"Herói consciente de uma luta mostrada
ou herói inconsciente de uma luta a ser lido
na sua ausência?". Essa questão que
nos colocamos a propósito do herói positivo
recebe respostas de todas as partes e, sobretudo,
da Itália. A ascensão mesma das lutas,
a necessidade para os cineastas engajados de mostrá-las,
de nelas implicar "personagens", põe
tanto a eles como a nós uma série de questões.
Podemos abordar suas respostas segundo dois eixos:
1. A utilização da cena do filme como
modelo reduzido do todo social. Logo, necessidade de
ali inscrever todas as classes.
2. A utilização de um tipo relativamente
novo de personagens (e de atores), tais como Montand
ou Volontè.
Uma cena que resume e permite ler todas as outras,
um ator "alheio à classe" que,
de um filme a outro, faz todos os papéis da
luta de classes. Volonté aqui trabalhador,
lá grande industrial. Montand intelectual de
esquerda ou agente da C.I.A., etc. Esses dois fatores
de unificação formam o pano de
fundo, comum a todos os filmes "políticos",
franceses e, sobretudo, italianos. É a partir
desse fundo comum que os cineastas podem se entregar
mais e mais à análise de situações
concretas em que eles não escondem mais os referentes
históricos reais. A força dos cineastas
italianos é não mais ter medo "de
chamar as coisas pelo seu nome" à diferença
dos franceses ainda tímidos e alusivos sempre
que se trata de política.
No cinema italiano, os dois filmes recentes de Marco
Bellocchio, o filme de autor (Nel Nome del Padre)
e o filme comercial (Sbatti il Mostro in Prima Pagina),
são talvez os dois filmes mais avançados
hoje, o primeiro na descrição minuciosa
de uma cena (de um A.I.E.) em todas suas determinações,
e o segundo na colocação no espaço
do personagem de Volontè, "monstro"
como se diz "monstro sagrado", simulacro bastante
apurado de herói positivo.
Dizer que esses dois filmes são "avançados"
não quer dizer de modo algum que seu conteúdo
político seja avançado. Pretendemos com
isso dizer que, à diferença de Rosi ou
Petri, cineastas progressistas, humanistas, logo necessariamente
flous e ambíguos, Bellocchio afirma nos
seus filmes a ausência de toda alternativa positiva
à crise que abala a sociedade italiana e à
ascensão para ele irremediável do fascismo.
Eis a mensagem de seus dois filmes. Esse pessimismo
confesso comanda tanto o filme "artístico"
(Nel Nome del Padre: tema da aprendizagem do
poder e fascinação pelo fascismo concebido
como uma escolha deliberada) quanto o filme "comercial"
(Sbatti il Mostro in Prima Pagina: tema do exercício
de uma profissão nas suas relações
com o poder e fascinação pelo fascismo
concebido como destino inelutável). Nos
dois filmes, uma mesma análise de classes justifica
esse pessimismo.
Notemos que se trata de um dos pontos fortes do cinema
italiano, comparado ao francês: tentar ter um
ponto de vista global sobre a sociedade italiana, partir
de um fait divers não para espelhar um
segundo-plano político furtivo (como Chabrol
em Les Noces Rouges), mas para remontar às
causas mais profundas. Enquanto isso, a amplidão
do "olhar", quer seja ele sobrepujante, analítico
ou profético, não deve nos dispensar de
pôr a questão: qual é a posição
de classe que comanda esse olhar? Fazer a economia dessa
questão é cair no revisionismo que pensa
que a partir do momento em que um artista "olha
para o mundo, ele só pode extrair coisa boa".
No caso de Bellocchio, seu pessimismo, quiçá
seu niilismo, testemunha uma posição de
pequeno burguês revoltado. A esse aspecto geral,
é preciso somar as características próprias
à Itália e que dão a essa revolta
sua coloração e seus objetos: anticlericalismo
blasfematório e problemática sexual indissoluvelmente
ligados, tendo como musculatura a família (De
Punhos Fechados). Há também as determinações
próprias a Bellocchio: intelectual pequeno-burguês
radicalizado, aliado de longa data do movimento marxista-leninista
italiano e sem dúvida decepcionado com ele.
O colégio religioso de Nel Nome del Padre
é ao mesmo tempo:
- a condensação de vários A.I.E.
no seio da Igreja italiana, ao mesmo tempo aparelho
religioso e aparelho escolar, aparelho ao mesmo tempo
ideológico e repressivo (sob a forma da repressão
sexual, principalmente) diretamente ligado às
classes dominantes (o colégio é reservado
às crianças menos dotadas da burguesia
ou do campesinato rico);
- uma metonímia de toda a cena social
italiana;
Nós não falaremos tanto aqui do primeiro
aspecto, onde o talento de Bellocchio é o mais
inegável, quanto do segundo, que induz uma dupla
leitura do filme.
