OLHOS NA BOCA
Marco Bellocchio, Gli Occhi, la Bocca, Itália, 1982

Os Cadáveres da História

Olhos na Boca é um filme que veio depois, é bom deixarmos isso claro. Não à toa se inicia com um homem (Lou Castel) chegando à cidade natal para o funeral de seu irmão gêmeo suicida. O ato mais importante já aconteceu, resta a um fantasma inconseqüente vagar pela imagem; porém, este ato não se resume àquilo que ocorre em cena. Marco Bellocchio e Lou Castel, os dois autores do filme, têm muito em comum – a começar por ambos terem irmãos gêmeos idênticos –, e ambos surgiram para o cinema juntos com De Punhos Fechados (65), marco de um certo cinema de esquerda da época, que se diferencia de outros filmes do período por seu pessimismo mordaz numa espécie de exumação do cadáver de 68 antes do tempo. Portanto estamos aqui numa espécie de continuidade de projeto, mas uma continuidade pós-fato, onde o diagnóstico se cumpriu além da conta. Trata-se logo de um filme até certo ponto auto-crítico, feito na corda bamba, que se não tem a porra-louquice de um De Punhos Fechados também não partilha da plenitude de um A Hora da Religião. De certa forma já não se pode ser o franco atirador, mas também não se conquistou a posição do velho mestre que toca coerentemente a sua obra no meio da planície desolada que se tornou a Itália (e o cinema italiano). Se Olhos na Boca é de certa forma o grande filme de Marco Bellocchio, isto se deve muito a ser um filme em que o cineasta se encontra mais do que nunca exposto. É um filme de crise, feito no meio da crise – inclusive realizado no momento máximo da agonia da indústria cinematográfica italiana que indiretamente permitia que um cineasta mais ambicioso como Bellocchio desenvolvesse sua obra –, que leva esta crise ao limite do seu impasse. Logo, não surpreende que este filme-funeral se revele uma história de cadáveres, para muito além do corpo velado na seqüência inicial.

Não o primeiro, mas entre os mais importantes dentre estes cadáveres está a da própria obra do diretor. Olhos na Boca é primo-irmão dos filmes que Jean-Luc Godard começa a desenvolver nessa época, um cinema que se revolta com a institucionalização do dito cinema moderno. Bellocchio se arrisca à comparação e insere à certa altura do filme a seqüência chave de De Punhos Fechados. É um percurso de dezessete anos que leva esta seqüência para dentro de um filme posterior do seu autor, mas neste curto tempo uma espécie de assassinato se deu. "Não se pode celebrar com pompa Alexander Kluge", protestara um ou dois anos antes Reiner Werner Fassbinder, ao saber que seu amigo receberia uma homenagem em comemoração dos seus 50 anos em um grande festival europeu. Pois é algo similar que se dá aqui. Afinal quando De Punhos Fechados pode ser exibido como arte num cine-bistrô qualquer para consumo de uma platéia pseudo-esclarecida o filme se tornou um corpo sem vida, e é preciso dar conta dele de alguma forma. Não basta porém simplesmente constatar que o que devia funcionar como um tapa na cara se resolve com um comentário tipo cruel, não?: é preciso revitalizá-lo de alguma forma. Daí o retorno à cena do crime, a necessidade de retomar esta seqüência, de dar vazão ao que ela significa em 1982 (assim como A Hora da Religião tratará da herança dela em 2002). Olhos na Boca foi recebido à época como indicador de que o cinema de Bellocchio perdia o viço. Nada mais falso, pois trata-se de um filme ainda mais radical, muito pela sua capacidade de reconhecer sua própria herança histórica e refletir sobre o que fazer para revitalizá-la, devolver-lhe a energia que quem crê que o cineasta deva simplesmente revisitá-la não parece se preocupar.

