CINEMA DE LÁGRIMAS
A propósito de Assayas com Téchiné

"Algumas músicas curam feridas, o tango as deixa abertas, de forma que não as esqueçamos". A leitura que Alice faz ao telefone, de algum texto que não chegamos a saber qual é, parece estranhamente servir como alusão aos cinemas de André Téchiné e Olivier Assayas, respectivamente, e aos pontos de contato que compartilham. Como observa Kent Jones, ambos dividem de certa forma uma postura cinematográfica não tanto em voga no cinema contemporâneo: fazer filmes centrados em personagens e narrativa. E como ordenadores destas narrativas, seus personagens sentem uma pulsão para além do mundo em que vivem, uma inadequação a seu meio e a seu tempo, uma necessidade de buscar, em seus próximos, coordenadas, companhia, conforto, carinho. Mesmo que tudo isto insista em vir acompanhado da dor e às vezes até mesmo por meio dela.

Nina, tendo fugido de casa tão logo completou seus 18 anos, está em Paris trabalhando em pontas no teatro, acostumada a passar de homem a homem sem ter quem se preocupe com ela. Mas, subitamente, aparecem Paulot e Quentin. O primeiro lhe dedica muita atenção e está disposto a cuidar dela; no entanto, é pelo imprevisível e agressivo Quentin que ela se apaixona. E pela primeira vez sente-se insegura e confusa diante de alguém. Ela quer tomar conta dele, mas ele logo diz que não irá permitir e, com seu temperamento explosivo, de súbitas viradas, sempre que pode tenta causar-lhe dor. O clima que ele instaura lembra o desconforto dos personagens de Assayas – inconstantes, irresolutos. Atropelado, ele morre, indo encontrar-se com seu grande amor, que, ao contrário dele, foi bem-sucedida na tentativa de duplo suicídio. Nina acaba conhecendo então o sogro de Quentin, que, na obrigatoriedade de montar o Romeu e Julieta protagonizado pelo casal agora morto, a escala para o papel de Julieta. Atormentada pelo fantasma de Quentin, sem conseguir viver propriamente com Paulot, com quem divide apartamento, felicidades e tristezas, Nina não consegue atingir novamente alegria semelhante à do dia em que desembarcou na estação de Austerlitz, sem grandes expectativas, mas cheia de esperança, no belo plano-seqüência de abertura – em ponto de vista de dentro do trem e cujos olhos só podemos atribuir a Nina retrospectivamente. O Rendez-vous definitivo que a consolaria nunca chega a vir. Os bilhetes para sua noite de estréia como Julieta que ela entrega a Paulot são rasgados em pedacinhos por ele e atirados no chão de Paris, para se perderem no tempo. O encontro de todos estes personagens solitários e tristes só consegue se dar no breve entrecruzamento de suas rotas sem destino, ao longo da qual vão endurecendo, escondendo a ternura num canto obscuro do peito.

E é exatamente num cruzamento de caminhos operado pela montagem que o mais belo encontro de Local do Crime irá se dar. A mãe, num furgão de polícia, é encaminhada para fora da pequena cidade (de onde sempre quis sair), para ser presa, enquanto o filho passeia de bicicleta neste ensolarado dia, acreditando nas palavras de seu pai que sua mãe teria ido viajar por um tempo. O amor que mãe e filho sentiam um pelo outro, aparentemente o único numa teia de relações familiares conflituosas, é suspenso por tempo indeterminado, assim como suas aspirações a algum tipo de felicidade. Thomas não alimenta nenhum tipo de desejo ou sonho, apenas um ressentimento precoce e a solidão da falta de amizades e de perspectivas, na qual pequenos prazeres, como a companhia de um belo dia e de sua bicicleta, o conformam; Lili acaba de perder sua última esperança de escapar (a sua súbita paixão, um fugitivo de uma cadeia que veio parar na sua cidadezinha como que por milagre, é assassinada) e, com um sorriso, contenta-se de cruzar os limites daquele município que quase não figura no mapa, ainda que trancafiada na parte de trás de um furgão.

