BELLOCCIO A PARTIR DE TRÊS FILMES
Sobre Sbatti il mostro in prima pagina,
Diabo no Corpo e A Intrusa

Sbatti il mostro in prima pagina, Itália/França, 1972
Il diavolo in corpo, Itália/França, 1986
La balia, Itália, 1999

Qual a relação do homem com o mundo? Que parte dele é possível compreender? Como adquirir uma visão de conjunto quando sempre se está olhando apenas de um lado, e muitas vezes nem sempre de um lado privilegiado? Os filmes de Marco Bellocchio parecem se constituir a partir dessa impossibilidade, da não tradutibilidade dos sentimentos, das idéias do indivíduo para o mundo. É difícil entender o que está à volta, é difícil dar as respostas necessárias: como pode um cinema se constituir em torno de uma fragilidade intrínseca da passagem, da comunicação? Bellocchio não escolhe a saída da incomunicabilidade, dos sujeitos melancólicos perdidos, doces sujeitos, num mundo de personagens sem diálogos.
Aquilo que ele tenta compreender não é tanto a relação do indivíduo consigo mesmo mas a sua adequação com o mundo, o dos valores, o da política, o do amor, o das instituições. A saída de Bellocchio vai mais no sentido das percepções parciais: olha-se muito o que acontece, mas há sempre algo que barra a visão, que ofusca a compreensão, que nos instala num ambiente de indecidibilidade. Há sempre um mal-estar que acompanha o ritmo dos filmes e dos acontecimentos, um descontrole dos signos que deriva menos da complicação dos dilemas (fazer isso ou aquilo? ou não fazer nada?) do que da forma com a qual os dilemas mal chegam a se configurar, como se o turbilhão da vida explodisse completamente as chances de uma fala potente, como se o mundo não permitisse saídas à afasia. Três de seus filmes, muito diversos e em diferentes fases de sua carreira, começam de maneira muito parecida. Entre Sbatti in mostro in prima pagina (1972), Diabo no Corpo (1986) e La balia (1999) não existe muito em comum na temática, no gênero e nem no encadeamento das ações. No entanto, percebemos um mesmo desarranjo das relações entre ver-fazer, uma mesma questão de um ponto-de-vista que, mesmo central (já que é o único campo visual/de compreensão que nos é dado), deriva sempre para a margem, para o incompleto, para o parcial.

Em Diabo no Corpo, um estudante olha para fora. Ele se veste de vermelho, enquanto a maior parte da turma está de branco. Inadequação: o mundo da sala de aula, muito codificado, muito brando e conformado, não supre sua necessidade de olhar. Do outro lado da janela, uma mulher negra, completamente desalinhada e em suas roupas de baixo, anda pelo telhado vizinho, desesperada e chorando. Não há muito o que fazer: na iminência do suicídio, o jovem olha para tudo ao redor, e encontra o rosto de Giulia, uma linda moça que chora e se compadece da mulher no telhado. Assim como em O Segredo Atrás da Porta de Fritz Lang, um momento de extrema dúvida entre vida e morte faz com que futuros amantes se olhem pela primeira vez e como que transmite a praga do excesso. Em La balia, outro homem confortavelmente instalado olha para fora. Dessa vez é Fabricio Bentivoglio – como homem que detém o saber sobre o são e o doente (é um psiquiatra) – que vê seu trem chegar numa estação rodoviária no momento que uma agitação estranha acontece na plataforma. Mais uma vez um personagem de Bellocchio iolha pela janela, dessa vez de um vagão, e observa a vida que lhe falta no rosto de uma camponesa, Maya Sansa, que beija seu marido revolucionário. Não existe muito gozo nesse olhar, é mais uma relação especular sombria que se estabelece: chegando em casa, atendendo aos rígidos códigos da moral de elite, sua esposa não lhe recebe como a pobre da estação recebeu seu marido; a frieza da relação será expressa pelo bebê dos dois, que se recusará a mamar do seio da mãe. Em Sbatti il mostro in prima pagina, filme político, não existe mediação porque somos nós mesmos os voyeurs desconfortáveis, e vemos as inúmeras manifestações da vida pública italiana em cenas documentais, um pouco como os protagonistas de Bellocchio vêem situações do mundo pela janela. Na medida em que não há herói positivo, ficamos observando contemplativos o desenrolar da vida de um jornal direitista que decide manipular o assassinato de uma jovem e atribuí-lo arbitrariamente a um líder de grupo jovem de esquerda, e os caminhos que tomam um jornalista ingênuo, um editor oportunista e um dono inescrupuloso em relação à cobertura do jornal.

