RAJ KAPOOR

A graça do Vagabundo já distante que tem seus dias coloridos pela fome e pobreza até que, mergulhado em trapalhadas, conhece uma bela dama pela qual se apaixona perdidamente, sem chances de ser correspondido, parece aqui e ali perder o brilho para um vagabundo das longínquas terras indianas. Raj Kapoor, um pouco herdeiro de Chaplin, também tinha um bigodinho e um chapéu, que levantava em cumprimento. Mas a tragicomédia para ele abria espaço para o desfile grandioso do melodrama. Cantado.

Preocupado com uma ordem mundial desigual e injusta, seu bem-assentado cinema comercial promove um romantismo e um idealismo fora de moda, mas que ressoava bastante na juventude indiana do pós-guerra, esperançosa de uma definitiva mudança de rumos pelo novo regime e governantes estreantes. Talentoso homem de artes, Kapoor demonstra uma entrega não muito comum no cinema. Cada fotograma de seus filmes esbanja uma simpatia e um afeto comoventes, que exalam não apenas uma paixão pelo cinema como uma paixão pela vida. Seu feel-good inconfundível, que pleiteia muito mais um estar bem no mundo do que um incômodo revolucionário, encanta e enternece.

O vagabundo que vaga pelas ruas faminto e sem emprego e que divide sua sorte com os vira-latas abandonados, acaba descobrindo que o roubo é uma saída para a sobrevivência quando se é marginalizado pela sociedade. Desejoso de condições dignas, no entanto, ele irá se reparar e se adequar devidamente quando da possibilidade de uma ascensão social. Sua indignação está nas condições subumanas impingidas aos pobres e na profunda desigualdade que corrobora os desmandos de uma classe sobre a outra, nunca no sistema como um todo. A questão das castas, por exemplo, que sempre salta aos nossos olhos ocidentais, nem faz figuração. É a situação econômica e a vergonhosa pobreza de uns, rebaixados e humilhados, contrastada com a riqueza de outros, dotados de poderes autoritários, que configuram a grande preocupação de Kapoor, que oferece sempre um olhar bastante compreensivo e generoso para os excluídos de toda a sorte. Excluídos, estes, portadores de alegria e força de vida surpreendentes, dada sua calamitosa situação. Eles são aqueles personagens que, sofridos, destilam bondade e espírito justo. A eles, não foram dadas as oportunidades concedidas automaticamente aos nascidos em berço de ouro. São filhos do ambiente, da pior forma possível.

Em Awara (O Vagabundo), Raj é o filho não-reconhecido de Raghunath, um grande juiz que julga as pessoas pelo seu sangue não pelo seu espírito. Indo viver com a mãe num lugar afastado e crescendo na marginalidade, ele torna-se discípulo de Jagga, o maior bandido da região. Sua mãe gostaria que ele tivesse um futuro brilhante e se tornasse um grande homem pelo estudo, mas suas condições não permitem. Raj logo abandona a escola, perdendo de vista a única riqueza de uma infância de privações: Rita, a amiguinha cuja privilegiada condição econômica nunca impediu seu afeto por ele. Anos mais tarde ele a reencontra, já uma juíza formada, sob a tutela de Raghunath desde a morte de seu pai. Os dois se apaixonam, mas Raghunath não mede esforços para afastá-los, em nome de sua integridade de classe. O que ganha um motivo concreto quando ele descobre que Raj havia roubado o colar comprado por ele, para ofertar a Rita em seu aniversário. Em uma das discussões, Raj acaba atacando violentamente o juiz, o que serve para este levá-lo ao tribunal sob acusação. Rita o defende e, confrontado com a descoberta de que Raj é seu filho, Raghunath se vê obrigado a enfrentar seus próprios preceitos. Kapoor, ao contrário do que se poderia esperar de um filme produzido no seio de uma indústria calcada na narrativa clássica hollywoodiana e erguida sobre os códigos do cinema de gênero, quebra as expectativas, estabelecendo nuances em uma dicotomia de bem e mal e esboçando uma compreensão social surpreendente. Compartilhando em grande parte um repertório melodramático consagrado (pelo cinema de Emilio Fernández, por exemplo), ele transcende a tradicional crença deste em um destino trágico, que acabaria condenando seus personagens a um triste fim, mesmo que seu percurso estivesse permeado de questionamentos sociais, econômicos e políticos. Tendo nascido manchados, a desgraça os perseguiria inevitavelmente. Mas os personagens de Kapoor são seres independentes e comandam seu próprio destino, ainda que estejam sujeitos às condições que o ultrapassam, como a miséria. Raj foi concebido filho de um rico juiz, mas no momento em que sua mãe grávida é expulsa de casa e abandonada sem recursos à própria sorte, ele cresce um vagabundo. Mesmo querendo estudar, sabe que não tem condições para isso, pois precisa levar dinheiro pra casa. Acaba na criminalidade. Discernindo, no entanto, o crime necessário (o bom crime), daquele desnecessário (vil). Seu pai, Raghunath, no entanto, não sabe discernir nada. Condenou um homem inocente pelo fato de ser filho de um criminoso. Não deu a este homem a chance de se provar senhor de sua vida e de seu futuro. Seu dinheiro não faz dele um homem digno, da mesma forma que a pobreza não faz de Jagga um homem bom. Ao mesmo tempo, a riqueza de Rita não a faz ruim nem a miséria e a criminalidade de Raj o tornam Culpado. Os homens são dotados de livre-arbítrio e responsáveis pelos seus atos e, principalmente, pelo seu caráter. O que os distingue é, basicamente, a sua capacidade de amar. Porque para o romantismo de Kapoor, a grande política era a do amor, pela qual ele desejava promover uma sensação de pertencimento e humanismo1.