É preciso primeiro notar que o colégio
é de pronto flagrado num estado de crise. Essa
crise, da qual não sabemos se ela é revolucionária
ou se trata-se de uma simples crise de crença,
remete à Itália de hoje: crise econômica
(fim do boom), política (fraqueza do aparelho
político atual) e ideológica. Colégio
velho demais, obsoleto, inadaptado, até anacrônico
e aberrante, que por todas as evidências deve
ceder espaço a um outro colégio, moderno,
renovado, adaptado às demandas. A grande força
de Bellocchio é aqui (à diferença
de Loach ou de Damiani) a de não filmar "sujeitos
em crise em um aparelho que os trata com indiferença",
mas sujeitos em crise em um aparelho ele mesmo em crise.
Tão bem que as situações que ele
filma são sempre interpretáveis em termos
políticos.
De saída, o filme estabelece uma distinção
importante entre os personagens: aqueles que são
conscientes da crise que atravessa o colégio
(e eles, por conseguinte) e todos os outros, entranhados
em seus fantasmas e incapazes do menor ponto de vista
de conjunto, da menor tomada de consciência. Essa
oposição consciente/inconsciente é
capital para Bellocchio. Pode-se mesmo dizer que essa
contradição antecede para ele a contradição
política. Ela explica a sua tendência a
fantasmatizar personagens que escolhiam o fascismo com
todo conhecimento de causa. Nessa ideologia do "faça
não importa o quê, mas ao menos assuma
que faz", esse não importa o quê nunca
é precisamente não importa o quê
(cf. Argoud, em Français, si vous saviez).
Em Nel Nome del Padre, os elementos conscientes
estão ao número de três: Angelo,
o futuro "fascista" ou o fascista do futuro,
filmado por Bellocchio como um anjo caído e fascinante,
fortemente ligado à figura do Pai (anjo revoltado);
Franc, o ideólogo de esquerda, fortemente ligado
à figura da Mãe, o eterno segundo cujas
únicas armas são seus bons sentimentos
e suas veleidades de ação; e Salvatore,
o trabalhador consciente, personagem enigmático,
como que "caído do céu" na ficção.
A crise do aparelho (o colégio religioso) adquire
no decorrer do filme dois aspectos: um aspecto "revolta"
dos estudantes e um aspecto greve dos funcionários
do colégio. De um lado, reivindicações
vagas, confusas contra um aparelho repressivo e debilitante,
do outro, uma luta por melhores condições
de trabalho. O filme poderia se resumir assim: os dois
movimentos não se juntam, não se articulam
e fracassam, cada um de seu lado.
Por que esse fracasso? É aqui que o exemplo do
colégio religioso escolhido por Bellocchio se
revela não tão inocente, não tão
neutro quanto parece. A dupla leitura constante, que
permite ler através da crise do colégio
aquela da Itália, pode se efetuar nos dois sentidos.
O colégio tem uma particularidade: localizado
inteiramente sob o signo da degenerescência, ele
apresenta dois grupos: os estudantes e os funcionários,
que têm em comum o seguinte: eles estão
do lado do irracional, do inconsciente. Os estudantes,
filhos degenerados da burguesia ou da aristocracia territorial,
adiposo-genitais, disformes, psicopatas, cancros, são,
se podemos dizer, "finalizados" pelo aparelho.
Os funcionários: elementos sem classe do lúmpen-proletariado,
empregados por caridade cristã, cerzidos de justiça,
enfermos, mendigos, débeis, completamente incumbidos
e explorados pelo colégio. Se for da análise
de classe desenvolvida no microcosmo que é o
colégio que se trata, é preciso admitir
que ela apresenta uma burguesia tarada e um proletariado
patológico, duas massas inconscientes e irracionais,
sobre as quais um pequeno número de elementos
conscientes almeja uma conquista.
Angelo, Franc e Salvatore querem intervir na crise do
colégio. Mas suas metas são diferentes.
Angelo impulsiona a sublevação dos estudantes
a fim de obter reformas radicais para o colégio,
fazer dele um aparelho eficaz, racional, moderno. Salvatore
representa a tentativa derrisória de um líder
trabalhador imiscuído no lúmpen, personagem
destinado, sobretudo, a equilibrar sobre a esquerda
a força de fascinação representada
por Angelo. Franc compreende tarde demais que é
preciso ligar os dois movimentos de revolta e fracassa
miseravelmente em fazê-lo.