O que nos leva a um outro cadáver: a mãe. O matricídio está no centro da obra de Marco Bellocchio. É justamente o assassinato da mãe cega de De Punhos Fechados que é retomado aqui. Bellocchio deu à sua maneira continuidade a um questionamento que estava no cerne de boa parte da obra de Roberto Rossellini: o que significa ser uma figura progressista numa sociedade de moral extremamente conservadora? Essa lição Bellocchio foi dos poucos da sua geração – e não falo aqui apenas na Itália – a absorver. Logo, a família na sua condição de casulo original sufocante (e a posição da mãe dentro da sociedade italiana garante a ela sua posição central nesse espaço familiar) será a figura incontornável nestes filmes. Olhos na Boca se estrutura justamente como o conto do filho desgarrado que retorna à família para acertar as contas pela última vez. Lou Castel mata concretamente a mãe em De Punhos Fechados e o faz metaforicamente em Olhos na Boca, enquanto a mãe já está morta no começo de A Hora da Religião (assassinada pelo irmão insano, interpretado por um ator muito parecido com Castel), com Sergio Castellitto ainda precisando conviver com a figura dela. É preciso matar a mãe, mas ao mesmo tempo o matricídio termina por se revelar uma impossibilidade (daí o cineasta acabar sempre retornando a ele). A mãe aqui é incapaz de enxergar a intriga familiar para acobertar as razões do suicídio e Castel implode a família justamente ao reviver o corpo do irmão suicida. O matricídio só pode se dar quando se encontra forma para os próprios crimes da moral familiar.

Marco Bellocchio pertence à última grande geração do cinema italiano (a de Ferreri, Olmi, Pasolini, Rosi), e mais do que qualquer outro reposicionou sua obra a partir da década de 70 na função de juntar os cacos e buscar algum sentido no que aconteceu. Estamos num cinema atravessado pela história. Na ocasião das primeiras exibições de Bom Dia, Noite, comentou-se que com um governo de extrema-direita no poder na Itália seria um absurdo realizar um filme tão crítico à esquerda italiana. Mas dentro da lógica da obra do cineasta é justamente a presença de um Berlusconi no poder que torna tal revisão necessária. É isso também que está por trás de Olhos na Boca: se estamos diante de um filme-funeral, é preciso dizer que não se trata de velar nostalgicamente um corpo, mas de encontrar formas de reanimá-lo. Encontrar um modo de rearticular a história, procura essa que anima muito da obra de Bellocchio e que se realiza de forma plena finalmente em A Hora da Religião, mas que talvez encontre seu maior ponto de incisão neste Olhos na Boca. O protagonista começa seu filme como um cadáver sendo velado, já tendo dado um tiro contra a própria cabeça, cabendo ao seu duplo assumir suas funções (a noiva, o apartamento, o filho que está por vir) e completar o acerto de contas familiar. Parte da força de Olhos na Boca vem justamente da habilidade de Bellocchio em historicizar este material (de forma não muito diferente do que Rossellini fizera nos seus filmes com Ingrid Bergman) para além da trama de melodrama familiar.

Aqui é importante ressaltar a figura de co-autor de Lou Castel. Importantíssimo para o sucesso do filme é não só a capacidade de Castel de pôr na tela o seu próprio percurso (Serge Daney chegou a se referir ao filme como um grande documentário sobre um ator) mas também a maneira como ele e Marco Bellocchio colaboram. É como se o cineasta acreditasse estar fazendo um filme sobre Lou Castel, enquanto o ator o enxergasse como um filme sobre Marco Bellocchio. É da junção destes pontos de vista que surge o filme. Mas Castel é também a matéria prima do filme, seu cadáver ambulante. É preciso se atentar para o título original do filme – Os Olhos, a Boca – e o que ele revela de um desejo de dar forma a uma figura, de lhe dar uma condição corpórea. O processo de Olhos na Boca é este: a revitalização de um cadáver, o ato de dar forma a uma série de fantasmas, tornar a história concreta para melhor poder confrontá-la. O grande achado é justamente realizar este processo em parceria com um ator tão instintivo e preocupado com linguagem corporal quanto Castel (talvez o único grande ator a preferir atuar dublado). Castel é o fantasma cadavérico que passeia pelo filme em busca de uma forma, o que Bellocchio lhe permite nas três grandes seqüências finais – entre os mais belamente sustentados dez minutos de todo o cinema –, onde de repente nos vemos diante de um corpo ganhando forma, de um homem ganhando centro. É um momento final tão sublime quanto o melhor Rossellini.


Filipe Furtado

 

 




Olhos na Boca (1982)