicava que se tratava apenas de compromissos claudicantes esperando os filmes que de partida preveriam sua estratégia comercial para além de um primeiro contato com o público. Suponhamos que, em breve, não se fará mais uma superprodução que já não contenha em seu germe um filão explorável.

Seria absurdo deplorar esse estado de coisas, já que vemos perfeitamente como o contorno dominante de um público pode num dado momento moldar o cinema à sua imagem, e não o inverso. Por outro lado, ao custo de gritar aos sete ventos que o cinema é uma indústria, era fatal que houvesse empreendedores para acreditar nisso. George Lucas foi suficientemente hábil para prender-se à onda de um profundo movimento popular e, em seguida, se deixar levar preguiçosamente por ela. Essa mesma onda que Coppola se encarregou pessoalmente da missão paranóica de desviar em seu proveito. Só que, nesse momento, a lucidez está do lado de Lucas e seus filmes nos propõem um espelho do mercado. Logo, ninguém há de censura-lo de dizer que um gato é um gato e que o cinema é um negócio.

Conceber um relato de aventuras exóticas no estilo Clube Mediterranée, com guias ou, pior ainda,ao mundo da terceira idade, pode aparecer como uma garantia. Um filme como Esfinge de Franklin Schaeffner, que acreditava poder resolver o problema abordando-o de frente, fez os custos de seu contra-senso: o relato pegava pura e simplesmente o circuito turístico tradicional, alguns dias no Cairo, alguns dias livres, depois volta ao Nilo até o Vale dos Reis, as pirâmides, Luxor.

Passava-se o tempo inteiro por grupos organizados e o caminho dos espectadores só divergia do trajeto dos turistas no momento de finalmente chegar à cripta dos tesouros, o roteiro tendo previsto uma visita que as agências de turismo ainda não tinham imaginado. Credibilidade: zero.

George Lucas está melhor colocado do que qualquer um para saber que as aventuras exóticas só têm alguma razão de ser se ainda permanecem tesouros a descobrir e que toda a população da Fontaine Saint-Michel só vai passar suas férias de verão nos lugares aos quais se deseja conferir uma aura de mistério. Seu roteiro só pode se desenvolver além dos limites do mundo balizado, do universo familiar. Para os antigos, era além das Colunas de Hércules, para nós será além do Sistema Solar. Ora, Lucasfilms já é o líder desse mercado.

Permanece uma nostalgia pelas lembranças de infância, por uma forma que se estabeleceu já se vão alguns trinta anos. Em suma, se o roteiro de aventuras exóticas hoje está morto como forma contemporânea, seu cadáver ainda pode ser pilhado. Os Caçadores da Arca Perdida se refere não à aventura enquanto tal, nem aos sonhos de uma geração para a qual o explorador ou o arqueólogo eram os heróis modernos, mas antes à loja de acessórios de sua tradição cinematográfica que se tratará de explorar de forma exaustiva.

O último plano do filme mostra a arca do título fechada numa caixa de madeira e um funcionário de manutenção transportando-a num Fenwick. A câmera recua e descobrimos caixas idênticas entrepostas até se perder de vista num hangar gigante. Difícil não dizer para si mesmo que essa é uma metáfora do cinema de aventuras tal qual Lucas e Spielberg o tratam: um entreposto um pouco empoeirado em que basta entrar e embarcar algumas caixas há muito tempo fechadas para dar vida novamente a emoções esquecidas.

O constrangedor é que ninguém acredita em uma finalidade do produto além da comercial. A acumulação vai remediar a falta de convicção, o espectador será ofuscado na impossibilidade de ser cativado. Nisso a aliança Lucas-Spielberg é um empreendimento sombra-e-água-fresca, mas não está aí sua maior particularidade, na medida que freqüentemente é assim que acontece quando se trata de cinema de evasão. Os Caçadores da Arca Perdida, assombrado pelo medo terrível de perder apenas por um instante a atenção de seu espectador, e dirigido por um cineasta que não tem confiança suficiente em suas qualidades próprias para carregar essa responsabilidade em suas costas, termina por se basear apenas numa dramaturgia de comercial de televisão.

