TRAJETÓRIA DE OLIVIER ASSAYAS

Les années Cahiers

O cineasta Olivier Assayas não teve formação acadêmica – o que não significa que não tenha freqüentado uma escola de cinema. Uma vez que sua verdadeira ambição sempre foi a realização, a passagem pelos Cahiers du Cinéma nada representou senão sua faculdade de cinema. Aspecto bastante coerente para alguém que considera fazer cinema e pensar cinema uma mesma coisa, como duas etapas de um mesmo processo criativo (cf. Contracampo nº 50). O elogiado curta-metragem Laissé inachevé à Tokyo (1982), portanto, pode ser considerado um filme de escola.

Se os Cahiers foram uma escola, seus professores eram então Alain Bergala, Serge Toubiana, Jean Narboni, Pascal Bonitzer... E Serge Daney, é claro. Não por acaso, é constante na obra cinematográfica de Assayas uma tentativa de resposta a várias das questões que ele herdou como crítico, e que estavam entre as questões mais pulsantes daquele momento (1980-1985): o que significa, afinal de contas – e após tantas investigações teóricas –, estar fora-de-campo? (interrogação-chave, por exemplo, para Bonitzer no seu Le champ aveugle, livro-coletânea de artigos – e houve o grande interesse de Assayas, como nas defesas entusiastas a David Cronenberg, pelo cinema de terror, palco privilegiado do fora-de-campo); o que reter da passagem, que traço apreender do fluxo sob forma de escritura? (cf. "Vieillese du Même: Hawks et Rio Lobo", artigo de Daney nos Cahiers nº 230, julho/1971 – a cena de Fim de Agosto, Começo de Setembro em que os personagens conversam, num café, sobre o recém-falecido amigo escritor é quase uma adaptação deste texto que Daney escreveu sobre o derradeiro Hawks); a realidade, antes de ser o seu duplo afirmador, é o que assombra o cinema? (ver tanto "Robbe-Grillet et le maniérisme", artigo de Assayas nos Cahiers nº 370, abril/1985, quanto Irma Vep, filme seu de 1996); recortar e enquadrar o mundo é em si um gesto castrador originário? (aí entram páginas e páginas de Bonitzer, Daney e toda a fase pós-lacaniana da crítica e da teoria do cinema, e entram também filmes como Água Fria e Irma Vep).

Da carreira de jovem crítico, sobressaem os textos sobre a "nova" indústria hollywoodiana, aquela sacudida pela revolução tecnológica a partir de George Lucas e cia, a versão pessoal de Assayas para a política dos autores (com Bergman – Conversation avec Bergman é um livro seu de 1990, em colaboração com Stig Bjorkman –, Tarkovski, Kenneth Anger e Bresson no topo) e a fascinação pelo cinema de Hong Kong, o que vai da observação atenta à nouvelle vague de HK – ainda começando naquele momento com os primeiros filmes de Ann Hui, Tsui Hark e Allen Fong – até a busca por uma genealogia do templo de Shaolin, com a descoberta, um tanto improvisada e tardia, do cinema de artes marciais clássico. Foi sua a idéia, ao lado de Charles Tesson (que anos depois viria a se tornar editor), de fazer nos Cahiers o número especial "Made in Hong Kong", em 1984. Assayas rapidamente se tornou fã do cinema de Liu Chia-liang (também conhecido como Lau Kar-leung, assinatura com a qual foram lançados alguns de seus filmes agora em DVD no Brasil), cineasta que ele sempre viu diminuído em meio à história da Shaw Brothers e do cinema de kung fu de uma forma geral, e que ele entrevistou, mais uma vez ao lado de Tesson, para o número especial de 1984. Enquanto ferramenta de resistência dos chineses, e enquanto cultura popular na sua versão mitologizada, o kung fu permitiu a Assayas encontrar um similar do rock n’ roll: "uma mistura de arte, cultura popular e mitologia coletiva". Assayas é muitas vezes apontado justamente como um cineasta da geração rock – o que, na sua lógica, equivale a dizer que ele é também um cineasta da geração que redescobriu o cinema de kung fu, antecipando o próprio movimento cinefílico que deságua em Kill Bill.

