SATYAJIT RAY E BOLLYWOOD
A propósito de A Sala de Música e Sahib bibi aur ghulam

Satyajit Ray, Jalsaghar, Índia, 1958
Abrar Alvi, Sahib bibi aur ghulam, Índia, 1962

Oscar honorário pela carreira, prêmio do júri no Festival de Cannes por A Canção da Estrada, Leão de Ouro em Veneza por O Invencível, homenageado em Berlim com a retrospectiva de seus filmes, ganhador da Legião de Honra do governo francês, eleito pelo British Film Institute entre os três maiores cineastas de todos os tempos, Satyajit Ray continua o mais celebrado diretor indiano no Ocidente, embora pouco conhecido dentro de seu próprio país, onde a exibição de sua obra está confinada ao circuito de arte, aos cineclubes e às faculdades de cinema. Maior representante, junto a Ritwik Gathak e a Mrnal Sem, do "Novo Cinema Indiano", Satyajit Ray sempre desprezou as manifestações cinematográficas industriais que ainda dominam o mercado da Índia, sobretudo Bollywood, uma vez que as acusava de desconhecerem os princípios básicos da linguagem narrativa clássica (em resposta ao por que de os cineastas do país não serem influenciados por Jean-Luc Godard). A possibilidade de se assistir no Brasil a Sahib bibi aur ghulam, de Abrar Alvi, no entanto, dada a semelhança que possui com A Sala de Música, leva ao questionamento da relação de Satyajit Ray com a produção comercial hegemônica, pois mostra que cinemas aparentemente incompatíveis, na verdade, exploram a narração como força motriz e estruturante dos filmes, além de trabalharem com modelos e estereótipo – o melodrama, os gêneros consagrados – advindos de Hollywood.

Trata-se da tensão entre mainstream e cinema de autor, também verificada ao redor do mundo com a explosão de cinemas novos, do Brasil ao Japão, impulsionados pelo neo-realismo italiano da década de 40 e pela nouvelle vague francesa dos anos 50. De sorte que, na Índia, convivem tanto as produções comerciais de Bollywood (faladas em hindi, língua majoritária no país), de Kollywood (segunda maior indústria, faladas em tamil) e de Tollywood (em telegu e em bengali), quanto expressões mais pessoais, em geral subvencionadas pelo governo, egressas da elite cultural, intelectual e financeira bengali: enquanto de um lado segue-se a fórmula de filmes de longa duração que, melodramáticos e sentimentais, misturam diversos gêneros (ação, comédia, romance, suspense) em tramas banais entremeadas por números de dança e de música, de outro há a influência marcante do cinema ocidental, seja Eisenstein (especialmente em Ritwik Gathak), neo-realismo – a exibição de Ladrões de Bicicleta em Calcutá em 1952, fundamental para a realização de A Canção da Estrada –, Jean Renoir (que, ao filmar O Rio Sagrado, tem Satyajit Ray na assistência de direção), ou as obras americanas de John Ford e de Orson Welles.

Apesar de ter feito dois filmes em hindi (Satranj Ke Khilari e Sadgati, ambos baseados no escritor Premchand) e a popular série policialesca com o personagem infanto-juvenil Faluda – que, à maneira da produção industrial, utiliza-se de locações exóticas, Caxemira principalmente, como cenário para tramas que unem ação e comédia –, Satyajit Ray realiza a maioria de sua obra em bengali, independente dos estúdios e do star system indiano. Porém, se de início o cineasta é associado ao neo-realisto italiano, devido aos atores não profissionais e à filmagem em exteriores em A Canção da Estrada, o desenvolvimento posterior de sua carreira privilegia a influência do cinema clássico-narrativo americano. Satyajit Ray, de fato, é um contador de histórias que, assim como Bollywood e seus pares, usa enquanto matéria-prima os gêneros e a construção arquetípica de personagens estabelecidos por Hollywood. Desse modo, na trilogia de Apu tem-se o herói, herdado do melodrama, que precisa triunfar sobre as dificuldades impostas pelo abismo social que se lhe apresenta; em O Mundo de Apu, a estrutura do filme evolui do realismo social ao drama familiar, passando pela comédia de situações; em Três Mulheres, novamente, cada conto possui forma específica: neo-realista, fantástica e cômica romântica; e, nas três últimas obras do diretor – O Inimigo do Povo, Os Galhos da Árvore e O Estrangeiro –, existe o retorno ao drama familiar, agora concentrado nos interiores e nos diálogos e, como em A Casa e o Mundo, na estilização visual e no artificialismo da mise em scéne, que adota intensa movimentação de câmera, atuações que beiram à caricatura e falas que misturam bengali ao inglês.

À visão de A Sala de Música, torna-se evidente compará-lo a Sahib bibi aur ghulam, de Bollywood. Ambos se detêm na decadência da casta superior bengali, mas enquanto em A Sala de Música ela é observada pelo protagonista que integra a classe agonizante (como o Príncipe Salina de O Leopardo, ou o Tom Doniphon e O Homem que Matou o Fascínora), em Sahib bibi aur ghulam o herói se encontra no exterior, uma vez que se agrega à família citadina como simples empregado. A diferença mais sensível dos filmes, contudo, está nos respectivos climas narrativos: se o de Abrar Alvi veste-se de romantismo e de nostalgia, o de Satyajit Ray é implacável ao expor a dissolução moral do personagem, que acaba punido com a morte da esposa e do filho, em função da soberba de, embora falido, organizar caríssimos espetáculos musicais, ao mesmo tempo em que os agricultores de seu feudo subsistem na miséria absoluta.

Dilemas éticos e morais são justamente o que separam Satyajit Ray de Bollywood e seus homônimos. Para o cineasta bengali, ao contrário do que ocorre nas produções comerciais, a narrativa se presta a investigar a crise de consciência que se abate sobre o indivíduo quando forçado a escolher qual a postura em relação aos acontecimentos da realidade (a casa e o mundo...). Em Satyajit Ray, há o certo e o errado, o preto e o branco, o bem e o mal, maniqueísmo que nasce e se desenvolve na compreensão e na ternura inigualáveis do diretor: a esposa que se divide entre o marido e o amante, entre a paz e a violência, em A Casa e o Mundo; a família que deve optar entre migrar para a cidade ou permanecer na terra dos antepassados em A Canção da Estrada; o pai que descobre a divisão dos filhos entre a honestidade e corrupção em Os Galhos da Árvore; o médico que se posiciona contra os interesses econômicos da cidade em O Inimigo do Povo; Apu, que deve ou não reconhecer o filho em O Mundo de Apu; o casal que desconfia do tio recém-chegado, temeroso de que ele reivindique a herança da família em O Estrangeiro.

Não ter assistido ao cinema ético e Satyajit Ray, como diz Akira Kurosawa, "significa existir no mundo sem ver o sol ou a lua".


Paulo Ricardo de Almeida

 

 



Biswanbhar Roy em A Sala de Música (1958)


Meena Kumari em Sahib bibi aur ghulam (1962)