George Lucas construiu boa parte de seu sucesso a partir
da idéia simples de que o público de cinema,
agora educado pela televisão e pelas histórias
em quadrinhos, desejava reencontrar na tela grande seus
hábitos de leitura.Enquanto o cinema persiste
inspirando-se na forma romanesca que foi dominante para
a geração anterior – que ainda lia –,
Lucas, não sem demagogia, capta a ligação
fundamental do espectador adolescente com uma estrutura
em episódios e personagens familiares que constituem
o laço de um filme a outro. É sociologicamente
hábil e financeiramente sem igual: é sempre
mais vantajoso procurar a mina de ouro do que peneirar
o rio para extrair apenas uma pepita.
Essa tradição popular remoída,
ruminada pelos meios de comunicação modernos
e que faremos remontar, por questões de comodidade
de demonstração, ao romance de folhetim,
tem a característica de, apesar de todas as denegações,
privilegiar sempre a narração à
ficção. A maré – em última
análise, a técnica – destinada a conduzir
o espectador será sempre mais forte, e de longe,
do que a matéria própria do relato, personagens,
situações, cenas, propósitos, em
suma tudo aquilo que contribui a fazer de uma ficção
algo consistente.
Um relato tem um começo, um meio e um fim. Uma
narração só vive graças
a uma rede estreita de procedimentos, encadeamento paralelo
das ações, sistema de tensões sempre
deixadas em suspenso, multiplicação dos
cenários, das ambiências, digressões,
figuras retóricas (o resumo, a perseguição,
o rapto, a fuga) e elipses estratégicas. Os
Caçadores da Arca Perdida não é
fabricado de outra forma.
Aqui estamos de pés fincados no domínio
reservado da série televisiva em que o dispositivo
reina mestre. O conceito é o abre-te-Sésamo
que sozinho conduz à elaboração
do perpetuum mobile destinado a durar, se não
até o fim dos tempos, ao menos até o cansaço
do espectador, o que em todo caso está a anos-luz
de distância do obsoleto ponto final das ficções.
O espectro do inquietante público médio
das sondagens ditará seus desejos em reuniões
de produção em que se modelarão
os traços dominantes do herói, as características
visuais ou narrativas do filme, ou seja, uma série
de elementos fixos, de parâmetros imutáveis.
Do enquadramento nascerá o relato, do continente
o conteúdo. A televisão tem por tradição
inaugurar suas séries com um episódio
de localização, um episódio anzol
realizado com um orçamento mais importante por
um cineasta de confiança. Steven Spielberg fez
um filme de tipo novo, o piloto da série Indiana
Jones. Já se podia sentir indistintamente há
um bom tempo que o formato do cinema estava desestabilizado:
os filmes se alongavam de forma extravagante, vimos
várias séries televisivas adaptadas a
partir do sucesso da tela grande e a sistematização
das segundas partes imprevistas, carregadas pelos cabelos,
solicitadas pelo público que desejava reencontrar
os personagens que ele tinha amado. Tudo indicava que
se tratava apenas de compromissos claudicantes esperando
os filmes que de partida preveriam sua estratégia
comercial para além de um primeiro contato com
o público. Suponhamos que, em breve, não
se fará mais uma superprodução
que já não contenha em seu germe um filão
explorável.
Seria absurdo deplorar esse estado de coisas, já
que vemos perfeitamente como o contorno dominante de
um público pode num dado momento moldar o cinema
à sua imagem, e não o inverso. Por outro
lado, ao custo de gritar aos sete ventos que o cinema
é uma indústria, era fatal que houvesse
empreendedores para acreditar nisso. George Lucas foi
suficientemente hábil para prender-se à
onda de um profundo movimento popular e, em seguida,
se deixar levar preguiçosamente por ela. Essa
mesma onda que Coppola se encarregou pessoalmente da
missão paranóica de desviar em seu proveito.
Só que, nesse momento, a lucidez está
do lado de Lucas e seus filmes nos propõem um
espelho do mercado. Logo, ninguém há de
censura-lo de dizer que um gato é um gato e que
o cinema é um negócio.
Conceber um relato de aventuras exóticas no estilo
Clube Mediterranée, com guias ou, pior ainda,ao
mundo da terceira idade, pode aparecer como uma garantia.
Um filme como Esfinge de Franklin Schaeffner, que acreditava
poder resolver o problema abordando-o de frente, fez
os custos de seu contra-senso: o relato pegava pura
e simplesmente o circuito turístico tradicional,
alguns dias no Cairo, alguns dias livres, depois volta
ao Nilo até o Vale dos Reis, as pirâmides,
Luxor.
Passava-se o tempo inteiro por grupos organizados e
o caminho dos espectadores só divergia do trajeto
dos turistas no momento de finalmente chegar à
cripta dos tesouros, o roteiro tendo previsto uma visita
que as agências de turismo ainda não tinham
imaginado. Credibilidade: zero.
George Lucas está melhor colocado do que qualquer
um para saber que as aventuras exóticas só
têm alguma razão de ser se ainda permanecem
tesouros a descobrir e que toda a população
da Fontaine Saint-Michel só vai passar suas férias
de verão nos lugares aos quais se deseja conferir
uma aura de mistério. Seu roteiro só pode
se desenvolver além dos limites do mundo balizado,
do universo familiar. Para os antigos, era além
das Colunas de Hércules, para nós será
além do Sistema Solar. Ora, Lucasfilms já
é o líder desse mercado.