A graça de assistir a esses três filmes em seqüência reside na extrema coerência com que somos instalados na ficção.
Uma história de amor louco, um filme de contestação política, um filme de época, e sempre uma aproximação semelhante. Às súbitas e imprevisíveis mudanças de comportamento de Giulia (Diabo no Corpo) corresponde a angústia de Valeria Bruni-Tedeschi ao ver seu papel de mãe sendo ocupado por uma intrusa quando Maya Sansa vai ser ama-de-leite de seu filho (La balia), mas também aos ciúmes tagarelas de Laura Betti em Sbatti il mostro in prima pagina. Ao rosto deslocado de Gian Maria Volontè ao final de Sbatti... corresponde o olhar de Bentivoglio em La balia quando sua mulher decide cuidar de uma criança numa outra casa, mas também à situação de Federico Pitzalis em Diabo no Corpo quando Maruschka Detmers se recusa a recebê-lo novamente. Estranha circulação de angústias e desejos do corpo feminino, confuso empedramento de emoções e passividade no corpo masculino. Em ambos, no entanto, um mesmo fio que percorre as tensões de ambos os sexos: a sensação da vida vivida como impasse, o sentimento da existência como uma espécie de labirinto circular no qual não conseguimos achar nosso horizonte, perdemos o senso de direção. A água suja que termina Sbatti..., a felação de Diabo no Corpo, a criança que desmama em La balia: toda uma idéia de ciclos que começam e terminam, mas cujo sentido e movimento nos faltam à compreensão e à previsão. Uma espécie de eterno sursis que se comunica com a eterna divida kafkiana, pois que apesar de termos ganho nossa autonomia, não sabemos exatamente o que fazer com ela, uma vez que são as próprias amarras do acaso e da necessidade que parecem nos aprisionar. Todo interesse de Marco Bellocchio consiste em nos apresentar o mundo em toda sua instabilidade, em seus tênues equilíbrios e em seus vertiginosos desequilíbrios. Um cinema que evoca um sentimento de montanha-russa – e a sensação de tontura que se sucede à viagem no brinquedo é constante no Bellocchio-film – nas suas lentas progressões, nas velozes descidas e nos instantes em que o mundo parece estar de cabeça para baixo. A diferença é que, ao final da viagem cinematográfica, ainda permanecemos confrontados com todos os acidentes do percurso.

Em suas constantes aparições através da obra, dois grupos prolongam e ampliam a discussão da liberdade e da relação complexa entre indivíduo e mundo – a tal comunicação difusa ou da indecidibilidade – através de posições extremadas. De um lado, os grupos de jovens agitadores políticos: terroristas que são mantidos numa jaula enquanto estão sendo julgados em Diabo no Corpo, militantes de esquerda em Sbatti..., grupos revolucionários do começo do século XX em La balia. De outro, o mundo da insanidade mental: o asilo em La balia, a personagem de Laura Betti em Sbatti..., a personagem de Maruschka Detmers em Diabo no Corpo. Em ambos a liberdade através da abstração do poder: poder instituído para os agitadores políticos, comportamento social para os loucos. A questão do livre arbítrio aqui importa pouco. O decisivo aqui é que essas duas imagens são recorrentes, e tensionam de dentro a pesquisa dos limites da liberdade operada por Bellocchio. Nada romanceada, essa busca pela liberdade não assume ares voluntaristas, pelo contrário: quando um homem salta no vazio, ele não voa, ele se espatifa. Longe das saídas fáceis – os policiais são mauzinhos, a justiça é podre, a sociedade é a verdadeira doente –, Bellocchio aponta menos para culpados do que investiga o que em nós grita servidão, para assim melhor focar nas nossas possibilidades de resistência. Somos afrontados assim a um mundo de instabilidade permanente, com um ponto-de-vista descentrado em relação aos acontecimentos e muitas dúvidas ao longo do percurso. Mas os jump cuts de La balia, as imagens documentais "puras" de Sbatti il mostro in prima pagina ou as imprevisibilidades de Giulia em Diablo no Corpo não devem nos tirar da rota: mesmo com todas as derorientações e parcialidades de visão, o cinema de Bellocchio é uma procura pelo foco. O foco que permite a ação.

Ruy Gardnier

 

 




Maya Sansa em A Intrusa (1999)...


...e Gian Maria Volontè em
Sbatti il mostro in prima pagina
(1972)