Da mesma forma, em Shree 420 (Sr. 420) é esse "Amor", transfigurado na alegria de viver e no bem-disposto humor de (outro) Raj, também vagabundo, que vai desafiar a ordem e questionar a marginalização. Com seus sapatos em farrapos, uma trouxa nos ombros, um diploma debaixo do braço e muita honestidade e integridade, ele vai para Bombaim tentar a sorte. Mas, ao chegar, logo encontra um mendigo que lhe diz que a cidade é impiedosa e que é melhor ele desistir e mendigar. Vagando com fome ele encontra uma vendedora de frutas, Vidya, que por compreender e compartilhar de seus ideais de vida e de seus infortúnios, se torna sua "mãe" das ruas. Aos poucos, Raj vai descobrindo que a única forma de sobreviver numa cidade como esta, na qual a injustiça social faz os bem-intencionados passarem fome e inclinarem-se para o crime, enquanto aqueles que vivem uma vida digna tranqüilamente tornam-se ladrões de colarinho branco em nome da ganância sem fim, é abandonar sua consciência e apelar também para a criminalidade, na qual uma vida mais fácil está à espera... Conseguindo por fim um emprego numa lavanderia, ele acaba, numa de suas entregas, sendo cooptado por uma rica dona, que o transforma no seu acompanhante de luxo, fazendo dele o que bem entende. Raj chega quase ao ponto de ser corrompido pela riqueza e pelos jogos de poder da alta sociedade, mas lembra-se a tempo de Vidya, abandonando tudo isto para retornar à sua humilde vida e, em nome dos seus pares, denunciar toda a hipocrisia e falsa imagem dos bem-estabelecidos senhores que nutrem a desigualdade e enriquecem à custa dos desfavorecidos. Kapoor ataca novamente as diferenciações entre ricos e pobres e o julgamento feito em cima da posição que os homens ocupam na sociedade, arriscando aqui e ali a afirmação de que só existem aqueles sem condições mínimas de vida, porque existem aqueles que abusam da sua posição e da marginalidade de outros. Embora, entre os miseráveis, também haja ganância: ao tentar habitar o chão de uma área favelada, Raj é expulso pelo "arrendatários" do lugar, afirmando que o território é propriedade deles. Ao final, como um grande herói, Raj vai denunciar a todos os grandes figurões salafrários e devolver o dinheiro roubado do povo, num alegado projeto de construção de moradias populares. Apesar da dramaticidade do tema, é o tom cômico e despretensioso do filme que vai causar a adesão do público à causa promovida pelo amável vagabundo. Numa das célebres canções do filme, ele canta: "Meus sapatos são japoneses, minhas calças inglesas, meu chapéu russo, mas meu coração é indiano", exaltando mais uma vez a importância deste "coração", deste "amor", no percurso pelos infortúnios da vida. É sua alma indiana seu grande valor, a despeito da colcha de retalhos que é os trapos que ele veste.

No progredir de sua carreira, este amor vai deixando este esforço de compreensão social e se literalizando no romance propriamente dito. A ingenuidade e idealização romântica que insistia em construir com leveza o caminho da Utopia, vai personalizando um melodrama romântico mais centrado no indivíduo, mas sem, no entanto, abandonar os comentários econômicos, políticos e sociais. Em seu filme seguinte, Sangam (Confluência), Sunder, Gopal e Radha são amigos de infância. Percebemos claramente que Sunder e Gopal têm aquela amizade masculina construída em cima da honra e da devoção e que Radha gosta de Gopal, que não sabe como reagir a isso, ao mesmo tempo em que é inibido pelas ostensivas demonstrações de amor de Sunder por Radha. Eles crescem, o triângulo amoroso se configura como tal e se solidifica. Sunder não cansa de pedir a mão de Radha a seus pais e de solicitar a Gopal que engrosse o coro. Mas os pais de Radha não o aceitam, por ser de classe inferior e não ter meios concretos de sustenta-la após o casamento. Sunder então se alista às forças armadas, como forma de se "graduar" aos olhos de Radha, e parte em guerra. Desaparecendo em meio a uma missão, é tido como morto. Superada a dor pela morte do amigo querido, Radha e Gopal ficam noivos. Mas, com toda sua graça de clown, Sunder reaparece. Gopal, em nome de sua devota amizade, afasta-se de Radha, que embora não aceite tal atitude, não tem como lutar contra. E acaba se casando com Sunder, sem que ele saiba de nada que se passou em sua ausência, até que a situação torna-se a tal ponto dramática, que todos se enfrentam, revelando seus sentimentos de fato. Embora com breves comentários sobre a guerra, Kapoor neste filme se concentra na estrutura familiar e no drama da mulher que não comanda seu destino. Apesar da figura de clown de Sunder, a grande pedra de toque de Sangam é o melodrama sentimental rasgado e a confrontação dos personagens com as ironias do destino.

