PARALELAS E TRANSVERSAIS
A PESSOA É PARA O QUE NASCE
Roberto Berliner, Brasil, 2004
EXTREMO SUL

Mônica Schmidt, Brasil, 2004

Em um dado momento de A Pessoa É Para o Que Nasce, de Roberto Berliner, uma das três irmãs cegas de Campina Grande, protagonistas do filme, explica por que aceitou participar do documentário. Ela não quer dinheiro, mas a fama que, supostamente, derivará de sua imagem. Ao longo da filmagem, marcada por algumas interrupções, ela e as irmãs ficam célebres. Cantam ao lado de Gilberto Gil, dão entrevistas, são tratadas como estrelas. Em outro estágio da filmagem, já ao final, voltam a pedir esmola na rua. Ou seja: ganharam a fama, como queriam, mas não o dinheiro, do qual não faziam questão. Terminam nuas tomando banho de mar, o máximo que o filme, seguindo a lógica determinista de seu título, pode ofertar a suas personagens: a realização de outro sonho (o contato com água do oceano) e a reposição delas a estado de pureza (a nudez), porque, apesar da fama passageira, anterior até ao lançamento do produto (a imagem delas), as pessoas são para o que nascem e, como vemos, o cinema não pode mudar isso. E isso está na tela.

Se a personagem-entrevistada-tema diz por que está ali diante de uma câmera, Roberto Berliner em nenhum momento diz por que se colocou atrás do visor do equipamento ou comando o direcionamento de sua lente. Não que isso, em um documentário, seja uma obrigação. Mas nesse, em especial, é uma ausência. Como o realizador entra em cena para tematizar a paixão de uma das personagens por ele e inclui na montagem uma série de elogios à sua iniciativa (de fazer o filme), nada mais natural que também tematize suas intenções, já que, na escolha de três cantoras de rua cegas, pode haver todo tipo de objetivo e oportunismos variados (mais que oportunos). Parece óbvio que, além das três serem personagens com forte presença cênica e retórica, a cegueira delas é fundamental. Sem o problema de visão, o material teria menos apelo. Ou nem haveria filme. Nada contra usar a deficiência como algo a favor de uma obra, mas seria justo explicitar essa consciência, de modo a não se dar a impressão de que somente o cinema dá uma mão àquelas personagens, e não principalmente o contrário.

E como os elogios ao diretor pululam no filme, de forma completamente dispensável, Berliner parece mesmo estar fazendo o filme, a partir de certo ponto, acima de tudo para legitimar sua boa ação como realizador, que permite a gente tão simples e sofrida ter visibilidade, com direito até ao benefício de um suposto olhar artístico, que tenta se firmar com a utilização ocasional de enquadramentos formalistas. Mas que boa ação é essa? Cabe salientar que o diretor, ao escolher o título, assina embaixo da frase tão repetida delas, "a pessoa é para o que nasce", estacionando-as no imobilismo, sem rebater essa posição ou concordar com ela (mas concordando, em última instância, seja pelo silêncio, seja pelo título). Sua boa ação estaria apenas na transformação das três irmãs em objetos utilizáveis em um filme que, em suas passagens mais questionáveis, escancara a intimidade sexual delas, assim como deixa uma câmera sem operador no quarto onde dormem, como se elas ali estivessem para serem devassadas, para se tornarem socialmente incluídas em um registro de intenções psico-antropológicas. Esse mesmo processo expõe a filha adolescente de uma das cantoras a julgamento impiedoso.

Como em muitos documentários recentes, de À Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel, a 33, de Kiko Goifman, de Peões, de Eduardo Coutinho, a Entreatos, de João Moreira Salles, Berliner trata de sua própria realização. A opção valoriza a incidência do “acaso dramático ou dramatúrgico”, uma situação imprevista que, ocorrida durante a captação das filmagens, tende a dar uma turbinada no filme, “referendando-o” como documento de realidade. Essas viradas de roteiro proporcionadas pelo real estão presentes em Fala Tu, de Guilherme Coelho, e Em Trânsito, de Henri Gervaisseau, nos quais pessoas mencionadas ou filmadas morrem durante a realização. No caso de A Pessoa é para o que Nasce, a morte é da esperança de mudança, expressa pela volta das cantoras de rua para a rua. Depois da fama efêmera, vem o retorno ao estágio anterior. A perda do ser humano corresponde a uma fatura do filme.

Tanto essa tematização do processo de realização como a incidência do acaso dramático compõem a força motriz de Extremo Sul, de Mônica Schmidt, tipo de documentário com propósito inicial alterado pelos rumos das filmagens. Também nesse caso há um fracasso humano que proporciona um ganho cinematográfico. Planejado como o registro de uma expedição de alpinistas ao Monte Sarmiento, na Terra do Fogo, no Chile, o filme começa como a pressa de um programa de esportes radicais, algo agravado pela pouca espontaneidade da parte dos entrevistados, alguns deles falando sozinhos para uma mini-DV. Cada um deles fala de sua experiência na atividade. Ouvimos elogios mútuos, comenta-se sobre o espírito de equipe, tudo mais ou menos como se espera dessa modalidade. Toda a questão-interesse resume-se a: conseguirão chegar ao topo ou sofrerão algum contratempo?

De repente, em um ponto já avançado do processo, surge a crise. A equipe de filmagem entra em cena, a narração da diretora relata uma fissura entre o pessoal do filme e os alpinistas, o projeto é colocado em risco, tanto de uma parte como de outra, com os entrevistados passando a colocar seus companheiros de expedição em questão. Ao contrário de Berliner, que não se coloca como realizador, mas como personagem, Mônica Schmidt adota uma posição. Fica claro que ela quer a escalada, suspensa durante a crise, e lamenta a interrupção do projeto (o esportivo e o cinematográfico). Está certo que alguns personagens, durante essa crise, saem pior que outros, sob a suspeita de serem, mais que cautelosos, apenas amarrados por seus medos. Mas essa visão é derivada de um embate de opiniões, fundamental no processo filmado, na verdade raiz do filme como foi feito. Não estamos diante de um devassar de intimidades ou de um julgamento implacável, mas de um escancaramento do conflito do qual o filme é um dos estopins. O acaso dramático não é um ganho, mas a própria coluna vertebral de Extremo Sul.

Não poderiam ser universos mais díspares. O de A Pessoa é para o Que Nasce é o da pobreza ortodoxa, com toda sorte de dramas verbalizados nas entrevistas, sempre se buscando a naturalização das derrotas, assim como a aceitação dos acontecimentos contra os quais nada se pode faze nada. O de Extremo Sul é da conquista e o dos desafios, da superação de limites, tanto os dos homens como os da natureza. Em um, as coisas são como são porque Deus quis que elas fossem assim. No outro, Deus está na relação de forças entre os homens e a natureza, na coragem de uns e no receio de outros. Não se pode creditar a diretores a opinião de seus entrevistados. Muitas das características de cada um dos filmes está na postura de quem fala e quem fala tem seu conteúdo verbal formatado por suas circunstâncias de vida. Pode-se questionar dos diretores, aí sim, como eles se relacionam com os entrevistados, assim como se colocam diante do seu material. Nesse sentido, Berliner parece perdido, sem saber para onde ir, sem saber onde chegar, sem tematizar o próprio vacilo, as próprias inseguranças. Schmidt, ao contrário, tem o filme sob foco. Mesmo trabalhando sobre uma mudança de percurso.

Cléber Eduardo