Poderia
um filme de 1957 ter realizado à perfeição
um traço característico de estilo em cinema
a ponto de fazer dele algo só seu e ainda assim
poucos terem, hoje, atinado para isso? Seja em zoom,
seja movimentando a câmera para a frente e para
trás, Guru Dutt fez das relações
de aproximação e distanciamento
da imagem para com os personagens, mas não só
algo de uma virtuosidade assombrante, de uma
beleza ainda não vista e inaudita, de um rigor
quase experimental. Não que o procedimento seja
exatamente novo: basta lembrar da câmera
saindo de uma geral da festa para a mão de Ingrid
Bergman segurando uma chave em Interlúdio,
ou da recorrência de movimentos dolly-in
e out nas cenas musicais de outros filmes de
Bollywood. No entanto, em Pyaasa eles são
responsáveis por um gesto com força e
dimensão inaugurais, uma certa maneira de refletir
filosoficamente, apenas pela abertura ou pelo fechamento
do campo visual proporcionado pelo efeito, sobre a relação
do indivíduo com a comunidade, ou, mais especificamente
porque é o tema do filme , sobre
as relações (ou a falta de) entre o artista
maldito e seu público de devotos parasitas, empresários
gananciosos e parentes interesseiros. Como nos grandes
rearranjos do trabalho visual que ficaram para a história
do cinema o famoso plano do lobby do hotel em
A Última Gargalhada, a passagem de planos
abertos para planos detalhe e vice-versa no cinema de
Leone , parece que estamos tendo acesso a algo
jamais feito na história do cinema, a uma reconformação
daquilo que a construção espacial pode
no cinema, a uma iluminação. Guru Dutt,
filósofo, consegue nos mostrar apenas com movimentos
de câmera como a solidão só existe
verdadeiramente quando se está rodeado de uma
multidão de pessoas.
Mais que uma história, Pyaasa nos narra
a saga de um poeta, Vijay, e de suas dificuldades em
ter sua poesia reconhecida num ambiente que se interessa
simplesmente pela mundanidade dos lucros e da sobrevivência.
Como nas melhores ocasiões em que o cinema mostrou
a inadequação de pessoas com coração
e ânsias grandes demais num mundo com coração
de menos Sirk em Tudo Que o Céu Permite,
Minnelli em Deus Sabe Quanto Amei, Fassbinder
em O Direito do Mais Forte , o tom é
melodramático. E o melodrama tem essa espécie
de virtude mágica de nos engajar emocionalmente
no terreno de valores de uma comunidade dada e nos mostrar
quase matematicamente a impossibilidade de existência
de certos personagens dentro dela. E, como no filme
de Minnelli, em Pyaasa o destino destes personagens
é a marginalidade, e uma forte linha de separação
entre os personagens "de dentro" e os "de
fora" é estabelecida.
Jivay, educado membro de uma família pobre, é
um poeta que não consegue ser publicado por nenhuma
companhia editora. Um dia, ele chega em casa e descobre
que seus irmãos venderam sua coleção
de poemas como um pacote de papel velho a um comerciante
de lixo. Indignado, ele briga com sua família
e se vê expulso de casa. Os poemas, no entanto,
encontrarão seu real significado na boca de uma
prostituta, que compra o "pacote de lixo",
decora alguns dos poemas e os canta na rua, emocionada,
pela madrugada, tentando cativar algum possível
cliente. O poeta, que neste momento dorme num banco
de praça, é acordado pelo canto da mulher
e reconhece seus próprios versos. A cena que
se segue, mágica, mostra Vijay encantado pelo
canto fascinante da sereia a primeira vez que
seus versos tiveram algum tipo de reconhecimento ,
e a sereia, de nome Gulab, crendo que enfim fisgou alguém
para dispor de seu corpo. Ao fim da canção,
o encanto se desfaz, Gulab despacha rispidamente o mendigo
Vijay, Vijay se declara o verdadeiro autor dos poemas,
mas isso não é suficiente, e ele vai embora.
Instantes depois, Gulab estará apaixonada. Completa
o time dos marginalizados Abdul Sattar, massageador
de cabelos, vagabundo que passeia pelas praças
cantando e alívio cômico do filme.
Do outro lado da linha, estão aqueles responsáveis
pela normalidade social e pela opressão dos desviantes.
É por eles, aliás, que passa o circuito
dos poemas de Vijay e de sua passagem de poeta mendigo
a morto célebre: rejeição da família,
venda dos poemas ao comerciante de lixo, recusa do editor
Ghosh em publicar seus poemas e emprego de Vijay na
posição subalterna de servente aos olhos
da esposa, Meena, ex-namorada de Vijay na faculdade
e ainda nutrindo sentimentos por ele. Por fim, célebres
os versos, família e editor são responsáveis
pela manutenção do poeta "morto":
leito de hospital, camisa de força, manicômio
e por fim o falso testemunho sobre a identidade de Vijay.
Um misto de inveja, comodismo e avarice domina essa
região. Meena que se casou por segurança
financeira, Ghosh que odeia ver em Vijay o poeta talentoso
que ele mesmo não é e coloca-o em situação
de serviçal para que a esposa possa observar
quem manda, e por fim os editores, poetas e o público
em geral, que apenas remam com o fluxo da maré,
chamando os poemas de lixo e depois de obras-primas
à medida que a voga em torno de Vijay vai aumentando.
Pyaasa, ou "sede eterna", participa
dessa mitologia do artista mais a própria
figura humana do que a arte como anjo exterminador
que expõe a nu o corpo podre da sociedade. À
sede de vida do artista e de seus congêneres responde
uma saciedade conformada mas sem vida que usa o artista
apenas para sugar dele a sede que eles não têm,
a parte maldita que faz da arte o lugar da eterna sede,
da digestão impossível. Daí a cena
mais chocante, e também a mais bonita do filme
de Guru Dutt, em que Vijay, agora a caminho da consagração
definitiva, abjura definitivamente de sua obra porque
a adoração cega que ela criou já
não pertence mais a ele, e sim ao mercado pueril
dos ídolos ocos e das expectativas de lucro.
É nesse momento que a forma do filme passa a
trabalhar insistentemente isolando o poeta de seus leitores,
separando a alma generosa das parasitárias, indo
da multidão ao indivíduo, da diversidade
ao uno, da impaciência da turba multa à
sensibilidade paciente de artista. A música,
muitas vezes elemento de respiração nos
filmes de Bollywood e em geral nos musicais ,
é em Pyaasa elemento dramático
ainda mais forte de clímax emocional, servindo
para tensionar as partes conflitantes e revelar os sentimentos
dos personagens. Guru Dutt tem sempre o tom exato para
fazer a transição dos momentos musicais
com o drama mantendo sempre a unidade de estilo (ao
contrário de Raj Kapoor, que adora brincar o
tempo inteiro com as variações de tom,
como em Sangam, com sua primeira parte em tom
de comédia e a segunda em tom melodramático),
fazendo um filme um tanto diferente do que se espera
de Bollywood (filmes que "têm tudo":
romance, ação, aventura, comédia,
perseguição, tragédia, perda, música),
o que só torna sua existência mais preciosa.
Pyaasa encanta pela mestria com que conjuga o
máximo de especulação (os movimentos
"filosóficos" operados pela câmera)
com o máximo de fruição sensível
(a beleza das músicas e das imagens), fazendo
o filme operar em dois campos complementares. O brilho
da matéria é o mesmo brilho da alma.
Ruy Gardnier
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