Carlos Saura explora, desde
que alcançou destaque internacional com La
Caza (melhor direção no Festival
de Berlim de 1966), a temática da violência.
Relações conflituosas entre os homens,
seja no corpo individual, seja no coletivo, que se resolvem
através da explosão de pulsões
ou reprimidas pelo subconsciente dos personagens, ou
oprimidas pelo contexto de exceção político-social
que os cerca. O cineasta espanhol, no entanto, sempre
se mostrou incapaz de representar o tema proposto de
forma seca e direta: prefere, ao contrário, podá-lo
e controlá-lo para que não ultrapasse
os limites do moralmente aceitável, eliminando,
em conseqüência, a potência de questionamento
e de ruptura suscitada pelo fenômeno. Nas alegorias
sobre o regime franquista, em Ana e os Lobos,
em Cria Cuervos e em Mamãe Faz Cem
Anos; no uso da dança e da música
em Bodas de Sangue, em O Amor Bruxo e
em Carmen para exprimir o desespero do sexo
e da paixão; e na fotografia estetizante, tanto
no retorno à estrutura musical em Flamenco,
em Tango e em Salomé, quanto
no debate acerca do mistério da criação
artística em Goya e em Buñuel
e a Mesa do Rei Salomão, está em
jogo a filtragem da imprevisibilidade da violência,
sobretudo quanto à sua natureza essencialmente
amoral.
Com O Sétimo Dia, Carlos Saura se rende
novamente à idealização da violência,
uma vez que a compreensão dos múltiplos
desdobramentos dos fatos narrados (que deságuam
na seqüência do massacre perpetrado pelos
irmãos Fuentes contra a cidade) passa pelos olhos
da adolescente Isabel Jimenez, pelo impacto afetivo
que eles causam tanto na vida familiar, entre pais e
filhas, quanto na recente descoberta do amor, com o
salva-vidas – e traficante – Chino. Assim,
ao invés de, como sugere o título do filme
– o sétimo dia, domingo, quando Deus descansou
da semana da Criação e permitiu aos seres
vivos faltarem com a Ordem –, apenas representar
a saga dos trinta anos de vingança dos Fuentes
contra os Jimenez (que se inicia com a sedução
da jovem Luciana Fuentes pelo mulherengo Amadeo Jimenez)
por meio da amoralidade inerente à ausência
da Lei, a qual baliza as fronteiras entre o certo e
o errado, Saura escolhe ajustar o “registro”
dos acontecimentos à lógica de identificação
entre público e personagem, que acaba por favorecer
os Jimenez, especialmente Isabel, em detrimento dos
Fuentes. Embora o patriarca dos Jimenez tenha, de fato,
assassinado a mãe da família rival para
vingar a morte do irmão, é possível
verificar, em O Sétimo Dia, a presença
de heróis (os Jimenez) e de vilões (os
Fuentes), graças à aura de “normalidade”
impressa nos sentimentos de Isabel, em oposição
às emoções “doentias”
de Luciana, retratada pelo diretor como simples louca
varrida.
No lugar da imagem estetizante das obras precedentes
– Tango, Goya, Buñuel
e a Mesa do Rei Salomão e Salomé
–, Saura trabalha em O Sétimo Dia,
como barreira ao caos indesejável da violência,
não somente com o privilégio ao olhar
sentimental de Isabel frente às ações
torpes de Luciana, como também com a mitificação
do espaço cênico, ao retirar os personagens
(e o ódio e o ressentimento) de qualquer contexto
sócio-político que pudesse lhes servir
de alimento. Mesmo que exista o confronto entre a cidade
desenvolvida – Sevilha, onde mãe e filha
sobreviventes da carnificina agora moram, e que aponta
para o ideal de civilidade por elas aspirado –
e o vilarejo campesino (no qual imperam tradições
arcaicas de sangue e de honra), o cineasta apenas o
estabelece a fim de, por contraste ao que há
de mais moderno na sociedade espanhola, realçar
o ambiente rural em que ocorre a saga dos Fuentes e
dos Jimenez enquanto palco para a selvageria humana,
cujo anacronismo significa o câncer a ser extirpado
pelas forças civilizatórias mas que, paradoxalmente,
está dissociado do meio social que o gerou. Para
o diretor, a relação entre Isabel e Luciana,
entre civilização e atraso, entre ordem
e desordem, é de mero maniqueísmo, como
se fossem mutuamente excludentes, antes de, na verdade,
coexistirem, em movimentos permanentes e complexos de
aproximação e de distanciamento, cada
qual ao mesmo tempo negando e originando a outra.
Portanto, na terra de ninguém
criada por Carlos Saura em O Sétimo Dia,
a violência se apresenta como estado – ela
tão somente existe, porque faz parte da condição
intrínseca do homem –, e não enquanto
evento, que nasce da relação entre os
indivíduos e destes com o espaço (físico,
social, moral, político, econômico) em
que habitam. Ao amenizar a tragédia gerada pela
sede de vingança de ambas as famílias,
através da percepção emotiva de
Isabel e da construção de um vilarejo
mitológico, o cineasta repete o comodismo já
presente em sua filmografia anterior. Defeito que mesmo
a bela seqüência da matança, seca,
dura e explosiva, não consegue apagar.
Paulo Ricardo de Almeida
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