ONDE JAZ O SEU SORRISO FUGIDIO?

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Em que momento nasce o cinema de Marco Bellocchio? Suas confusões, desesperos, tristezas? Essa estranha forma de coerência que é também muito de sua política, do rigor absurdante de seu olhar, uma moral inabalável que nem os passos mais incertos, nem as escolhas mais atribuladas parecem capazes de proscrever?

Talvez seja necessário retornar àquele momento ímpar na história do cinema, o ano de 1982 (ano da morte de Fassbinder, de Videodrome, de Passion e Classe Operária), e perceber o que aquele sorriso de Lou Castel ao final de Olhos na Boca – um tanto patético, um tanto esgotado, enormemente triste – significa não apenas para a obra do realizador de I pugni in tasca e O Diabo no Corpo como também para todo um estado de cinema que começa a se desenhar a partir de uma emergência presente nos trabalhos realizados nesta época por algumas figuras do que se convencionou chamar "cinema moderno" – figuras como Robert Bresson, Maurice Pialat, Nanni Moretti, Philippe Garrel, Marco Bellocchio, Brian De Palma, Otto Preminger, Jean-Luc Godard e filmes como O Desespero de Veronika Voss, A Idade da Terra, O Dinheiro, Tenebrae, A Missa Acabou, Cão Branco, Querelle, Um Tiro na Noite, Bianca, Aos Nossos Amores e Olhos na Boca.

Não é intuito deste texto jogar aleatoriamente estes nomes e filmes (alguns famosos, outros menos) para se buscar algum tipo de empatia ou meramente provocar no leitor uma reação a partir daquilo que talvez desconheça. Estes filmes representam de uma maneira muito forte a ressaca de uma geração – composta entre vários outros por estes cineastas – que se lançou na aventura de criticar e mesmo repreender o século em que nasceram, através justamente da arte que fez a história e o conhecimento desse século; compreender o que foi e principalmente o que não foi realizado por esta geração é operação essencial (e apenas essencial) para traçarmos um percurso, um adiantamento da obra de Bellocchio. Uma razão para tudo isso: poucos cineastas dependeram tanto deste momento e destes acontecimentos para formarem não só um ponto de vista como um campo, um lugar a ser explorado e mediado – a saber, a Itália da segunda metade do século XX.

Historia/dor (ressurreição)

Voltemos a Lou Castel, e mais especificamente ao seu sorriso. Debaixo de um chuveiro seu corpo desnudo, barriga flácida e silhueta abatida, ombros relaxados, suas mãos tirando de seu rosto resquícios de uma máscara que talvez estivesse usando a mais tempo que imaginava, a própria máscara se esvaindo na água que limpa e renova... Nada de purificação (Bellocchio está bastante longe de Shyamalan, apesar das semelhanças habilmente apontadas pelo colega Claudio Szynkier entre Henrique IV e A Vila), nada de transcendência ou indulgência à vista neste que é dos mais pessoais dos filmes: essa água e esse banho nada mais são que toda a arte de Bellocchio, a descoberta de um cosmos que jamais exclui a esfera do real, que torna precisamente essa esfera em objeto chave da admissão eterna e necessária do abstrato, daquilo que não se reconhece deste real. O banho que provoca em Castel este sorriso é ao mesmo tempo o enorme peso que cai sobre seu corpo (a aceitação de sua condição fantasmática, de sobrevivente/não-sobrevivente de todos os grandes movimentos e tentativas dos 60 e 70) e a água que percorre e tira deste homem tudo que ele carrega da desilusão, do niilismo, da amargura e agonia do irmão gêmeo suicida que pôs em ignição seu drama (que também é todo o drama do filme). Olhos na Boca nada mais é que De Punhos Fechados feito em 1982 – com a diferença que o mesmo diretor e o mesmo protagonista do filme de 1965 são, por volta de 1982, outros, e é a partir deste fato que as diferenças entre os dois filmes surgem de forma a jamais reconciliá-los. O sorriso de Lou Castel não representa de forma alguma uma simples mudança de direção nem muito menos uma forma tépida e conformista de recognição; este sorriso é simplesmente a passagem de um filme que se encerrava com a morte feérica e lancinante de seu protagonista para um outro filme, um que talvez termine com um banho, uma amante grávida, olhares repletos de dúvidas, cansaço, a liberação das culpas do passado não pelo sumiço destas num limbo imemorial mas sim pela verdadeira batalha travada com estas culpas durante todo o filme. "Itália 1982" é o que Bellocchio parece querer nos dizer, com a mesma mescla de ambição e simplicidade com a qual Rossellini (a)firmava um Alemanha Ano Zero e Glauber um Maranhão '66.

