O SÉTIMO DIA
Carlos Saura, El septimo dia, Espanha, 2004

Carlos Saura explora, desde que alcançou destaque internacional com La Caza (melhor direção no Festival de Berlim de 1966), a temática da violência. Relações conflituosas entre os homens, seja no corpo individual, seja no coletivo, que se resolvem através da explosão de pulsões ou reprimidas pelo subconsciente dos personagens, ou oprimidas pelo contexto de exceção político-social que os cerca. O cineasta espanhol, no entanto, sempre se mostrou incapaz de representar o tema proposto de forma seca e direta: prefere, ao contrário, podá-lo e controlá-lo para que não ultrapasse os limites do moralmente aceitável, eliminando, em conseqüência, a potência de questionamento e de ruptura suscitada pelo fenômeno. Nas alegorias sobre o regime franquista, em Ana e os Lobos, em Cria Cuervos e em Mamãe Faz Cem Anos; no uso da dança e da música em Bodas de Sangue, em O Amor Bruxo e em Carmen para exprimir o desespero do sexo e da paixão; e na fotografia estetizante, tanto no retorno à estrutura musical em Flamenco, em Tango e em Salomé, quanto no debate acerca do mistério da criação artística em Goya e em Buñuel e a Mesa do Rei Salomão, está em jogo a filtragem da imprevisibilidade da violência, sobretudo quanto à sua natureza essencialmente amoral.

Com O Sétimo Dia, Carlos Saura se rende novamente à idealização da violência, uma vez que a compreensão dos múltiplos desdobramentos dos fatos narrados (que deságuam na seqüência do massacre perpetrado pelos irmãos Fuentes contra a cidade) passa pelos olhos da adolescente Isabel Jimenez, pelo impacto afetivo que eles causam tanto na vida familiar, entre pais e filhas, quanto na recente descoberta do amor, com o salva-vidas – e traficante – Chino. Assim, ao invés de, como sugere o título do filme – o sétimo dia, domingo, quando Deus descansou da semana da Criação e permitiu aos seres vivos faltarem com a Ordem –, apenas representar a saga dos trinta anos de vingança dos Fuentes contra os Jimenez (que se inicia com a sedução da jovem Luciana Fuentes pelo mulherengo Amadeo Jimenez) por meio da amoralidade inerente à ausência da Lei, a qual baliza as fronteiras entre o certo e o errado, Saura escolhe ajustar o “registro” dos acontecimentos à lógica de identificação entre público e personagem, que acaba por favorecer os Jimenez, especialmente Isabel, em detrimento dos Fuentes. Embora o patriarca dos Jimenez tenha, de fato, assassinado a mãe da família rival para vingar a morte do irmão, é possível verificar, em O Sétimo Dia, a presença de heróis (os Jimenez) e de vilões (os Fuentes), graças à aura de “normalidade” impressa nos sentimentos de Isabel, em oposição às emoções “doentias” de Luciana, retratada pelo diretor como simples louca varrida.

No lugar da imagem estetizante das obras precedentes – Tango, Goya, Buñuel e a Mesa do Rei Salomão e Salomé –, Saura trabalha em O Sétimo Dia, como barreira ao caos indesejável da violência, não somente com o privilégio ao olhar sentimental de Isabel frente às ações torpes de Luciana, como também com a mitificação do espaço cênico, ao retirar os personagens (e o ódio e o ressentimento) de qualquer contexto sócio-político que pudesse lhes servir de alimento. Mesmo que exista o confronto entre a cidade desenvolvida – Sevilha, onde mãe e filha sobreviventes da carnificina agora moram, e que aponta para o ideal de civilidade por elas aspirado – e o vilarejo campesino (no qual imperam tradições arcaicas de sangue e de honra), o cineasta apenas o estabelece a fim de, por contraste ao que há de mais moderno na sociedade espanhola, realçar o ambiente rural em que ocorre a saga dos Fuentes e dos Jimenez enquanto palco para a selvageria humana, cujo anacronismo significa o câncer a ser extirpado pelas forças civilizatórias mas que, paradoxalmente, está dissociado do meio social que o gerou. Para o diretor, a relação entre Isabel e Luciana, entre civilização e atraso, entre ordem e desordem, é de mero maniqueísmo, como se fossem mutuamente excludentes, antes de, na verdade, coexistirem, em movimentos permanentes e complexos de aproximação e de distanciamento, cada qual ao mesmo tempo negando e originando a outra.

Portanto, na terra de ninguém criada por Carlos Saura em O Sétimo Dia, a violência se apresenta como estado – ela tão somente existe, porque faz parte da condição intrínseca do homem –, e não enquanto evento, que nasce da relação entre os indivíduos e destes com o espaço (físico, social, moral, político, econômico) em que habitam. Ao amenizar a tragédia gerada pela sede de vingança de ambas as famílias, através da percepção emotiva de Isabel e da construção de um vilarejo mitológico, o cineasta repete o comodismo já presente em sua filmografia anterior. Defeito que mesmo a bela seqüência da matança, seca, dura e explosiva, não consegue apagar.

Paulo Ricardo de Almeida