Por que esse fracasso? Temos a sensação
de que Franc e Salvatore se lançam a alguma coisa
sobre a qual eles não têm domínio:
o irracional, o aspecto imprevisível, telúrico
da sublevação das massas. Se Angelo aparece
como o único não-perdedor do filme (logo
como o ganhador), é porque ele domina a contradição
racional/irracional (e ele a domina porque ele a vive
intensamente: a um só tempo anjo e animal). Cantor
da eficácia, do rendimento, da planificação,
adversário obstinado das superstições
e do esbanjamento, ele é igualmente capaz de
fazer falar (e de falar) tudo aquilo que há de
instintivo, de primário, nos outros. Ver a esse
respeito a cena em que ele confronta a Franc suas visões
sobre o espetáculo teatral que eles vão
montar: Franc gostaria de torná-lo um meio de
luta ideológica, de crítica, de denúncia;
Angelo defende a tese de que é preciso, ao contrário,
aterrorizar o público.
O último plano do filme é, portanto, para
ser visto com seriedade. Vemos Angelo, que acaba de
abandonar o colégio, ao volante de um carro.
Ao seu lado, Tino, um dos trabalhadores do colégio,
que atravessou todo o filme num estado de delírio
constante (delírio nutrido de ficção-científica
e de quadrinhos). Certamente se dirá que naquele
momento Bellocchio, por um "sutil" travelling
para trás, estabelece um recuo crítico
em relação àquilo que mostra. Mas
não cremos mais o bastante na virtude crítica
de tais procedimentos que se assemelham muito mais a
negações. Principalmente quando o cineasta
está empenhado em eliminar de seu filme toda
outra conclusão. A cumplicidade de Angelo e de
Tino se dá a ler como uma aliança de classe
concluída entre o chefe natural e o lumpen-proletariado,
a aliança da racionalidade imperialista e tecnocrática
e da irracionalidade débil. Para chegar lá,
foi necessário que Bellocchio, ao se servir da
equação colégio = Itália,
tivesse tomado a burguesia como tarada e o povo como
patológico. Compreendemos que, ao dispor todos
os elementos de sua análise nessa óptica,
Bellocchio aporta ao caráter inelutável
do fascismo.
Com Sbatti il Mostro in Prima Pagina, passagem
do modelo abstrato a uma situação concreta,
passagem também do filme de autor ao filme comercial.
Mas a mensagem permanece a mesma. A inelutabilidade
do fascismo é reforçada ao fim de Sbatti
(plano da lama que avança). A aliança
de classe que se vê concluir em Nel Nome del
Padre (fascismo tecnocrático/lúmpen
manipulado) entra nos fatos. É o industrial frio
e inumano de Sbatti que financia as milícias
fascistas, que realiza o programa de Angelo: aterrorizar
a burguesia com mises en scène traumatizantes.
O instrumento desse terror não é mais
o teatro, mas um jornal de grande tiragem que, longe
de informar sobre o real, cria-lhe todas as peças.
A aliança ainda subjetiva entre Angelo e Tino
corresponde à aliança de fato, objetiva,
entre o industrial (que possui o jornal) e o verdadeiro
autor do estupro (grande leitor do jornal e do qual
o mínimo que se pode dizer é que ele é
apanhado numa total alienação sexual e
religiosa). O aparelho não é mais o colégio,
mas uma parte dos A.I.E. Informação: um
jornal, um grande cotidiano (lá também,
na descrição do funcionamento do jornal,
o "como se fabrica a informação",
Bellocchio é ao mesmo tempo eficaz e brilhante).
Enfim, ponto comum aos dois filmes: ao personagem de
Franc corresponde aquele de Roveda, o jovem jornalista
íntegro que crê na objetividade da informação
e na democracia. O personagem de Roveda, rotulado, estereotipado,
hollywoodiano, é filmado sem nenhuma simpatia
por Bellocchio. Deve ser somente ele quem descobre a
verdade, quem toma consciência; temos o sentimento
de que ele conduz, com uma ingenuidade imperdoável,
um combate de retaguarda cujo peso não fará
tanta diferença na balança. Para Bellocchio,
Roveda não é, não pode ser um herói
positivo, mesmo discreto.
Pois é justamente de positividade que tudo é
igualmente questão nesse filme pessimista. E
é lá que reside a contradição
que Bellocchio deve resolver. De um lado, ele quer
também botar medo em seu público mostrando-lhe
que o fascismo é próximo e inevitável.
