Os Cadáveres da História
Olhos na Boca é um filme que veio
depois, é bom deixarmos isso claro. Não
à toa se inicia com um homem (Lou Castel) chegando
à cidade natal para o funeral de seu irmão
gêmeo suicida. O ato mais importante já
aconteceu, resta a um fantasma inconseqüente vagar
pela imagem; porém, este ato não se resume
àquilo que ocorre em cena. Marco Bellocchio e
Lou Castel, os dois autores do filme, têm muito
em comum – a começar por ambos terem irmãos
gêmeos idênticos –, e ambos surgiram para
o cinema juntos com De Punhos Fechados (65),
marco de um certo cinema de esquerda da época,
que se diferencia de outros filmes do período
por seu pessimismo mordaz numa espécie de exumação
do cadáver de 68 antes do tempo. Portanto estamos
aqui numa espécie de continuidade de projeto,
mas uma continuidade pós-fato, onde o diagnóstico
se cumpriu além da conta. Trata-se logo de um
filme até certo ponto auto-crítico, feito
na corda bamba, que se não tem a porra-louquice
de um De Punhos Fechados também não
partilha da plenitude de um A Hora da Religião.
De certa forma já não se pode ser o franco
atirador, mas também não se conquistou
a posição do velho mestre que toca coerentemente
a sua obra no meio da planície desolada que se
tornou a Itália (e o cinema italiano). Se Olhos
na Boca é de certa forma o grande filme de
Marco Bellocchio, isto se deve muito a ser um filme
em que o cineasta se encontra mais do que nunca exposto.
É um filme de crise, feito no meio da crise –
inclusive realizado no momento máximo da agonia
da indústria cinematográfica italiana
que indiretamente permitia que um cineasta mais ambicioso
como Bellocchio desenvolvesse sua obra –, que leva esta
crise ao limite do seu impasse. Logo, não surpreende
que este filme-funeral se revele uma história
de cadáveres, para muito além do corpo
velado na seqüência inicial.
Não o primeiro, mas entre os mais importantes
dentre estes cadáveres está a da própria
obra do diretor. Olhos na Boca é primo-irmão
dos filmes que Jean-Luc Godard começa a desenvolver
nessa época, um cinema que se revolta com a institucionalização
do dito cinema moderno. Bellocchio se arrisca à
comparação e insere à certa altura
do filme a seqüência chave de De Punhos
Fechados. É um percurso de dezessete anos
que leva esta seqüência para dentro de um
filme posterior do seu autor, mas neste curto tempo
uma espécie de assassinato se deu. "Não
se pode celebrar com pompa Alexander Kluge", protestara
um ou dois anos antes Reiner Werner Fassbinder, ao saber
que seu amigo receberia uma homenagem em comemoração
dos seus 50 anos em um grande festival europeu. Pois
é algo similar que se dá aqui. Afinal
quando De Punhos Fechados pode ser exibido como
arte num cine-bistrô qualquer para consumo
de uma platéia pseudo-esclarecida o filme se
tornou um corpo sem vida, e é preciso dar conta
dele de alguma forma. Não basta porém
simplesmente constatar que o que devia funcionar como
um tapa na cara se resolve com um comentário
tipo cruel, não?: é preciso revitalizá-lo
de alguma forma. Daí o retorno à cena
do crime, a necessidade de retomar esta seqüência,
de dar vazão ao que ela significa em 1982 (assim
como A Hora da Religião tratará
da herança dela em 2002). Olhos na Boca
foi recebido à época como indicador de
que o cinema de Bellocchio perdia o viço. Nada
mais falso, pois trata-se de um filme ainda mais radical,
muito pela sua capacidade de reconhecer sua própria
herança histórica e refletir sobre o que
fazer para revitalizá-la, devolver-lhe a energia
que quem crê que o cineasta deva simplesmente
revisitá-la não parece se preocupar.
O que nos leva a um outro cadáver: a mãe.