O fato é que Bellocchio está com os punhos cerrados, e ele os mantém desta forma desde 1965. Seu percurso vem sendo desde então bastante árduo e os caminhos escolhidos jamais foram os meramente convenientes ou aqueles que já estavam lá – filmes sobre revoluções não são feitos a partir de involuções, de imposturas (pensemos no filme mais recente daquele outro italiano que surgiu junto com Bellocchio, por volta dos 60, e que apesar das similitudes entre as obras seguiu um caminho bastante diferente), de uma atitude que não seja ela mesma perturbadora. Então o que Bellocchio propõe de tão confrontante, tão agitador? A busca, a necessidade de algum tipo de coerência justamente onde coerência não há ("... se estou de fato no terreno das revoluções ou no da Itália pouca coisa muda para mim", parece que Bellocchio nos diz filme após filme), e a subseqüente dor que surge – no corpo mesmo de seus personagens ou nos reflexos de suas ações – da busca incessante por este tipo de coesão, jamais possível ou alcançável. Por que? Por tudo aquilo que o diretor vem sistematicamente filmando desde De Punhos Fechados: estando à direita ou à esquerda, sendo um pequeno marginal ou uma celebridade, no domínio social ou psicológico, a única alternativa é o confronto. Confrontar aqueles que detém o poder (o Conde Bulla de A Hora da Religião, representante daquilo que existe de mais enraizado e tradicional na Itália), aqueles que detém o poder e pretendem que não (os terroristas da esquerda italiana em Bom Dia, Noite), confronto com o próprio poder (as mães, as autoridades, a família, o país, imagens santas, figuras estas que povoam este universo tão italiano que Bellocchio instaura filme após filme), com tudo que é colocado e imposto como natural, arraigado, procedente, inquestionável (não surpreende, portanto, que o diretor não tenha muito interesse em distinguir os terroristas de Bom Dia, Noite do pequeno fascista que decide matar a mãe e o irmão doente mental em De Punhos Fechados).

Insurreição

Jamais qualquer outro filme – nem o melhor de Cronenberg, nem Fassbinder no pico de sua forma – foi tão longe em sugerir e efetivamente propor a dor e a doença como instâncias de pura revolta, liberação e mesmo necessidade como De Punhos Fechados. Para Bellocchio não basta situar seu jovem protagonista como um piccolo borghese às voltas com alguns clássicos dilemas do momento em que seu filme foi realizado no século passado – o clamor de um marxismo confuso vs. a má consciência dos herdeiros de uma aristocracia, burgueses ou latifundiários. Que este jovem símio (conforme o filme nos introduz o personagem interpretado por Lou Castel) é descendente de uma família burguesa e latifundiária é coisa bastante evidente (eles moram numa grande casa cercada por algumas colinas); que ele é de todas as formas possíveis um "herdeiro" Bellocchio torna claro de forma bastante direta (corre na sua família um largo histórico de doenças – a mãe é cega, o irmão mais novo doente mental, ele sofre de epilepsia). A originalidade de Bellocchio – podíamos falar mesmo de audácia – está no uso de um cruzamento entre uma iconografia hiper-cristã (o sangue, a família, a herança da carne e seus pecados) com um tipo de pré-maoísmo (a célula criada no seio da família entre Giulia e Sandro, irmão e irmã; as pequenas conspirações e tramóias, as compulsões e indulgências fomentadas por todos naquela casa), uma espécie de revolta em seu estágio embrionário, mais incerto e desacertado (que acaba resultando nos assassinatos da mãe e do irmão).

