HOLLYWOOD + ÍNDIA = BOLLYWOOD

"Fábrica de sonhos". O apelido comumente dado a Hollywood está calcado no seu poder de entretenimento e na relação estreita deste com o seu público. Porque a medida da indústria são os consumidores, por mais que em qualquer meio de comunicação, este "público" seja uma abstração incerta e as determinações de um e outro se confundam e se interpenetrem. Assim sendo, a indústria cinematográfica vai sempre procurar a formatação do seu produto em modelos comercializáveis, ainda que os artesãos tenham lá seu espaço para matizá-los de acordo com a sua palheta pessoal. Vendido como uma máquina narrativa sem igual, capaz de fornecer prazer como poucos, o cinema hollywoodiano foi sendo consumido ao longo dos tempos como deslumbrante instrumento de diversão. Mundo afora, sua primazia técnico-industrial e seu fascínio midiático desconcertaram a muitos. Do impulso de lutar contra sua hegemonia ao desejo incontrolável de copiá-lo, diversos foram as cinematografias e os sujeitos que trilharam caminhos a partir da sua presença marcante.

O desejo de seguir o grande exemplo originou inúmeras tentativas de industrialização do setor ao redor do mundo. E talvez nenhuma tenha sido tão bem sucedida quanto a indiana. Num país de amplas dimensões e cultura extremamente diversificada, no qual inúmeras línguas e dialetos dividem o mapa e cujas condições econômicas são complicadas, floresceram diversos pólos industriais moldados à semelhança de Hollywood. Grandes estúdios, star system poderoso, produções vultosas. A forte ligação do indiano com as artes performáticas, notadamente o teatro e a dança, além de uma relação íntima com diversas narrativas épicas e míticas (algumas delas marcando inclusive forte presença em sua religião), delineou um caminho muito próprio para o cinema que ali cresceria.

Em julho de 1896, o cinematógrafo dos irmãos Lumière, montado em Bombaim (agora Mumbai), encontrou um público já bastante acostumado às imagens em movimento da lanterna mágica, que, acompanhadas de sons ao vivo, narrava grandes contos indianos. Harischandra Bhatwadekar, presente na exibição, gostou tanto da novidade que, ao invés criar um circuito para a exibição de mais filmes dos Lumière, resolveu ele mesmo fazer seus filmes de atualidades locais. Já em Calcutá, cidade historicamente mais desenvolvida, econômica e intelectualmente, Hiralal Sen filma trechos de apresentações de peças clássicas, exibindo-os como adendos às próprias apresentações ou levando-os a locais aonde estas não chegavam. De forma bastante curiosa, este primeiro passo do cinema indiano esboçou tendências para os dois futuros pólos de produção mais significativos que viriam meio que se "inverter", com Calcutá enveredando pela produção dita "cinema de arte", com gosto por uma ligação íntima com o "real", e Bombaim pela relação estreita entre cinema e números de dança e música. O que se observa de mais marcante, porém, é o impulso, desde de o início, de desenvolver o meio a partir das demandas e características do país, como uma precoce determinação de tornar a novidade, tão logo aportou naquelas terras, um meio de expressão local, bastante de acordo com a ideologia swadeshi, que advogava o controle da economia indiana pelos próprios indianos, já com a perspectiva da independência. A forte influência das artes tradicionais, da música, da dança e do teatro popular nos primeiros movimentos cinematográficos no país se mostrou decisiva para a futura caracterização da produção, muito ligada a seu público e a estas outras manifestações artísticas. E se houve um grande responsável por isto, assim como pelo lançamento das bases para o florescimento de uma indústria cinematográfica, este homem é Dadasaheb Phalke.

O ano de 1913 marca a estréia do seu primeiro longa-metragem (e também o primeiro do país): Raja Harishchandra. Nacionalista e defensor confesso da swadeshi, Phalke é tido como o pai do cinema indiano, dando nome a um dos maiores prêmios do cinema local. Inspirado pelo filme The Life of Christ, ele dedica-se firmemente a fazer filmes sobre os deuses e deusas indianos. Em seu primeiro filme, ele trabalha, portanto, com a mitologia Hindu, narrando de forma episódica, de acordo com o modelo do teatro popular e do romance da época. O filme foi um enorme sucesso e Phalke prosseguiu com a temática em seus filmes seguintes, abrindo caminho para toda uma tradição que o seguiria. Os papéis femininos eram feitos por homens, pois as mulheres eram proibidas de atuar, e é também o próprio Phalke quem coloca pela primeira vez uma mulher nas telas, já em 1914.