Cada uma das seqüências cristaliza-se em torno de um tema rico em mitologia cinematográfica e que, em outros tempos, bastou-se para constituir a matéria de um filme inteiro. Tudo que era ocasião para sonho, ou poesia ou objeto de paixões torna-se aqui apenas engrenagem, panóplia. Ídolo mexicano, carga pirata, submarino, ilha misteriosa, taverna no Himalaia, aeroplano, hidroavião, todos esses maravilhosos suportes ao imaginário tornam-se apenas uma miscelânea exibida peça a peça o tempo de fazê-la brilhar diante da platéia estupefata para em seguida guardá-la no saco de curiosidades. Abordar uma cena, tratá-la além das três ou quatro lembranças que evoca o arquétipo sobre o qual ela está fundada, é completamente estranho ao projeto e resolutamente secundário para seu público-alvo.

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Os Caçadores da Arca Perdida nesse sentido é a realização de um cinema de espectador. Cada plano do filme parece dizer que seus autores são pessoas capazes de olhar imagens – o que já é algo de bom – e depois de reproduzi-las por vias de consciência e aplicação – o que mostra uma singular falta de ambição – mas impotentes, e abertamente, em saber delas se servir.

Quando o cinema de aventuras era ainda um gênero dominante, a parte de liberdade que ele deixava ao imaginário cativava os maiores cineastas, que o empregavam como veículo para suas próprias preocupações. Foi por isso que eles foram autores. A partir do momento em que a reprodução torna-se a própria proposta de um filme, não resta mais muito lugar nem para um cineasta e nem para uma escrita. Steven Spielberg, contratado por seu saber-fazer (que é grande), era sem dúvida um dos únicos realizadores a poder garantir o sucesso do projeto Os Caçadores da Arca Perdida (que é inegavelmente total). Não é um elogio. Não existe, com efeito, cineasta dotado de uma competência longinquamente comparável que tenha sido capaz de desaparecer atrás do anonimato que implicava o projeto; que tivesse se disposto a usar como moeda suas capacidades renunciando a toda mais-valia artística. Se aceitando imediatamente não-autor. Evidentemente, ele assina o contrato: eis um filme em que nada desliza entre as linhas. Em que, da mesma forma que cada centavo gasto está visível na tela, todas as idéias afloram na superfície.

Harrison Ford, a quem estava designada a tarefa delicada de interpretar o papel de Gary Cooper, sai-se com todas as honras. Nitidamente separado dos recentes bonitinhos californianos à Flash Gordon, não somente ele se movimenta com uma espécie de elegância na panóplia estendida a ele, mas ele ainda sabe trazer àquilo que poderia ter sido apenas um retrato-robô um certo não-dito que dá nuanças às vezes a evidências pesadas.

A vigilância de George Lucas, que entretanto soube sabiamente se resguardar de todos os lados, é, no entanto, no próprio seio de seu dispositivo, duas vezes pego incorrendo em erro. Era, por exemplo, desejável que os diálogos, mesmo que eles devessem ser reduzidos a sua expressão mais simples, pudessem conservar alguma vivacidade, quando o que eles geralmente fazem é deixar a ação mais cansativa. Da mesma forma a tipificação da heroína feminina, que é a única incursão de uma temática contemporânea, permanece sempre em contradição com o conjunto. Igualmente, o pouco convincente tratamento de sua relação com Indiana Jones, com as poses de macho que lhe imputaram, contribuem para apagar a centelha de erotismo que ela poderia introduzir nesse sistema de moralidade asfixiante.

Permanece o prazer que esse filme inevitavelmente dá a seus espectadores. Seria de má fé negar as alegrias da pirotecnia, mas também seria ingenuidade confundi-las com o júbilo que o cinema pode comunicar e que aqui está ausente.

Olivier Assayas
(Originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma nº328, outubro de 1981. Traduzido do francês por Ruy Gardnier)