O
corpo em Alma Gêmea
A novela do horário das 19h da Rede Globo
que estreou esta semana, Alma Gêmea alcançou
níveis altíssimos de audiência,
ao contrário de sua antecessora, Como uma
Onda, que amargou um quase fracasso. Reprise da
parceria entre Walcyr Carrasco e Jorge Fernando, o folhetim
retoma a época de O Cravo e a Rosa e Chocolate
com Pimenta e conseqüentemente seus figurinos
vaporosos e amor ingênuo. Mas, desta vez, no que
tange ao amor, Carrasco pretende ir bem mais longe.
Casal se conhece e se apaixona. Ao anunciarem o inevitável
casamento, são presenteados pela avó da
moça com a seguinte narrativa: em tempos imemoriais
os seres humanos contavam com dois pares de olhos, de
pernas e de braços, isto é, eram pessoas
duplas, inteiras, a caminhar pela Terra. O criador então
separou-as em duas partes, os corpos como os conhecemos
hoje em dia, e passou a ser tarefa de cada um encontrar
sua outra metade, lugar do amor, da plenitude. Para
Luna (Liliana Castro) e Rafael (Eduardo Moscovis) a
tarefa estaria completa; encontraram-se, as metades.
O destino traiçoeiro, porém, faz com que
a mocinha seja assassinada – numa cena à la Poderoso
Chefão III, com escadarias de teatro e tiros
porém pontuada de expressões patéticas
de horror tornadas grosseiras por uma câmera lenta
em plano fechado demais. Depois de sua alma voar
para o espaço infinito e quase alcançar
um "ser de luz" que a aguardava, Luna acaba
sendo arrebatada de volta à Terra, passando antes
por um cenário virtual labiríntico à
la Escher e cai justamente numa aldeia indígena
onde uma mulher dá a luz. Sua alma reencarna
ali, na menina índia e fica logo claro (inclusive
na fala de uma anciã da aldeia que diz que a
menina tem uma "missão): ela terá
que crescer para encontrar seu amor nos braços
de Rafael, sua outra metade.
A premissa de Alma Gêmea, vê-se logo,
encontra-se já em seu nome. Carrasco alega ter
se baseado em "mitologia grega, cristã e
budista" para criar sua trama. No que diz respeito
à mitologia grega, pelo menos, encontramos o
mito das pessoas duplas em O Banquete, de Platão,
onde à pergunta "qual a origem do amor?"
são dadas diversas respostas diferentes, entre
as quais essa em questão, proferida lá
pelo comediógrafo Aristófanes – figura
histórica usada de maneira ficcional pelo filósofo.
Com esse discurso, Aristófanes pretende justificar
o amor entre iguais; segundo conta, havia três
tipos de seres humanos: os que eram duplamente homens,
duplamente mulheres e ainda os que tinham os dois sexos.
Separados pela ira divina, cada um procuraria tornar-se
um novamente através da cópula com sua
metade originária. Isto é, longe de ser
um libelo sobre destinação, é uma
defesa do amor dos corpos; tornar-se um novamente significa
manter relações sexuais, e se há
algo anterior, é a orientação (sexual)
de cada um nessa busca pela completude de si. Ora, a
novela em questão não poderia ter passado
mais longe disso. Ali não são os corpos
que importam, eles sequer existem. São as almas,
divididas violentamente que precisam encontrar seu par
originário. Para Carrasco não há
corpos, mas somente o espírito. É a alma
que é gêmea, e só ela. O mito dos
corpos unos não tem lugar ali, na verdade. Ele
ilustra uma outra instância: ao dizer corpos duplos
somente se quer significar almas duplas; ou ainda, ao
trazer um mito antigo – e já usado com mais propriedade,
se é possível dizer isso, em produções
como Hedwig, de John Cameron Mitchell – e invocar
várias culturas, a intenção foi
apenas dar uma certa aura de sabedoria, pois o que está
em questão sempre é a idéia de
destino, de amor único, de história
traçada de antemão.
Há um paralelo que não parece descabido
e pode dizer mais sobre Alma Gêmea. A personagem
da mãe da indiazinha predestinada é feita
por Luciana Rigueira, numa quase reprise de seu papel
em Brava Gente Brasileira, filme de Lúcia
Murat. Não tendo feito quase tevê, é
interessante que tenha sido escolhida para viver essa
índia-mãe que ostenta no rosto até
mesmo as mesmas pinturas ornamentais com que apareceu
no filme. Mas lá, Ánote, a índia
estuprada e depois feita esposa de um português,
mata seu bebê porque não quer que seu único
filho (as índias de sua tribo, é dito
em Brava Gente Brasileira, por se considerarem
guerreiras, têm apenas um filho cada; portanto
escolhem com muito critério que criança
deixarão nascer) seja daquele homem, daquela
gravidez miscigenada, daquele sangue misturado. Aqui,
também grávida de um homem branco e mesmo
rejeitada por ele, a quase-Ánote dá a
luz com alegria à criança e a cria com
muito carinho e cuidado. Trata-se de uma criança
especial, mística e mítica. Com missão.
Seu corpo não importa, sua identidade não
passa por ele, não diz respeito a ele. Não
se trata de uma criança bastarda, de carne misturada.
Ela é só alma.
Juliana Fausto
Textos das semanas anteriores:
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Carvalho em estado de graça
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(Rede Globo, Ancinav...) (por Felipe Bragança)
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2003 Parte 2 (por Felipe Bragança)
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