A década de 20 vê pipocarem pólos produtivos, sobretudo no Sul, movimentados basicamente pela iniciativa individual de empreendedores que, embalados pelo encanto local pelo cinema, resolveram construir estúdios, seguindo o modelo consagrado por Phalke, de explorar narrativas mitológicas como o Mahabharata, ou criando grandes narrativas épicas. Até mesmo em Calcutá o primeiro longa é um remake de Raja Harishchandra. Aos poucos vai emergindo também o gênero chamado de "comtemporary social", caracterizado por comentários sociais e que formaria uma forte corrente. A produção aumenta e estabelece desde então uma indústria regular, consolidando um studio system e produzindo já um grande número de filmes – algo em torno de 1200 títulos no período. Em 1931 é lançado o primeiro filme sonoro, Alam Ara, de Ardeshir Irani, falado em Hindi e Urdu (língua clássica utilizada principalmente em textos poéticos e declamações solenes) e que contava com um uso extensivo de números musicais. Sucesso imediato, levando consigo o gosto pela rotina de dança e música em meio à narrativa, ele instalou o som, que rapidamente se espraiou pelos pólos de produção, pela necessidade de transpor os filmes para outros idiomas, impulsionando, desta forma, a industrialização nascente. A prática do remake populariza-se desde já, refazendo em outras línguas os sucessos consagrados. Os filmes foram também se diversificando e desenvolvendo narrativas que tocavam notavelmente em diversos problemas sociais, como diferenças de classe e casta e o casamento arranjado. E embora tratassem os temas de forma bastante romantizada, eles abriram o caminho para a corrente do realismo social que iria se consolidar principalmente no Cinema Novo Indiano, bastante influenciado pelo neo-realismo italiano.

Numa Bombaim que já nutria a maior concentração de estúdios e a maior produção de filmes do país, emerge V. Shantaram. Com filmes bastante polêmicos, tocando em temas como direitos das mulheres e fanatismo religioso, ele foi um cineasta de suma importância para a interessante mescla de questionamentos desta sorte com as conveniências e refrões do cinema comercial ali estabelecido, que se solidificaria na década de 50. O gosto do indiano pelo sentimentalismo encontrou forte eco nos moldes do melodrama, que, coloridos por traços de todos os gêneros cinematográficos consagrados e embalados por números musicais, abriam os braços para a codificação de um realismo com firmes intentos de comentários sócio-político-econômicos. Dos mais incisivos (considerados esquerdistas), como Shantaram, Bimal Roy e K.A. Abbas, ao marcante autoralismo de Guru Dutt e à grandiose de Mehboob Khan, passando pela leveza e bom-humor de Raj Kapoor, são diversas as formas com que este cinema forja sua Era de Ouro. Apelidada em algum momento de Bollywood (junção de Bombaim e Hollywood), esta indústria conhece esse auge magnífico, que se estende pelas duas décadas seguintes, consolidando um modelo de produção não apenas único como impressionantemente bem-sucedido. Os filmes, em sua configuração clássica, apresentam duração média de três horas (com intervalo), forte apelo para o sentimental e mescla de diversos gêneros (comumente chamado de "massala", em referência ao termo dado à mistura de especiarias), além, é claro, dos números musicais, mais ou menos integrados à trama, de acordo com o caso. Alimentados por um star-system de fazer inveja aos áureos tempos hollywoodianos (composto de atores, atrizes, cantores de playback e diretores musicais), sua relação com o público, eminentemente masculino, é de grande proximidade e intimidade. Totalmente integrado à vida da maioria dos indianos, o universo cinematográfico elaborado por esta indústria fornece realmente um amplo espectro de sonhos, uma forte alternativa à realidade nada amena que toma conta das ruas do país.

Embora o nome Bollywood, que originalmente denominava apenas o cinema Hindi, tenha se popularizado a ponto de passar a englobar toda a produção indiana comercial, que segue as características acima descritas, há, desde o início da formação desta indústria, uma grande regionalização, de acordo com as línguas predominantes em cada área. O segundo maior pólo é o relativo à língua Tamil, localizado em Chennai (antiga Madras), na província de Kodambakkam (de onde vem o nome Kollywood). Há também o Telugu (Tollywood), o Bengali, chamado de Tollygunge (um distrito de Calcutá), o Malayalam e o Kannada. A produção Bengali gira mais em torno de estúdios independentes, que procuram dar vazão a preocupações autorais e intelectualizadas, configurando a base do "cinema de arte" indiano. Com circuitos pequenos e visibilidade reduzida, este cinema floresceu bastante nos anos 70, subvencionado pelo governo, com o chamado Novo Cinema Indiano, permitindo a ascensão de nomes como Satyajit Ray, Mrinal Sen e Ritwik Ghatak. Embora separados pelo fator da língua (e das especificidades das culturas locais), estes pólos compartilham uma produção bastante semelhante e, não raro, diretores circulam de um a outro, em geral visando chegar a Bombaim, que não apenas é maior e produz muito mais filmes, como possui mais "glamour".