Um pouco como Sangam é Bobby. O amor jovem e inocente de Raj e Bobby crê tudo poder conquistar. Mas há novamente a disparidade social. Raj é filho de pais ricos demais e atenciosos de menos, que pouco se preocupam com o que se passa no coração do rapaz, e Bobby é filha de um grande pescador e comerciante de peixe de uma região praieira próxima, além de neta da babá de Raj, aquela que verdadeiramente o criou, mas nada pôde fazer contra a decisão de seus pais de mandá-lo ao colégio interno. Bobby, embora muito jovem, conhece mais a vida do que Raj, por saber o quanto ela é dura e batalhada. Os pais de Raj, assim que ficam sabendo do romance, o desaprovam totalmente. Já o pai de Bobby, Jack Braganza, a princípio durão, aceita Raj, em respeito à escolha da filha. Até que o pai de Raj, Nath, insulta-o, discriminando-os em nome da distinção social e oferecendo-lhe dinheiro para tirar Bobby da vida de Raj. Jack então fala em nome de sua honra e, profundamente humilhado, se revolta, para provar que em nada os Nath são superiores a ele e que, com sua falta de boas maneiras e etiqueta, é um grande exemplo de moralidade. No final, todos se rendem à poderosa força do amor dos dois jovens, que demonstra poder redimir todas as ineqüidades e injustiças do mundo, ao vencer toda e qualquer resistência. Ao unir a adesão desmesurada ao romance como crença no mundo ao forte elogio àqueles de existência digna, que vivem com seus recursos moderados e com muita honra, Kapoor faz de Bobby um grande filme, onde sua inclinação ao erotismo dá seus primeiros sinais consistentes. Embora apenas com 16 anos, Bobby é bastante sexualizada, especialmente considerando-se o rígido código de censura local.

Mas Kapoor, de alguma forma estranha, nunca foi pressionado pela censura, mesmo dando estes passos mais ousados. Talvez fosse o charme irresistível de seus filmes, a forma leve e delicada com que tudo é levado à tela, mesmo as tragédias. É curioso reparar como este cinema tão simples, mas que conseguiu atingir tantos trunfos (cinematográficos ou não) permanece como uma estrela de grande brilho, mas sem causar maiores estrondos. Praticamente desconhecida do Ocidente, a curta obra de Kapoor (dez filmes dirigidos) apresenta-se muito fresca e surpreendente, especialmente considerando-se uma tradição do cinema brasileiro que se perdeu: a chanchada, que, como comédia popular, guarda alguns pontos em comum com o universo brevemente descrito acima. É um cinema comercial que visa a um grande público e à promoção de um entretenimento, mas não esquece as dores desse povo que o assiste e que, ao contrário do que comumente se diz do cinema de entretenimento (que ele seria necessariamente conformista e conservador), cumpre maravilhosamente a função de borrar as fronteiras. Considerado como um diretor que mesclou como ninguém os impulsos artísticos e comerciais, Raj Kapoor situa-se naquele limiar no qual é importante refletir sobre o mundo, mas é também importante, em igual medida, trazer alegria às pessoas. E talvez, antes de mais nada, àquelas que mais sofrem com os desmandos e infortúnios deste mundo. Tecendo considerações sobre a pobreza, sobre as relações entre as classes sociais e sobre a dignidade humana, ele, ingenuamente (ainda bem!), diverte e advoga o amor como a arma maior. Seu intento não é a revolução, nem no caso sócio-econômico-político, nem no caso da mulher, que ele faz ascender à sua posição de direito, embora ainda idealizada de acordo com o ideal romântico, mas um posicionamento em relação ao mundo (os homens devem ter direitos iguais e serem considerados por sua individualidade) e ao cinema (a imagem em movimento é encantadora e devemos respeitar esse poder e nos aliar a ele).

Belo cinema, aquele que se furta a simplificações.

Tatiana Monassa

1. "Kapoor's ideology was basically a politics of love. ‘I saw the environment and the social effect it had on people and tried to weave the fabric of the script with the influences of that environment to present it with romanticism and a certain kind of sensitivity of belonging, of humanism and in totality, it worked as love.’"
(http://www.idlebrain.com/mumbai/
legends/rajkapoor/rajkapoor1.html).

 

 


Nargis e Raj Kapoor em Awara (1951)


Dimple Kapadia em Bobby (1973)