Um filme após o outro

Antes de realizar o primeiro longa Désordre (1986), Assayas escreveu ainda dois roteiros para André Téchine, Rendez-vous e Le Lieu du Crime (ver texto de Tatiana Monassa), além dos roteiros de Passage Secret (Laurent Perrin, 1984) e L’Unique (Jerome Diamant-Berger,1986). Em 1987 ele divide os créditos de uma adaptação de Abril Despedaçado (o romance de Ismail Kadaré também levado às telas por Walter Salles em 2002), filme dirigido por Liria Begeja, e em 1998 Assayas voltará a roteirizar um filme de Techiné, Alice e Martin.

Assayas nunca realmente calculou compor uma trilogia com seus primeiros longas-metragens, mas admite que, além da equipe e de alguns procedimentos estéticos se repetirem nos três filmes, há uma circulação de temas (principalmente no que diz respeito à passagem à vida adulta) e de funções dramáticas que dão a Désordre, L’Énfant de l’Hiver e Paris se Levanta esse aspecto de intercambialidade e coerência interna, configurando uma espécie de trilogia. A verdade é que essa intercambialidade e essa coerência interna perpassam a obra de Assayas. Um filme como Désordre, por exemplo, guarda com Paris se Levanta as mesmas semelhanças que guarda com Clean. Assim como Fim de Agosto, Começo de Setembro, de 1998, é ainda mais profundamente uma continuação para L’Énfant de l’hiver do que qualquer dos dois filmes a este adjacentes.

Une Nouvelle Vie, um novo cinema: o filme que rompe com a "trilogia" é também um filme que busca rupturas estéticas na obra de Assayas, que a partir dali já se vê como um artista seguro daquilo que faz. Experiências com a montagem e com a narrativa, somadas a um primeiro contato com o formato 1:2.35, se tornam mais presentes que a experiência de movimento dentro dos planos, e o resultado é uma vontade imensa de colocar o espectador tão perdido diante do que está acontecendo quanto a personagem do filme. Estar imerso no filme e não conseguir vê-lo de fora, e muito menos à distância, passa a ser mais que essencial: Assayas certamente não é um cineasta da esperteza narrativa. Mesmo quando a estrutura narrativa de um filme seu revela pontos de virada, não é a figura do mastermind o que desponta desses momentos, mas antes a manutenção – forçada porém quase imperceptível – dos seus personagens num determinado estado emocional (pois ele precisa sempre filmá-los à flor da pele).

Essa opção de trabalho conflui para a beleza plástica e a absurda pulsação (dramática, imagética) de Água Fria. É como se ali Assayas reinventasse os movimentos de câmera mais simples, seja através dos longos travellings que percorrem a antológica festa (tanto no seu ápice quanto nas suas reminiscências matinais), seja por um uso da câmera na mão que a faz parecer ter sido emprestada aos próprios personagens do filme, tamanha a organicidade do registro. Movimento: nenhum plano de Assayas pode negar essa premissa. Sua câmera se move, reenquadra, caminha, remexe, fuxica. Quase sempre com uma certa pressa em captar aquilo que encontra, como se o elemento móvel fosse sumir a qualquer momento e ele precisasse registrá-lo de todos os ângulos antes disso acontecer. Ele precisa apanhar alguma coisa do movimento do mundo – no que sua relação com a pintura, anterior àquela com o cinema, nada tem a ver com estaticidade. Como disse Kent Jones, Assayas parece tornar a velocidade palpável, e ele talvez seja o único cineasta a nos dar a "poética da era digital em toda sua perfeição malévola" (demonlover sendo o projeto que mais caminha nesse sentido, certamente).