Mas de outro, ele sabe que uma tal mensagem (totalmente
negativa) passa diferentemente num filme de autor e
num filme comercial. No filme de autor, a falta de positividade
é compensada pelo fato de que tudo é visto
pelos olhos de alguém (o autor) que se torna
o principal referente do filme, e se quisermos, um tipo
de herói positivo (positividade do enunciado).
No filme comercial, o autor deve se apagar atrás
das convenções do gênero e o cinema
político se tornou um gênero e da necessidade
de inscrever personagens positivos (positividade da
enunciação). Em outras palavras, para
ancorar, para dirigir o desejo do espectador que veio
mesmo para ver o "afrontamento de bons e malvados",
Bellocchio deve justamente estabelecer no seu filme
um tipo de "positividade relativa" ou ainda
gradações nos heróis negativos.
Não é propriamente um problema formal.
Ou ainda, é através da contradição
filme de autor/filme comercial que podemos entender
que o niilismo, o catastrofismo de Bellocchio talvez
não seja tão radical assim. Essa "positividade
relativa" não era induzida por ele (à
diferença de um Costa-Gavras) a repousar sobre
o personagem tipificado do "democrata sincero",
jornalista apaixonado pela verdade, tipo Roveda. Ao
mesmo tempo, notamos que há em Sbatti dois
elementos ausentes de Nel Nome del padre: o patrão
do jornal (Bizzanti, interpretado por Gian Maria Volontè)
e os esquerdistas.
Seremos tentados a crer que Bellocchio, antigo militante
de extrema-esquerda, vá fazer desses últimos
os portadores da positividade. Isso seria lógico,
mas é impossível. De fato, se ele fazia
seu filme do ponto de vista deles, ou seja, do ponto
de vista da revolução proletária,
Bellocchio não poderia mais defender ao mesmo
tempo a teoria do fascismo inelutável.
Podemos pensar que, sem levar em conta sua linha política,
Bellocchio como Petri ou Costa-Gavras vá
mostrá-los como uma força moral, generosa
e mesmo simbolicamente positiva a despeito de sua confusão
e de sua ineficácia. Ele não faz nada
disso: os esquerdistas são filmados em Sbatti
a um só tempo como objetivamente agitados
e confusos e como subjetivamente crapulosos. No limite,
o assassino presumido não é o autor do
crime, mas ele poderia perfeitamente ter sido.
Essa maneira de reduzir os esquerdistas ao espetáculo
de sua agitação (espetáculo que,
desde a primeira cena, vemos a que ponto é aguardado
e utilizado por Bizzanti), de nunca inscrever seu
aparelho e seus discursos políticos, rapidamente
essa maneira de desqualificar os esquerdistas politicamente
e moralmente faz não apenas com que no filme
eles não portem nenhuma positividade, mas com
que nada nos impeça de pensar que, por sua violência
cega, eles fazem o jogo de Bizzanti.
Debilidade do democrata sincero, negatividade dos esquerdistas,
ausência do povo (que só é mostrado
na ocasião de uma manifestação
do M.S.I.), inumanidade gélida do grande industrial.
Nada sobra além de Bizzanti. Dizer que ele é
um herói positivo não teria o menor sentido.
O fenômeno é mais complexo e se aparenta
àquela negação que acompanha toda
a projeção do filme: "Je sais
bien mais quand même"1.
Bizzanti é a desonestidade, o cinismo, a intoxicação
das massas ao serviço do grande capital, da burguesia
afascistada. Isso o espectador sabe e não esquece
jamais. Mas Bizzanti é também o profissional,
o jornalista, o homem que sem dúvida se faz ele
mesmo, ainda capaz de conduzir seu inquérito.
O espectador o vê e o esquece tão menos
quanto todos os outros personagens do filme são
apanhados fora de todo métier, de toda
prática social.
Enfim, fato essencial, Bizzanti é o único
personagem a possuir verdadeiramente a palavra.
Peguemos a cena chave em que Roveda, tomando consciência
do papel que desempenha, vem prestar contas. Nesse preciso
momento, a habilidade de Bizzanti não é
de se justificar, mas de atacar a ingenuidade de Roveda.
E de atacá-la politicamente. Ao invés
de tranqüilizar Roveda dizendo-lhe "Mas claro,
somos objetivos", ele diz "Nós também
nos fazemos a luta de classes!". Assim dizendo,
ele assume um discurso marxista que Roveda não
compreende nem espera. O fascista pode falar da luta
de classes, pois ele é cínico e lúcido
o bastante para reconhecer que ela existe, enquanto
o democrata sincero não quer sobretudo ouvir
falar dela. O que interessa a Roveda é a liberdade
ou a objetividade da imprensa, terreno sobre o qual
Bizzanti não vê nenhum problema em ridicularizar.
