Alguns cineastas
já tomaram para si a tarefa de compreender, analisar,
dramatizar os processos de evolução e constituição política
e/ou social de seus países ou regiões. Do bairro ao
continente, podemos pensar em realizadores como Robert
Guédiguian (que filma basicamente no Estaque, bairro
litorâneo de Marselha), Hou Hsiao-hsien em Taiwan ao
longo dos anos 80-90, ou principalmente Roberto Rossellini
que numa obra magnífica acompanhou o processo de reconstrução
da Europa depois da Segunda Guerra Mundial. A lista
de grandes diretores que tentaram traçar relações de
partilha de vivência nacional/territorial não é tão
extensa, mas no mundo todo só há um realizador que,
mais do que analisar ou compreender, tentou purgar sistematicamente
um sentimento de país através de seus filmes. E esse
cineasta é Glauber Rocha. E A Idade da Terra é possivelmente sua obra-prima.
Desta vez, não estamos diante
de homens-mediadores que tentam se acoplar a projetos
de poder, e se vêem fadados ao fracasso e à indefinição
(flertar com o deus negro, com o diabo loiro, para terminar
correndo em desespero, esposa deixada caída no meio
do caminho, em Deus e o Diabo na Terra do Sol; flertar
com o empresariado, com a direita religiosa e com a
esquerda populista em Terra em Transe). Tampouco vemos a articulação
costumeira da estrutura das ficções glauberianas que
trabalham a passagem do corpo indiscernível da multidão
(as massas populares, esse imóvel e eterno fantasma)
para o corpo individuado do ícone (uma elite intelectual
ou política). De fábula sobre a tomada de consciência
– o que, simplificando, era o material mesmo de Deus
e o Diabo... – A
Idade da Terra não tem nada. Ao contrário, a adesão
com o filme se dá através de outros processos que não
os identificatórios (com personagens, com a história,
com os mecanismos encenados). Estamos entregues não
a um personagem, mas a quatro, que são o mesmo e não
o são: um Cryzto índio (Jece Valadão), um Cryzto português/militar
(Tarcísio Meira), um Cryzto negro (Antonio Pitanga),
um Cryzto guerrilheiro (Geraldo del Rey) (uma análise
magnífica dos quatro cryztos glauberianos foi feita
por Luiz Alberto Rocha Melo em http://www.contracampo.com.br/58/cristoglauber.htm).
Há um grande imperialista contra quem lutar, Brahms
(Maurício do Valle, que anteriormente interpretara em
dois filmes o personagem mais conhecido do cinema de
Rocha, Antônio das Mortes, espécie de instrumento filosófico
que realiza a mudança no mundo mas não a controla),
mas o filme não se constrói claramente com esse objetivo
narrativo.
Com A
Idade da Terra, não estamos num tempo cronológico,
escatológico da luta de classes, e a necessidade da
revolução/redenção – difícil dissociar política e messianismo
em Glauber – se dá de forma completamente diferente,
inclusive em relação com seus outros filmes. Não é por
uma adesão ao milenarismo revolucionário, à fundação
de uma nova paz de mil anos regulada pela volta do Cristo
que se dá a salvação, e tampouco ela está no horizonte,
vitória ou derrota ao final. A redenção aqui é intramundana,
ela não espera mais pela chegada de um ícone ao poder,
pela adesão a figuras-tipos. Cryzto do Terceyro Mundo
é a tentativa da encarnação de alguma vivência que esteja
livre das injunções da política e do poder oficial:
um amor vivo (ao contrário do amor pela figura morta
e crucificada do Cristo católico) capaz de criar micro-revoluções
íntimas – “um Cryzto que era venerado, vivido, revolucionado
no êxtase da ressurreição” – enquanto esperamos que
a Terra finalmente adquira a idade que precisa para
chegar a quocientes sociais mais aceitáveis – “eu pensava
que o Cryzto era um fenômeno novo, primitivo, numa civilização
muito primitiva, muito nova” [...] “São quinhentos anos
de civilização branca, portuguesa, européia misturada
com índios e negros. E são milênios além da medida dos
tempos aritméticos ou da loucura matemática, que não
sabe de onde veio nem mesmo a nebulosa do caos, do nada”
[...] “É muito rápida a história. Por fim, o rolo final
do filme (e aqui vale lembrar que o filme originalmente
foi concebido para passar sem ordem obrigatória de rolos)
apresenta como último plano a imagem contraditória a
grande parte de sua própria obra, um movimento inverso:
Cryzto índio deixa seu corpo individuado e vai se unir
à massa amorfa, abandonando sua condição de ícone, de
figura de discurso, e livrando-se da Grande História
para viver sua história em seu dia a dia, momento a
momento. Glauber culturalista?
Mas naturalmente
é uma constatação tortuosa, cheia de conflitos, tempestade
e urgência, essa que vê na civilização, no mundo, na
Terra a pouca idade. E, na Terra, a distinção entre
um primeiro mundo e um terceiro, que é espoliado pelo
primeiro. Estamos no Brasil, um país de 500 anos que
se encontra na categoria dos explorados. É essa a especificidade
da purgação em A
Idade da Terra, uma violência incontida que sai
de um sentimento de piedade pelo próximo explorado,
faminto, miserável, e se transforma num choro de sangue
que é de uma intensidade só ultrapassada pela evidente
beleza monumental – que, na arte do século XX, só é
igualada à violência de John Coltrane com seu saxofone
purgando o destino de seu povo, da escravidão ao preconceito.
Grandiosidade, dissonância, irracionalismo, repetição,
assimetria, desmedida, confusão: estas são as armas
para a construção de um dos maiores monumentos – porque
é disso que se trata, em fina sintonia com o muralismo,
com afrescos e estátuas gigantescas e suas inscrições
profundas na história, numa idéia de eternidade e relevância
pública – da cultura mundial no século passado. Um monumento
ao amor. E, para retomar um tema caro a Coltrane, uma
ascensão. Mas uma ascensão dentro do mundo, e para ele.
Ruy Gardnier
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