PYAASA
Guru Dutt, Pyaasa, Índia, 1975

Poderia um filme de 1957 ter realizado à perfeição um traço característico de estilo em cinema a ponto de fazer dele algo só seu e ainda assim poucos terem, hoje, atinado para isso? Seja em zoom, seja movimentando a câmera para a frente e para trás, Guru Dutt fez das relações de aproximação e distanciamento – da imagem para com os personagens, mas não só – algo de uma virtuosidade assombrante, de uma beleza ainda não vista e inaudita, de um rigor quase experimental. Não que o procedimento seja exatamente novo: basta lembrar da câmera saindo de uma geral da festa para a mão de Ingrid Bergman segurando uma chave em Interlúdio, ou da recorrência de movimentos dolly-in e out nas cenas musicais de outros filmes de Bollywood. No entanto, em Pyaasa eles são responsáveis por um gesto com força e dimensão inaugurais, uma certa maneira de refletir filosoficamente, apenas pela abertura ou pelo fechamento do campo visual proporcionado pelo efeito, sobre a relação do indivíduo com a comunidade, ou, mais especificamente – porque é o tema do filme –, sobre as relações (ou a falta de) entre o artista maldito e seu público de devotos parasitas, empresários gananciosos e parentes interesseiros. Como nos grandes rearranjos do trabalho visual que ficaram para a história do cinema – o famoso plano do lobby do hotel em A Última Gargalhada, a passagem de planos abertos para planos detalhe e vice-versa no cinema de Leone –, parece que estamos tendo acesso a algo jamais feito na história do cinema, a uma reconformação daquilo que a construção espacial pode no cinema, a uma iluminação. Guru Dutt, filósofo, consegue nos mostrar apenas com movimentos de câmera como a solidão só existe verdadeiramente quando se está rodeado de uma multidão de pessoas.

Mais que uma história, Pyaasa nos narra a saga de um poeta, Vijay, e de suas dificuldades em ter sua poesia reconhecida num ambiente que se interessa simplesmente pela mundanidade dos lucros e da sobrevivência. Como nas melhores ocasiões em que o cinema mostrou a inadequação de pessoas com coração e ânsias grandes demais num mundo com coração de menos – Sirk em Tudo Que o Céu Permite, Minnelli em Deus Sabe Quanto Amei, Fassbinder em O Direito do Mais Forte –, o tom é melodramático. E o melodrama tem essa espécie de virtude mágica de nos engajar emocionalmente no terreno de valores de uma comunidade dada e nos mostrar quase matematicamente a impossibilidade de existência de certos personagens dentro dela. E, como no filme de Minnelli, em Pyaasa o destino destes personagens é a marginalidade, e uma forte linha de separação entre os personagens "de dentro" e os "de fora" é estabelecida.

Jivay, educado membro de uma família pobre, é um poeta que não consegue ser publicado por nenhuma companhia editora. Um dia, ele chega em casa e descobre que seus irmãos venderam sua coleção de poemas como um pacote de papel velho a um comerciante de lixo. Indignado, ele briga com sua família e se vê expulso de casa. Os poemas, no entanto, encontrarão seu real significado na boca de uma prostituta, que compra o "pacote de lixo", decora alguns dos poemas e os canta na rua, emocionada, pela madrugada, tentando cativar algum possível cliente. O poeta, que neste momento dorme num banco de praça, é acordado pelo canto da mulher e reconhece seus próprios versos. A cena que se segue, mágica, mostra Vijay encantado pelo canto fascinante da sereia – a primeira vez que seus versos tiveram algum tipo de reconhecimento –, e a sereia, de nome Gulab, crendo que enfim fisgou alguém para dispor de seu corpo. Ao fim da canção, o encanto se desfaz, Gulab despacha rispidamente o mendigo Vijay, Vijay se declara o verdadeiro autor dos poemas, mas isso não é suficiente, e ele vai embora. Instantes depois, Gulab estará apaixonada. Completa o time dos marginalizados Abdul Sattar, massageador de cabelos, vagabundo que passeia pelas praças cantando e alívio cômico do filme.

Do outro lado da linha, estão aqueles responsáveis pela normalidade social e pela opressão dos desviantes. É por eles, aliás, que passa o circuito dos poemas de Vijay e de sua passagem de poeta mendigo a morto célebre: rejeição da família, venda dos poemas ao comerciante de lixo, recusa do editor Ghosh em publicar seus poemas e emprego de Vijay na posição subalterna de servente aos olhos da esposa, Meena, ex-namorada de Vijay na faculdade e ainda nutrindo sentimentos por ele. Por fim, célebres os versos, família e editor são responsáveis pela manutenção do poeta "morto": leito de hospital, camisa de força, manicômio e por fim o falso testemunho sobre a identidade de Vijay. Um misto de inveja, comodismo e avarice domina essa região. Meena que se casou por segurança financeira, Ghosh que odeia ver em Vijay o poeta talentoso que ele mesmo não é e coloca-o em situação de serviçal para que a esposa possa observar quem manda, e por fim os editores, poetas e o público em geral, que apenas remam com o fluxo da maré, chamando os poemas de lixo e depois de obras-primas à medida que a voga em torno de Vijay vai aumentando.

Pyaasa, ou "sede eterna", participa dessa mitologia do artista – mais a própria figura humana do que a arte – como anjo exterminador que expõe a nu o corpo podre da sociedade. À sede de vida do artista e de seus congêneres responde uma saciedade conformada mas sem vida que usa o artista apenas para sugar dele a sede que eles não têm, a parte maldita que faz da arte o lugar da eterna sede, da digestão impossível. Daí a cena mais chocante, e também a mais bonita do filme de Guru Dutt, em que Vijay, agora a caminho da consagração definitiva, abjura definitivamente de sua obra porque a adoração cega que ela criou já não pertence mais a ele, e sim ao mercado pueril dos ídolos ocos e das expectativas de lucro. É nesse momento que a forma do filme passa a trabalhar insistentemente isolando o poeta de seus leitores, separando a alma generosa das parasitárias, indo da multidão ao indivíduo, da diversidade ao uno, da impaciência da turba multa à sensibilidade paciente de artista. A música, muitas vezes elemento de respiração nos filmes de Bollywood – e em geral nos musicais –, é em Pyaasa elemento dramático ainda mais forte de clímax emocional, servindo para tensionar as partes conflitantes e revelar os sentimentos dos personagens. Guru Dutt tem sempre o tom exato para fazer a transição dos momentos musicais com o drama mantendo sempre a unidade de estilo (ao contrário de Raj Kapoor, que adora brincar o tempo inteiro com as variações de tom, como em Sangam, com sua primeira parte em tom de comédia e a segunda em tom melodramático), fazendo um filme um tanto diferente do que se espera de Bollywood (filmes que "têm tudo": romance, ação, aventura, comédia, perseguição, tragédia, perda, música), o que só torna sua existência mais preciosa. Pyaasa encanta pela mestria com que conjuga o máximo de especulação (os movimentos "filosóficos" operados pela câmera) com o máximo de fruição sensível (a beleza das músicas e das imagens), fazendo o filme operar em dois campos complementares. O brilho da matéria é o mesmo brilho da alma.

Ruy Gardnier

 

 







Dois momentos distintos de Pyaasa (1957), de Guru Dutt