Ao final do filme Bellocchio dá o passo além, fazendo a crítica do seu sistema de valores e já antecipando uma crítica aos sistemas de outros cineastas com percursos semelhantes ao seu (o Glauber de Deus e o Diabo, Bertolucci com seu Antes da Revolução, Skolimowski em Ato Final, Godard com A Chinesa). O jovem corpo do seu protagonista (e vale lembrar que Bellocchio, quando realiza este filme, é um realizador de 26 anos), despreparado e despreocupado, inconseqüente e amoral, ainda não é capaz de acomodar todo o desejo de insurreição e transtorno, de total reforma e destruição que o atordoa, que o persegue independente do que faz e das conseqüências de seus atos. A crise epiléptica que mata Sandro/Lou Castel ao final de De Punhos Fechados é o prenúncio, o adiantamento mesmo do fracasso de 68 e das não-concretizações da geração à qual o diretor automaticamente se filia quando realiza este primeiro trabalho. Bellocchio vê tal fracasso como o de um corpo frágil, um corpo que exige dele mesmo algo que simplesmente não pode ainda conter nem realizar. A doença de Sandro, a epilepsia que se transmuta em verdadeira epifania na crise final que o ataca, é justamente o impasse entre esta ânsia pela destruição de todos os valores tradicionais e morais (Sandro comete o erro de equiparar uma coisa à outra) e a cobiça pelo universo que escora e representa todos estes valores (matando a mãe e o irmão mais novo Sandro pode usufruir da maneira que bem entende da casa da família, de uma independência monetária, do poder capital, da influência que exerce sobre os outros irmãos, transformando-se no verdadeiro homem da casa).

É também nesta cena final que testemunhamos a gênese de Olhos na Boca e A Hora da Religião em particular e do restante da obra de Bellocchio numa forma mais geral: a irmã de Sandro, Giulia, que compactuou com o irmão durante todo o filme, tem em suas mãos a medicação que evitaria uma crise de epilepsia mais séria. Ela precisa tomar uma decisão – puramente moral – em meio à crise do irmão e à própria crise por ele instaurada: dar continuidade e suporte à trajetória assassina de Sandro ou fazer isso parar de uma vez por todas? A agitação de Sandro alcança um ápice – insuportável, no sentido mesmo de que seu corpo não pode suportar – e Giulia acaba por deixar esta crise prolongar-se até sua conclusão natural. A política aqui está menos no fato da irmã mais velha (e consciente) dar um basta numa situação mais e mais perigosa e descontrolada (o que realmente a garante que ela não será a próxima vítima de seu irmão?) e mais no fato dela permitir que toda a loucura e paranóia de seu irmão encontrem o fim mais adequado, o único fim possível para um espírito sustentado fundamentalmente pela tragédia e pelo drama (lembrar que quando Lou Castel reaparece em Olhos na Boca ele interpreta um ator, justamente alguém que ganha sua vida do drama e da exposição deste). Trata-se de um dilema que continuará afetando os personagens de Bellocchio, de uma forma de outra: como ser coerente onde a coerência não tem como existir? Como a irmã pode dar fim à revolta psicótica de seu irmão não se transformando ela mesma numa assassina, não corroborando com e tomando parte desta flama de revolta que iniciou todo o percurso de mortes e transtornos, de mudanças radicais e extremas? É desta forma que o Giovanni de Olhos na Boca e o pintor Ernesto de A Hora da Religião devem tanto a Sandro quanto à irmã Giulia: tanto Giovanni quanto Ernesto são irmãos, e pagam caro por isso (Giovanni retorna à cidade natal para o sepultamento do irmão gêmeo que cometeu suicídio; Ernesto descobre certo dia que a mãe – assassinada pelo irmão louco – será canonizada pela Papa); tanto um quanto o outro precisará reaver seu passado, suas desavenças... Os erros, os relacionamentos, as dores, os medos, as paixões: nada escapa desta arte do confronto, da crise em processo que é o espírito destes personagens e de todo o cinema de Bellocchio.