Martin, por sua vez, é bastante semelhante com Thomas. Nada lhe interessa e, de suas dores e sua história, se esquiva sempre que pode, numa atitude de constante evasão (que no caso do menino se transfigurava em mentiras sucessivas). Mas surge Alice, a grande amiga de seu meio-irmão Benjamin. Martin se apaixona intensamente por ela, que a princípio não consegue correspondê-lo por não guardar muita relação entre sexo e amor. Alice e Benjamin vivem juntos e se amam, mas não mantêm nenhuma relação física, se aventurando descompromissadamente quando têm vontade, ambos com homens; um pouco como se estivessem protegendo seus corações do mundo... Cedendo por fim, Alice se entrega a uma relação de bastante atenção e cuidado com Martin, até que a notícia de sua gravidez desperta os sombrios fantasmas deste. Martin matou seu pai e a idéia de ter um filho o apavora. O que faria no mundo uma criança de uma pessoa como ele, áspera e perdida? Em meio a uma crise de estafa, ele começa aos poucos a odiar Alice, que cuida dele com dedicação e carinho. Finalmente decidido a se entregar para conquistar a paz de sua consciência, Martin, internado num asilo para recuperação, conta com Alice (que decide guardar a criança em seu ventre), e apenas com ela, para prosseguir vivendo, pois que sua existência atormentada não faria muito sentido na ausência desta. Alice e Martin assinam, em segredo e em silêncio, um pacto de responsabilidade mútua e interdependência – o pacto de sobrevivência possível.

Nestes três filmes de Téchiné, que contam com a parceria ou colaboração de Assayas no roteiro, identificamos, além do incômodo do não-pertencimento e da falta de diretrizes, comum ao cinema dos dois, um desespero angustiado que domina todo o complexo de relações em que os personagens estão envolvidos, uma desorientação que os faz ir e vir sobre seus impulsos e desejos, muito à semelhança dos personagens que ocupam o cinema de Assayas. Embora os climas instaurados por estes dois cinemas sejam distintos. Em Assayas, há sempre um nervosismo, uma tensão, um quase mal-estar pela chafurdação em micro-sensações, pelo sentir-se perdido dentro de situações que, embora narrativamente organizadas, nos vêm em saltos, nos aparecem desconectadas, sofridas, ao passo que, em Téchiné, é difícil perdermos nossas referências, nossas pistas; é raro perdermos o rosto dos personagens. Acompanhamos todos de perto, mas com a devida distância de um observador, para que não nos saiam de vista, para não nos sentirmos tão desorientados e sós. Para que a dor não pareça tão desconcertante e possamos tentar amparar os personagens com as bordas do quadro, sustentá-los um pouco mais inteiros. Para que todo o micro-universo encenado, das narrativas interiores, do andar cambaleante dos sentimentos, bata em nós de forma um pouco menos incisiva. Porque esses sentimentos, que são tudo que nós dividimos com eles, não podem ser assim tão caóticos. Ou talvez não gostaríamos que fossem. E que todo afeto profundo encontrasse feridas, provocasse feridas e desamparasse ao mesmo tempo que oferece o único conforto possível... Queremos, sim, sentir – afinal é tudo que nos resta ao final do dia –, nos comprazemos especialmente das narrativas que sentimos íntimas, gostamos particularmente do conto daquilo que não se presta a ser contado, daquilo que atravessa nossos dias apenas conosco mesmos. Mas talvez precisemos mais ainda não perder de vista a doçura. Sem ela, Alice não seria capaz de ajudar Martin e talvez ele acabasse se suicidando mesmo; Paulot não acalentaria Nina e esta não descobriria o amor na agressividade de Quentin; Lili não teria voltado a sonhar, ao encontro de um desconhecido criminoso, com a libertação da prisão do seu mundinho à semelhança do da sua mãe.

A evasão, a necessidade do êxodo pra qualquer lugar, é também um ponto de contato entre Téchiné e Assayas, bastante visível nos três filmes. Assim como Christine, em Água Fria, e Tina em Une nouvelle vie, Nina, Lili e Martin precisam fugir, deixar tudo pra trás, esquecer as pessoas do seu passado, todas aquelas que violentaram sua sensibilidade, sua existência. E, ao encontrarem quem os dê alento, já não sabem ao certo como reagir. Na verdade, quase todos os personagens habitantes destes filmes não sabem bem o que fazer, nem com o que lhes oferece abrigo. Machucados, doloridos, eles oscilam entre a candura e a agressão. E sofrem com isso. Terminam com seu futuro em aberto, e, à exceção de Alice e Martin, separados dos seus afetos. Parecem concordarem todos com a epígrafe de Rendez-vous (lida também pelo padre no enterro do irmão mais velho de Martin): "Se o grão de trigo caído ao chão não morre, ele permanece sozinho, mas se ele morre, ele traz muitos frutos". E esconderem, como Alice, suas lágrimas, com a desculpa de uma conjuntivite...

Tatiana Monassa