No início dos anos 80, todo esse cenário, reminiscente da época mais dourada de Hollywood, na qual os rostos dos atores eram tão conhecidos e queridos que sua visão transportava os espectadores para um mundo de fábula no qual nada mais importava, os cartazes pintados à mão ornavam as fachadas de grandes cinemas, cuja enorme tela, encoberta por cortinas vermelhas, contemplava inúmeros assentos dispostos em platéia e camarote, e o que realmente importava era que o público risse, chorasse e vibrasse com as imagens que corriam na sua frente, começou a mudar. Se até ali nem a televisão tinha sido um concorrente de fato nem o cinema estrangeiro, (cuja presença no mercado indiano soma algo em torno de 5%), uma ameaça, o vídeo, disponibilizando num curto espaço de tempo as obras cinematográficas, foi paulatinamente tirando grande parte do impacto desse cinema. O processo, que traz consigo um ar de decadência, tem se agravado nos últimos anos, com o aumento desenfreado da pirataria, a informatização dos trabalhos gráficos e a proliferação dos multiplexes (com seus ingressos mais caros) aliada à especulação imobiliária em cima dos terrenos que ainda abrigam as últimas grandes salas, e, principalmente, o esforço expresso em adequar cada vez mais esta produção ao modelo estrangeiro, seja para fazer face ao cinema americano, que tem ocupado mais e mais salas indianas, seja para torná-la um produto de exportação de fato. Embora o interesse de diversos países por esta cinematografia tão vasta quanto desconhecida tenha aumentado bastante, a resistência ainda é grande. Conhecendo uma distribuição crescente no Ocidente, especialmente nas nações com maior número de indianos expatriados, Bollywood está determinada a conquistar estes mercados, modificando sua cartilha e aproximando-a cada vez mais de um modelo ocidental, motivada principalmente pela crise interna. Os filmes têm sua duração e seus números musicais diminuídos, por vezes mesmo eliminados, e são mais contidos e menos melodramáticos. Os maiores estúdios vêm também alimentando, desde a década de 80, filiais "independentes", abrindo espaço para uma produção diferenciada e para a emergência de diretores que guardam algumas características do cinema comercial, mas buscam diversificar seus filmes, aproximando-os do "cinema de arte" de Calcutá, bem ao exemplo do que ocorre hoje no cinema americano.

Com esta submissão a leis de mercado estrangeiras à lógica que sempre a regrou, esta produção, calcada na importação de um modelo e sua formatação de acordo com as demandas e necessidades do país, vai perdendo a pujança de seu exemplo original. A fusão da tradição narrativa estabelecida pelo cinema americano – utilizada para recontar antigos mitos e épicos, corporificados a partir de uma conceitualização ancestral da forma dramática ideal, que mesclaria dança, gestos em pantomima e drama, e de determinações próprias, como o gosto pelo excessivamente sentimental e a necessidade da obviedade e explicitação da trama para garantir a fruição daqueles que não falam a língua do filme –, para satisfazer um público ávido pelo espetáculo, movido pela vontade de com ele interagir, criou a mais perfeita personificação de um conceito de cultura dinâmico, que pensaria a constituição desta no constante intercâmbio com fatores estrangeiros, ao contrário do modelo identitário e essencialista. Rechaçada durante muito tempo pelo pensamento cinematográfico hegemônico como "não-autêntica" e "vendida", ela surge aos nossos olhos tupiniquins como uma conquista genial e uma solução brilhante para um desejo terceiro-mundista de industrialização do setor. Incrível pot-pourri de influências, Bollywood encontrou uma concretude de manifestação em seus diversos elementos "roubados" (para serem retrabalhados), desde argumentos de grandes sucessos hollywoodianos, até todo o modelo produtivo, adaptado à economia local (os filmes são muito baratos e os ingressos também – 60 centavos de Real) e calcado sempre numa relação de admirável proximidade com o seu público, fiel e apaixonado.


Tatiana Monassa

 

 




Rajendra Kumar, Raj Kapoor e Vyjayanthimala
em Sangam de Raj Kapoor (1964)


Madhuri Dixit em Devdas (versão de 2002)
de Sanjay Leela Bhansali.