A Hora da Religião

Ou O Sorriso de Minha Mãe... Ou onde o cinema começa. Um cinema novo, estarrecedor, desencantado, vital, difícil, cansado, suicida, jovem, apressado... Um cinema ainda impossível – como o de Sganzerla, como o de Monteiro, como o do Glauber de A Idade da Terra –, um cinema para o futuro apenas (daí a necessidade de se encarar Bom Dia, Noite como um intervalo, uma ocasião para repouso e ponderação), e que talvez por isso mesmo seja o único que valha algum esforço, qualquer esforço da parte de Bellocchio. É aqui que surge uma resposta para a pergunta que dá início a este texto. Foram necessários 37 anos e mais de 20 filmes para se chegar à perfeição absoluta de uma forma que é ao mesmo tempo etérea e real; da organização e ordenação de um mundo onde inquietude e impaciência são valores absolutos que crescem com o tempo e sobrevivem a todas as mudanças. A beleza deste mundo está na própria matéria que o torna imperfeito, e Bellocchio encontra na encruzilhada de seu protagonista a representação ideal deste mundo: o choque inevitável entre a realidade brutal da qual não é possível esquivar-se (Itália, Igreja Católica, família, Conde Bulla) e a evasão desta realidade por um objeto que a princípio não faz parte da ordem irredutível que se chama Itália. A coerência, para retomar um termo repetido por Ernesto nas conversas que tem com seu filho, é justamente a enorme ambição que faz este homem seguir contra tudo e todos durante o filme. Já não se trata mais de um percurso a ser traçado, como em De Punhos Fechados e Olhos na Boca (ou como no principal herdeiro de Bellocchio, Nanni Moretti): Ernesto tenta encontrar um estado de lucidez total através de uma entrega irrestrita ao lúdico (os momentos partilhados com o filho; os encontros com a professora de religião), ao soturno (o primeiro embate entre Ernesto e o Conde Bulla na seqüência da festa; a cena em que Ernesto é conduzido ao local do duelo e com ele passeamos por uma Roma absolutamente fantasmagórica), ao evasivo (um vagar que não apenas não o leva a lugar algum como também o faz girar em falso – lembrar das cenas em que Ernesto é transportado por carros, sempre conduzido por alguém e sem jamais estar ao volante para dirigi-los)... No fim das contas, a tentativa de Ernesto vai na direção dessa confiança em coisas que não necessariamente pertencem ao domínio do lógico, coisas que não são nem um pouco nítidas e que no entanto são seus únicos suportes no empreendimento insano que arrisca por, entre outras coisas, seu próprio filho.

O círculo se fecha. O filho, agora, é aquele que precisa ser salvo. E o personagem bellocchiano é também um pai agora – e um pai responsável, pois sabe que acompanhando os passos de seu filho poderá talvez adiantar um pouco esse mundo ulterior algumas vezes entrevisto à mesa de trabalho, no computador; ou na vontade intensa de apaixonar-se pela professora de religião do filho, pela cogente política do ato inclusive (está se separando da esposa mas mantém o vínculo da família, em grande parte para não perder o contato com o filho); no imperativo de se falar um "Va' fa' un culo" a alguma autoridade – nobreza, cardeais, esposas, tias, patrões – com a voz um tanto amarga e seca. A coerência, mais uma vez. Se no cinema de Bellocchio todos os filhos haviam sido até então nada além de ressentidos e descrentes nada pode ser mais revelador que a sugestão dada pela figura de Ernesto: a de que talvez esses recalcados, em algum momento ou em outro, tenham feito suas revoluções íntimas e pessoais dentro de suas casas, sendo bons pais, interrompendo uma herança que não lhes interessava e contra a qual quase sempre – e inevitavelmente – se rebelaram. Talvez Bellocchio tenha adiantado um desenho de tudo isso ao final de Olhos na Boca, não com aquilo que filma mas sim com algo que talvez estivesse se preparando para (ou mesmo se ensinando a) filmar – Giovanni interpretando o papel de pai do filho de seu irmão morto, algo que no filme está em gestação mas que talvez resulte naquilo que está sendo posto em cena em A Hora da Religião.

