Alfie,
datado? A história de um rapaz de classe baixa
disfarçado de rico, motorista de madame, que
tem como único objetivo de vida seduzir toda
a sorte de mulheres bonitas e não se afeiçoar
particularmente a nenhuma é um registro de comportamento
que pertence tanto a 1966 quanto a 2004. E a idéia
de um super-hiper conquistador, do homem que sabe trabalhar
o universo dos afetos femininos com uma maquinação
impecável e sem sentimentos tem ressonância
até com argumentos originais de recentes sucessos
hollywoodianos, como o belo (até certo ponto)
Hitch pode nos demonstrar. Atualidade do tema
registrada, vamos às equivalências:
a) naturalmente nada consegue superar a trilha
de Sonny Rollins para o filme, de longe a melhor coisa
do Alfie original, mas Mick Jagger e Dave Stewart
se esmeram profundamente, e o filme acaba se impregnando
do clima bluesy rasgado da interpretação
primorosa de Jaggers retornado às raízes;
b) não se pode dizer que na passagem de Michael
Caine para Jude Law se perca alguma coisa: todo o respeito
ao Alfie original, mas poucas escolhas seriam mais acertadas
do que essa figura ambígua, metrossexual à
beira da androginia que é Jude Law; c) Lewis
Gilbert é intercambiável com Charles Shyer
em elegância e afetação sem assinatura;
d) o roteiro adapta as mudanças de comportamento
masculino com devida perspicácia para que todas
as peripécias pelas quais passa Alfie tenham
a mesma força do que no original (e, em alguns
momentos, consegue criar momentos de ainda mais força).
Alfie é uma espécie de Raskolnikov que,
ao invés de matar uma avarenta e velha agiota,
seduz todas as mulheres do mundo como forma de desagravo
à ausência de deus. Parece exagero, mas
é uma espécie de patologia semelhante,
essa que não reconhece nenhuma lei senão
a sua própria autonomia, e passa a considerar
todas as outras pessoas do mundo como simples objetos.
Estamos aqui diante de um niilismo profundo, reflexo
de narciso como ao mesmo tempo deus e prova absoluta
da inexistência divina. Substância viciosa
que Jude Law encarna com precisão: olhar, porte,
figura, todos atentam para uma economia de gestos muito
bem pensada, muito bem escolhida, calculada e fria,
um jogo quase psicótico feito consigo mesmo.
Os realizadores de Alfie fizeram muito bem em
não nos mergulhar num "maravilhoso mundo
do garanhão charmoso" mas desde cedo perspectivá-lo.
Nenhum trauma originário ou correção
edificante de caráter na construção
da narrativa não estamos diante de Spielberg
, mas uma dedicada entrega ao estudo de um personagem
que só tem prazer na confirmação
periódica de seu irresistível poder de
sedução. O outro, as lindas mulheres que
são suas presas, só entram no processo
como elemento processual de ratificação
o jogo é de Alfie consigo mesmo, é
dele mesmo que ele ama e a relação com
as outras pessoas só funciona porque é
através delas que ele concretiza seu auto-desejo.
Ao filme, cabe registrar esse processo de definhamento
do projeto: não é todo mundo que é
Dorian Gray, num momento vão começar a
aparecer garotões mais novos que ele, em outro
a paternidade e a vontade de estabilizar-se vão
bater forte, e as pessoas escolhidas não estarão
mais à disposição. E esse registro
é bem digno, sem remissão moral à
normalidade dos costumes. Apenas um retrato.
Não à toa, tudo que diz respeito a descendência
no filme é muito importante, e curioso. O mais
próximo de namorada que Alfie pode ter é
Julie, que mora sozinha com um filho pequeno
a quem nosso herói, em seus próprios dizeres,
está se afeiçoando demais. Em outro momento,
uma criança nasce da tórrida noite de
amor que Alfie teve com Lonette, mulher de seu melhor
amigo, logo depois de uma separação eventual.
São as cenas mais pungentes do filme as que circulam
em torno do filho que se quer e do filho que não
deveria ser: Alfie vendo Julie (e seu filho) com um
outro, Alfie visitando a casa de Lonette e Marlon para
saber que a criança é dele. Charles Shyer
sai-se surpreendentemente bem não fazendo o filme
pesar nem no ritmo nem no drama. Seria fatal para a
frivolidade de Alfie, o personagem, se Alfie,
o filme tendesse para o dramalhão moralista.
Ao contrário: a radiografia de um tipo de caráter
masculino é tão mais precisa quanto a
forma do filme parece encampar suas características,
como o filme passa a se moldar ao perfil de seu personagem.
Entre o charmoso e o estiloso, Alfie se constrói
de forma precisa, graciosa e simpática, com um
trunfo adicional: um primoroso trabalho de atores, que
revela Jude Law no topo da forma e revela a beldade
Sienna Miller, extraordinária presença
na tela e, se a justiça for feita, futura estrela.
Ruy Gardnier
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