Em um dado momento de A
Pessoa É Para o Que Nasce, de Roberto Berliner,
uma das três irmãs cegas de Campina Grande,
protagonistas do filme, explica por que aceitou participar
do documentário. Ela não quer dinheiro,
mas a fama que, supostamente, derivará de sua
imagem. Ao longo da filmagem, marcada por algumas interrupções,
ela e as irmãs ficam célebres. Cantam
ao lado de Gilberto Gil, dão entrevistas, são
tratadas como estrelas. Em outro estágio da filmagem,
já ao final, voltam a pedir esmola na rua. Ou
seja: ganharam a fama, como queriam, mas não
o dinheiro, do qual não faziam questão.
Terminam nuas tomando banho de mar, o máximo
que o filme, seguindo a lógica determinista de
seu título, pode ofertar a suas personagens:
a realização de outro sonho (o contato
com água do oceano) e a reposição
delas a estado de pureza (a nudez), porque, apesar da
fama passageira, anterior até ao lançamento
do produto (a imagem delas), as pessoas são para
o que nascem e, como vemos, o cinema não pode
mudar isso. E isso está na tela.
Se a personagem-entrevistada-tema diz por que está
ali diante de uma câmera, Roberto Berliner em
nenhum momento diz por que se colocou atrás do
visor do equipamento ou comando o direcionamento de
sua lente. Não que isso, em um documentário,
seja uma obrigação. Mas nesse, em especial,
é uma ausência. Como o realizador entra
em cena para tematizar a paixão de uma das personagens
por ele e inclui na montagem uma série de elogios
à sua iniciativa (de fazer o filme), nada mais
natural que também tematize suas intenções,
já que, na escolha de três cantoras de
rua cegas, pode haver todo tipo de objetivo e oportunismos
variados (mais que oportunos). Parece óbvio que,
além das três serem personagens com forte
presença cênica e retórica, a cegueira
delas é fundamental. Sem o problema de visão,
o material teria menos apelo. Ou nem haveria filme.
Nada contra usar a deficiência como algo a favor
de uma obra, mas seria justo explicitar essa consciência,
de modo a não se dar a impressão de que
somente o cinema dá uma mão àquelas
personagens, e não principalmente o contrário.
E como os elogios ao diretor pululam no filme, de forma
completamente dispensável, Berliner parece mesmo
estar fazendo o filme, a partir de certo ponto, acima
de tudo para legitimar sua boa ação como
realizador, que permite a gente tão simples e
sofrida ter visibilidade, com direito até ao
benefício de um suposto olhar artístico,
que tenta se firmar com a utilização ocasional
de enquadramentos formalistas. Mas que boa ação
é essa? Cabe salientar que o diretor, ao escolher
o título, assina embaixo da frase tão
repetida delas, "a pessoa é para o que
nasce", estacionando-as no imobilismo, sem
rebater essa posição ou concordar com
ela (mas concordando, em última instância,
seja pelo silêncio, seja pelo título).
Sua boa ação estaria apenas na transformação
das três irmãs em objetos utilizáveis
em um filme que, em suas passagens mais questionáveis,
escancara a intimidade sexual delas, assim como deixa
uma câmera sem operador no quarto onde dormem,
como se elas ali estivessem para serem devassadas, para
se tornarem socialmente incluídas em um registro
de intenções psico-antropológicas.
Esse mesmo processo expõe a filha adolescente
de uma das cantoras a julgamento impiedoso.
Como em muitos documentários recentes, de À
Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel, a 33,
de Kiko Goifman, de Peões, de Eduardo
Coutinho, a Entreatos, de João Moreira
Salles, Berliner trata de sua própria realização.
A opção valoriza a incidência do
“acaso dramático ou dramatúrgico”,
uma situação imprevista que, ocorrida
durante a captação das filmagens, tende
a dar uma turbinada no filme, “referendando-o”
como documento de realidade. Essas viradas de roteiro
proporcionadas pelo real estão presentes em Fala
Tu, de Guilherme Coelho, e Em Trânsito,
de Henri Gervaisseau, nos quais pessoas mencionadas
ou filmadas morrem durante a realização.
No caso de A Pessoa é para o que Nasce,
a morte é da esperança de mudança,
expressa pela volta das cantoras de rua para a rua.
Depois da fama efêmera, vem o retorno ao estágio
anterior. A perda do ser humano corresponde a uma fatura
do filme.
Tanto essa tematização do processo de
realização como a incidência do
acaso dramático compõem a força
motriz de Extremo Sul, de Mônica Schmidt,
tipo de documentário com propósito inicial
alterado pelos rumos das filmagens. Também nesse
caso há um fracasso humano que proporciona um
ganho cinematográfico. Planejado como o registro
de uma expedição de alpinistas ao Monte
Sarmiento, na Terra do Fogo, no Chile, o filme começa
como a pressa de um programa de esportes radicais, algo
agravado pela pouca espontaneidade da parte dos entrevistados,
alguns deles falando sozinhos para uma mini-DV. Cada
um deles fala de sua experiência na atividade.
Ouvimos elogios mútuos, comenta-se sobre o espírito
de equipe, tudo mais ou menos como se espera dessa modalidade.
Toda a questão-interesse resume-se a: conseguirão
chegar ao topo ou sofrerão algum contratempo?
De repente, em um ponto já avançado do
processo, surge a crise. A equipe de filmagem entra
em cena, a narração da diretora relata
uma fissura entre o pessoal do filme e os alpinistas,
o projeto é colocado em risco, tanto de uma parte
como de outra, com os entrevistados passando a colocar
seus companheiros de expedição em questão.
Ao contrário de Berliner, que não se coloca
como realizador, mas como personagem, Mônica Schmidt
adota uma posição. Fica claro que ela
quer a escalada, suspensa durante a crise, e lamenta
a interrupção do projeto (o esportivo
e o cinematográfico). Está certo que alguns
personagens, durante essa crise, saem pior que outros,
sob a suspeita de serem, mais que cautelosos, apenas
amarrados por seus medos. Mas essa visão é
derivada de um embate de opiniões, fundamental
no processo filmado, na verdade raiz do filme como foi
feito. Não estamos diante de um devassar de intimidades
ou de um julgamento implacável, mas de um escancaramento
do conflito do qual o filme é um dos estopins.
O acaso dramático não é um ganho,
mas a própria coluna vertebral de Extremo
Sul.
Não poderiam ser universos mais díspares.
O de A Pessoa é para o Que Nasce é
o da pobreza ortodoxa, com toda sorte de dramas verbalizados
nas entrevistas, sempre se buscando a naturalização
das derrotas, assim como a aceitação dos
acontecimentos contra os quais nada se pode faze nada.
O de Extremo Sul é da conquista e o
dos desafios, da superação de limites,
tanto os dos homens como os da natureza. Em um, as coisas
são como são porque Deus quis que elas
fossem assim. No outro, Deus está na relação
de forças entre os homens e a natureza, na coragem
de uns e no receio de outros. Não se pode creditar
a diretores a opinião de seus entrevistados.
Muitas das características de cada um dos filmes
está na postura de quem fala e quem fala tem
seu conteúdo verbal formatado por suas circunstâncias
de vida. Pode-se questionar dos diretores, aí
sim, como eles se relacionam com os entrevistados, assim
como se colocam diante do seu material. Nesse sentido,
Berliner parece perdido, sem saber para onde ir, sem
saber onde chegar, sem tematizar o próprio vacilo,
as próprias inseguranças. Schmidt, ao
contrário, tem o filme sob foco. Mesmo trabalhando
sobre uma mudança de percurso.
Cléber Eduardo
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