O filho e o pai. Um verdadeiro ensaio sobre esses dois componentes e a relação entre eles podia ser escrito a partir da obra de Bellocchio (e a verdade é que já foram escritos – inclusive pelo próprio Bellocchio, a ver Bom Dia, Noite e Nel nome del padre), mas um capítulo novo é aberto com A Hora da Religião, um capítulo que torna necessária a manutenção – mais até que a revisão e reflexão – de todos os capítulos anteriores, que adianta e acelera um processo que o próprio diretor vinha desenvolvendo com muito zelo e rigor em mais de 35 anos. O filho, este já teve como matar e salvar o pai (caso de Bom Dia, Noite), mas em A Hora da Religião Bellocchio dispõe toda a questão do matricídio de forma ainda mais arriscada e obtusa. O filme se inicia com a esposa de Ernesto e seu filho; a esposa, em primeiro plano e dentro de casa, está sentada, lendo um catálogo com as obras de Ernesto e chorando algumas lágrimas; o filho, ocupando o fundo do plano e solto no jardim da casa, andando de um lado para outro, se mostra inquieto com algo, como se estivesse afugentando uma abelha que o ataca. A mãe percebe a movimentação do filho, que diz a alguma coisa não visível "Vá embora!", "Deixe-me em paz", "Não me perturbe", "Saia da minha cabeça". A mãe se precipita em direção ao jardim, procura, e vê que o garoto se recolheu em uma pequena casa de vidro, como que para se esconder. Ele segue falando e gesticulando contra esse algo que não é visível aos nossos olhos e aos de sua mãe – ela o observa com certo espanto –, até que sua mãe pergunta "Com quem está falando?" – ao que o garoto responde "Com Deus. Eu estava lhe dizendo para me deixar em paz. Ele está por tudo, e por isso não sou mais livre, nem por um segundo". "Livre para quê?" é a pergunta que a mãe faz imediatamente após essa afirmação. À resposta do filho a mãe reage com um sorriso, e é nesse momento que tem início uma das ficções tecidas no interior do filme – por toda a família de Ernesto e por sua esposa. É precisamente a existência deste universo ficcional – um falso entrecho de uma canonização ilegítima criada por essa família – que o tal "sorriso da mãe" preconiza, anuncia e torna visível.

Após essa cena inicial somos levados à casa de Ernesto, e não haverá quaisquer resquícios de metáforas e símbolos (algo, aliás, surpreendente para um filme assinado Marco Bellocchio) nesta passagem de um campo para outro, de uma casa para outra, de um pai para outro: pois Ernesto será aquele que fará tudo que lhe é possível para tirar daqueles braços aquela criança, que dará a esse 'sorriso' algumas razões para não voltar a se manifestar. É todo o esforço de Ernesto no filme, e é também um pouco do que Bellocchio vem fazendo ao longo de sua carreira. Observar, por exemplo, como a gestualidade do filho de Ernesto na primeira cena do filme adianta e antecipa à percepção do espectador a agitação que será vista mais tarde em Egidio, o irmão matricida – há em ambos uma inquietude, um 'mexer com os braços' que tenta tato justamente com esse invisível plenamente visível, com essa partícula onipresente que no filme se chama Deus e que para Bellocchio se chama e sempre se chamou Itália. A imensa contemporaneidade do cinema de Bellocchio está em partir desta primeira fagulha combativa do filho de Ernesto para se chegar progressiva a naturalmente ao que poderia ser o estágio último desta ação inicial, àquilo que partindo de Skolimowski poderíamos chamar de "ato final" e que Bellocchio percebe com imenso pesar na figura abatida e arruinada do irmão assassino de Ernesto – alguém que não tinha outra escolha senão a pior forma possível de um acerto de contas. Esse intervalo que leva do filho ao irmão e de volta ao filho se transforma para Ernesto numa oportunidade única e privilegiada de atrelar suas reflexões (acerca de seu irmão, dos erros do passado, da desgraça que caiu sobre sua família) às suas ações (desmascarar e interferir diretamente nas mentiras da família e na relação de seu filho com isso tudo). Com tudo isso Bellocchio finalmente está pronto para filmar algo que ele não podia em 65 ou em 82: a história de um pai. A história de um pai que é também um filho e que conhece de forma dolorosa toda a amargura que isso pode ocasionar, que trava a única batalha possível para que seu próprio filho venha a ter todas as ferramentas necessárias para não se transformar em um 'bom filho', em um paranóico (como Egidio) ou em um pequeno acomodado (seus outros irmãos) que não consegue seguir seus próprios passos por não mais ter passos a seguir.