Permanece uma nostalgia pelas lembranças de infância,
por uma forma que se estabeleceu já se vão
alguns trinta anos. Em suma, se o roteiro de aventuras
exóticas hoje está morto como forma contemporânea,
seu cadáver ainda pode ser pilhado. Os Caçadores
da Arca Perdida se refere não à aventura
enquanto tal, nem aos sonhos de uma geração
para a qual o explorador ou o arqueólogo eram
os heróis modernos, mas antes à loja de
acessórios de sua tradição cinematográfica
que se tratará de explorar de forma exaustiva.
O último plano do filme mostra a arca do título
fechada numa caixa de madeira e um funcionário
de manutenção transportando-a num Fenwick.
A câmera recua e descobrimos caixas idênticas
entrepostas até se perder de vista num hangar
gigante. Difícil não dizer para si mesmo
que essa é uma metáfora do cinema de aventuras
tal qual Lucas e Spielberg o tratam: um entreposto um
pouco empoeirado em que basta entrar e embarcar algumas
caixas há muito tempo fechadas para dar vida
novamente a emoções esquecidas.
O constrangedor é que ninguém acredita
em uma finalidade do produto além da comercial.
A acumulação vai remediar a falta de convicção,
o espectador será ofuscado na impossibilidade
de ser cativado. Nisso a aliança Lucas-Spielberg
é um empreendimento sombra-e-água-fresca,
mas não está aí sua maior particularidade,
na medida que freqüentemente é assim que
acontece quando se trata de cinema de evasão.
Os Caçadores da Arca Perdida, assombrado
pelo medo terrível de perder apenas por um instante
a atenção de seu espectador, e dirigido
por um cineasta que não tem confiança
suficiente em suas qualidades próprias para carregar
essa responsabilidade em suas costas, termina por se
basear apenas numa dramaturgia de comercial de televisão.
Cada uma das seqüências cristaliza-se em
torno de um tema rico em mitologia cinematográfica
e que, em outros tempos, bastou-se para constituir a
matéria de um filme inteiro. Tudo que era ocasião
para sonho, ou poesia ou objeto de paixões torna-se
aqui apenas engrenagem, panóplia. Ídolo
mexicano, carga pirata, submarino, ilha misteriosa,
taverna no Himalaia, aeroplano, hidroavião, todos
esses maravilhosos suportes ao imaginário tornam-se
apenas uma miscelânea exibida peça a peça
o tempo de fazê-la brilhar diante da platéia
estupefata para em seguida guardá-la no saco
de curiosidades. Abordar uma cena, tratá-la além
das três ou quatro lembranças que evoca
o arquétipo sobre o qual ela está fundada,
é completamente estranho ao projeto e resolutamente
secundário para seu público-alvo.
*
Os Caçadores da Arca Perdida nesse sentido
é a realização de um cinema de
espectador. Cada plano do filme parece dizer que seus
autores são pessoas capazes de olhar imagens
– o que já é algo de bom – e depois de
reproduzi-las por vias de consciência e aplicação
– o que mostra uma singular falta de ambição
– mas impotentes, e abertamente, em saber delas se servir.
Quando o cinema de aventuras era ainda um gênero
dominante, a parte de liberdade que ele deixava ao imaginário
cativava os maiores cineastas, que o empregavam como
veículo para suas próprias preocupações.
Foi por isso que eles foram autores. A partir do momento
em que a reprodução torna-se a própria
proposta de um filme, não resta mais muito lugar
nem para um cineasta e nem para uma escrita. Steven
Spielberg, contratado por seu saber-fazer (que é
grande), era sem dúvida um dos únicos
realizadores a poder garantir o sucesso do projeto Os
Caçadores da Arca Perdida (que é inegavelmente
total). Não é um elogio. Não existe,
com efeito, cineasta dotado de uma competência
longinquamente comparável que tenha sido capaz
de desaparecer atrás do anonimato que implicava
o projeto; que tivesse se disposto a usar como moeda
suas capacidades renunciando a toda mais-valia artística.
Se aceitando imediatamente não-autor. Evidentemente,
ele assina o contrato: eis um filme em que nada desliza
entre as linhas. Em que, da mesma forma que cada centavo
gasto está visível na tela, todas as idéias
afloram na superfície.
Harrison Ford, a quem estava designada a tarefa delicada
de interpretar o papel de Gary Cooper, sai-se com todas
as honras. Nitidamente separado dos recentes bonitinhos
californianos à Flash Gordon, não somente
ele se movimenta com uma espécie de elegância
na panóplia estendida a ele, mas ele ainda sabe
trazer àquilo que poderia ter sido apenas um
retrato-robô um certo não-dito que dá
nuanças às vezes a evidências pesadas.
A vigilância de George Lucas, que entretanto soube
sabiamente se resguardar de todos os lados, é,
no entanto, no próprio seio de seu dispositivo,
duas vezes pego incorrendo em erro. Era, por exemplo,
desejável que os diálogos, mesmo que eles
devessem ser reduzidos a sua expressão mais simples,
pudessem conservar alguma vivacidade, quando o que eles
geralmente fazem é deixar a ação
mais cansativa. Da mesma forma a tipificação
da heroína feminina, que é a única
incursão de uma temática contemporânea,
permanece sempre em contradição com o
conjunto. Igualmente, o pouco convincente tratamento
de sua relação com Indiana Jones, com
as poses de macho que lhe imputaram, contribuem para
apagar a centelha de erotismo que ela poderia introduzir
nesse sistema de moralidade asfixiante.
Permanece o prazer que esse filme inevitavelmente dá
a seus espectadores. Seria de má fé negar
as alegrias da pirotecnia, mas também seria ingenuidade
confundi-las com o júbilo que o cinema pode comunicar
e que aqui está ausente.
Olivier Assayas
(Originalmente publicado na revista Cahiers du Cinéma
nº328, outubro de 1981. Traduzido do francês
por Ruy Gardnier)
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