Do movimento se passa à mudança: depois que Assayas explora tanto quanto pode o enredo do rito de passagem na adolescência, o efeito do tempo/movimento começa a levá-lo a um outro lugar. Maturidade, responsabilidade, vida adulta: essas são algumas palavras cujo sentido, antes esvoaçante e impreciso, começa a ser assimilado e processado. Coincidentemente ou não, é também aí que o melodrama se infiltra mais pronunciadamente em seu cinema, atingindo uma forma admirável no belíssimo Fim de Agosto, Começo de Setembro. Embora com uma estrutura muito original e fluida, o filme passa a sensação de um ar mais compenetrado, de uma poesia com menos ópio e mais soro fisiológico (do que Clean é apenas uma nova manifestação). Irma Vep, um pouco antes, tinha sido o primeiro filme em que ele explicitara, face à desordem de signos da cultura visual contemporânea, sua tentativa – mesmo que "fracassada" já de início – de hipostasia e retorno. Reter o fluxo incessante, buscar o encanto dos primórdios do cinema, buscar a pureza das primeiras imagens (aquelas que prometiam ao homem um recontato com o mundo) se torna seu contraponto lúdico ao caos visual – e afetivo – em que os personagens se encontram. A poluição visual desperta em Assayas um sentimento puritano mesmo (demonlover novamente), mas o que o salva do reacionarismo é um desejo irreprimível de mergulhar nesse emaranhado de signos e dar eco a toda sua impureza fascinante. Irma Vep é curiosamente seu filme mais famoso – digo "curiosamente" porque: 1) o filme propõe uma discussão metalingüística que está longe de possuir apelo comecial considerável (ao menos não um que possa tornar o filme mais "vendável" que Água Fria ou Paris se Levanta) ; e 2) como nos contou Eduardo Valente, de Paris, Assayas disse num encontro com ele e outros jovens cineastas que se tratava de um filme que surgiu por conta da complicação que era a preparação de Os Destinos Sentimentais. "Foi um filme feito com tal urgência e falta de meios que ele realmente jamais esperava virar ‘o cara que fez Irma Vep’", Valente disse por e-mail.

Afinidades eletivas

Comparado a Chen Kaige e Zhang Yimou, em entrevista concedida à revista eletrônica Sancho.does.Asia, Assayas se sente claramente incomodado, e confessa não ser admirador dos dois chineses citados (e, cai para nós, ele tem toda razão em discordar da comparação). Ele prefere se sentir dialogando com cineastas taiwaneses como Edward Yang e Hou Hsiao-hsien. Quando da insistência do entrevistador, ele completa: "Não, eu me sinto no limite, do ponto de vista do que tento fazer, com mais afinidades com Wong Kar-wai, eventualmente, que eu creio ter evoluído bem na sua escritura e no seu estilo, ou ainda com Hou Hsiao-hsien quando ele faz um filme como Millenium Mambo ou Flores de Xangai". Sobre Hou, Assayas fez o documentário biográfico HHH: Un Portrait de Hou Hsiao-hsien.

Há ainda um grande número de cineastas que aparecem ecoados na obra de Assayas. Cronenberg (o final de demonlover é pura citação de Videodrome), David Lynch (ainda em demonlover, um pouco antes do final, a cena que lembra A Estrada Perdida), Bresson (Une Nouvelle Vie foi um filme que buscou uma espécie de dramaturgia bressoniana), Shinji Aoyama (a estrutura musical dos filmes), Techiné (Água Fria é em grande medida o Rosas Selvagens de Assayas), Truffaut (menos por um ou outro filme em particular, ou por uma ou outra cena em particular, e mais por uma questão de um projeto de cinema que se assemelha ao do Truffaut). E outros.

Perfeito exemplo de cineasta-cinéfilo, Assayas consegue alcançar um estilo pessoal justamente escapando de usar essas referências do modo que o tornaria um diretor "descolado". Uma vez preparado o set e previamente inseridas todas as referências possíveis, o filme parece apostar numa cegueira diante disso tudo, e o resultado é bastante tátil (ou tateante), bastante intuitivo. A indeterminação e a profusão do jovem e a maturidade do adulto: eis a bipolaridade que estabelece a oscilação-padrão do cinema de Assayas. Há obstinação mais quixotescamente encantadora para um cineasta do que filmar uma visão adulta do mundo com a intensidade de vida de um adolescente? Enquanto "não" for a resposta, Olivier Assayas estará fazendo um dos cinemas mais interessantes da atualidade.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 




Olivier Assayas no set de demonlover (2003)