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Em 1966, no artigo que dedicou a De Punhos Fechados, Jean-André Fieschi escreveu: "Uma vez que os demônios tenham sido exorcizados, outros filmes talvez mostrarão a possibilidade prática de uma libertação. Estes também serão filmes políticos". Em algum momento ou em outro esses filmes se chamaram O Sucesso é a Melhor Vingança, Aos Nossos Amores, Bianca e O Vento da Noite. Hoje eles talvez se chamam A Hora da Religião e Bom Dia, Noite... Mas um dia já precisaram se chamar Gli occhi, la bocca e Henrique IV, De Punhos Fechados e A China Está Próxima, da mesma forma que Ernesto um dia se chamou Giovanni e Giovanni um dia se chamou Pippo (os irmãos gêmeos de Olhos na Boca), que o Egidio de A Hora da Religião nada mais é que o corpo ressuscitado do jovem e fatigado Sandro de I pugni in tasca. Entre os corpos mais rigorosos (os de A Hora da Religião) e outros mais cansados (por exemplo, os de Em Nome do Diabo ou O Processo do Desejo), Bellocchio vem fazendo o que Fieschi premonitoriamente adiantou em seu texto sobre o que estava por vir na obra do cineasta italiano – dar, em um único golpe, vazão e corpo a uma possibilidade prática de política, de ser e se fazer política nos escombros ainda presentes do século passado (como em Bom Dia, Noite) ou naquilo que começa a se insinuar deste novo século (como em A Hora da Religião).

O que esperar agora de Marco Bellocchio? O corpo de Sandro não podia conter todo o desejo de revolta que era sua ambição final, mas talvez algum dia o corpo do jovem Leonardo Picciafuocco possa. Talvez seja exatamente isso que Bellocchio consegue com A Hora da Religião: a aliança indissolúvel entre todos esses fragmentos que na realidade são e sempre foram um só. Partindo da grande invenção do corpo de Sandro/Lou Castel, podemos ver como era simplesmente necessário fazê-lo retornar como o fantasma e anjo caído Giovanni (Lou Castel pela última vez) para que depois esse espectro pudesse encontrar uma forma fincada de forma plena na carne (Sergio Castellitto, que já havia sido a voz italiana de Lou Castel em Olhos na Boca), uma forma final para tudo aquilo que esse organismo traz de um passado nebuloso e de anseio por uma batalha que ainda não foi concluída.

"Uma vez que os demônios tenham sido exorcizados, outros filmes talvez mostrarão a possibilidade prática de uma libertação. Estes também serão filmes políticos". Afinal de contas, o que são as histórias de Leonardo e seu pai Ernesto em A Hora da Religião, do Sandro de I pugni in tasca e do Giovanni de Olhos na Boca senão esses outros filmes? São precisamente esses os filmes que podemos continuar esperando de Bellocchio.


Bruno Andrade

 

 


Lou Castel e Michel Piccoli em Olhos na Boca (1982)


Sergio Castellitto e Chiara Conti em A Hora da Religião (2002)