Ocorre o mesmo na cena entre Bizzanti e sua mulher,
conotada como uma burguesa bastante estúpida.
É evidente que naquele preciso momento todo mundo
na sala está "do lado de Bizzanti",
todos lá continuando sabendo que ele é
"um fascista". Bellocchio conseguiu transferir
sobre Bizzanti (= Volontè) o desejo do espectador.
Admitamos que seja plausível que um homem como
Bizzanti se escreva: "Nós também
nos fazemos a luta de classes!", admitamos que
o fascismo novo, tecnocrático, emprestará
ao marxismo nacos de raciocínio e slogans (é
principalmente aí que vemos um dos efeitos do
"ideologismo" de Bellocchio, um efeito da
contradição consciente/inconsciente).
O importante é que nenhuma outra pessoa nesse
mesmo filme tem um tal discurso, e sobretudo não
o têm aqueles que deveriam logicamente tê-lo:
os esquerdistas.
Ora, vimos que os esquerdistas em questão se
caracterizam pelo fato de que eles não falam
(somente gritam: cena da confrontação
com a polícia), mas se agitam. Eles se reduzem
à imagem da sua gesticulação. No
limite, podemos dizer que é Bizzanti quem se
beneficia de discursos que os esquerdistas não
assumem: todo o filme seria diferente se Bellocchio
tivesse filmado entre ele e os demais um verdadeiro
debate político.
Bizzanti, único "homem" do filme, não
tem grande problema em se tornar, na falta de um melhor,
o único "herói" possível.
Ele ganha em complexidade à medida que os outros
personagens se esquematizam. (Esse processo é
o mesmo daquele que comanda em Estado de Sítio2
a evolução das relações
entre Montand e os Tupamaros.) Ele vai até mesmo
adquirir, face ao industrial, um tipo de distância,
de autonomia, recheada ao mesmo tempo de ameaças
e de esperanças. Como se ele quisesse sugerir
que, "condoreiro" dos tempos modernos, ele
fosse mais rico, mais complexo que as classes cujos
interesses defende.
Sobre a cena social de Sbatti il Mostro in Prima
Pagina, é hora de revelar uma ausência
marcante: os revisionistas. Aqui se revela toda a ambigüidade
do projeto de Bellocchio: ao não inscrevê-los
absolutamente, ele pensa com isso mostrar que os toma
por forças negligenciáveis ou não
revolucionárias, em todo caso incapazes de modificar
o quadro dado da sociedade italiana (os esquerdistas
são enfraquecidos com as massas sendo atraídas
pelo M.S.I.). É pouco provável que ele
não seja a primeira vítima desse excesso
de desprezo. Pois num filme em que todos os elementos
são negativos, um elemento aguardado e obstinadamente
ausente tem fortes chances de aparecer como positivo.
Tanto mais que o P."C".I. pode retomar por
sua conta a tese desenvolvida pelo filme e que é
a sua: os esquerdistas são os fomentadores
objetivos do fascismo. Para o P."C".I., melhor
será estar ausente de um filme em que todos os
protagonistas são negativos, melhor será
uma leitura na sua ausência. Quando se sabe que
é por causa de Volontè (cf. Ecran
73, nş 12, p. 17), ele mesmo simpatizante do P."C".
I., que Bellocchio não inscreveu o Partido no
filme, diz-se que, no fim das contas, Volontè,
no filme como no real, é o verdadeiro beneficiário
do filme. No filme, vimos de que maneira. No real porque
Sbatti é, hoje, sobretudo legível
pelo revisionismo. Qualquer que seja a radicalidade
do "desespero" de Bellocchio.
Serge Daney
(Originalmente publicado em Cahiers du Cinéma
nº 245-246, abril-maio-junho de 1973. Traduzido
do francês por Luiz Carlos Oliveira Jr.)
1. Traduzindo
mais ou menos ao pé da letra, seria: "Eu
sei bem, mas mesmo assim". Trata-se, na verdade,
de uma expressão muito usada na crítica
e na teoria de cinema ao longo dos anos 60/70, a designar
um misto de entrega e desconfiança em relação
ao dispositivo criado pelo filme. [N. do T.]
2. Filme de Costa-Gavras, de 1973, que
possui uma crítica assinada por Pascal Bonitzer
e Serge Toubiana no mesmo número dos Cahiers
em que se encontra este texto de Daney aqui traduzido.
[N. do T.]
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