O matricídio está no centro da obra de
Marco Bellocchio. É justamente o assassinato
da mãe cega de De Punhos Fechados que
é retomado aqui. Bellocchio deu à sua
maneira continuidade a um questionamento que estava
no cerne de boa parte da obra de Roberto Rossellini:
o que significa ser uma figura progressista numa
sociedade de moral extremamente conservadora? Essa
lição Bellocchio foi dos poucos da sua
geração – e não falo aqui apenas
na Itália – a absorver. Logo, a família
na sua condição de casulo original sufocante
(e a posição da mãe dentro da sociedade
italiana garante a ela sua posição central
nesse espaço familiar) será a figura incontornável
nestes filmes. Olhos na Boca se estrutura justamente
como o conto do filho desgarrado que retorna à
família para acertar as contas pela última
vez. Lou Castel mata concretamente a mãe em De
Punhos Fechados e o faz metaforicamente em Olhos
na Boca, enquanto a mãe já está
morta no começo de A Hora da Religião
(assassinada pelo irmão insano, interpretado
por um ator muito parecido com Castel), com Sergio Castellitto
ainda precisando conviver com a figura dela. É
preciso matar a mãe, mas ao mesmo tempo o matricídio
termina por se revelar uma impossibilidade (daí
o cineasta acabar sempre retornando a ele). A mãe
aqui é incapaz de enxergar a intriga familiar
para acobertar as razões do suicídio e
Castel implode a família justamente ao reviver
o corpo do irmão suicida. O matricídio
só pode se dar quando se encontra forma para
os próprios crimes da moral familiar.
Marco Bellocchio pertence à última grande
geração do cinema italiano (a de Ferreri,
Olmi, Pasolini, Rosi), e mais do que qualquer outro
reposicionou sua obra a partir da década de 70
na função de juntar os cacos e buscar
algum sentido no que aconteceu. Estamos num cinema atravessado
pela história. Na ocasião das primeiras
exibições de Bom Dia, Noite, comentou-se
que com um governo de extrema-direita no poder na Itália
seria um absurdo realizar um filme tão crítico
à esquerda italiana. Mas dentro da lógica
da obra do cineasta é justamente a presença
de um Berlusconi no poder que torna tal revisão
necessária. É isso também que está
por trás de Olhos na Boca: se estamos
diante de um filme-funeral, é preciso dizer que
não se trata de velar nostalgicamente um corpo,
mas de encontrar formas de reanimá-lo. Encontrar
um modo de rearticular a história, procura essa
que anima muito da obra de Bellocchio e que se realiza
de forma plena finalmente em A Hora da Religião,
mas que talvez encontre seu maior ponto de incisão
neste Olhos na Boca. O protagonista começa
seu filme como um cadáver sendo velado, já
tendo dado um tiro contra a própria cabeça,
cabendo ao seu duplo assumir suas funções
(a noiva, o apartamento, o filho que está por
vir) e completar o acerto de contas familiar. Parte
da força de Olhos na Boca vem justamente
da habilidade de Bellocchio em historicizar este material
(de forma não muito diferente do que Rossellini
fizera nos seus filmes com Ingrid Bergman) para além
da trama de melodrama familiar.
Aqui é importante ressaltar a figura de co-autor
de Lou Castel. Importantíssimo para o sucesso
do filme é não só a capacidade
de Castel de pôr na tela o seu próprio
percurso (Serge Daney chegou a se referir ao filme como
um grande documentário sobre um ator) mas também
a maneira como ele e Marco Bellocchio colaboram. É
como se o cineasta acreditasse estar fazendo um filme
sobre Lou Castel, enquanto o ator o enxergasse como
um filme sobre Marco Bellocchio. É da junção
destes pontos de vista que surge o filme. Mas Castel
é também a matéria prima do filme,
seu cadáver ambulante. É preciso se atentar
para o título original do filme – Os Olhos,
a Boca – e o que ele revela de um desejo de dar
forma a uma figura, de lhe dar uma condição
corpórea. O processo de Olhos na Boca
é este: a revitalização de um cadáver,
o ato de dar forma a uma série de fantasmas,
tornar a história concreta para melhor poder
confrontá-la. O grande achado é justamente
realizar este processo em parceria com um ator tão
instintivo e preocupado com linguagem corporal quanto
Castel (talvez o único grande ator a preferir
atuar dublado). Castel é o fantasma cadavérico
que passeia pelo filme em busca de uma forma, o que
Bellocchio lhe permite nas três grandes seqüências
finais – entre os mais belamente sustentados dez minutos
de todo o cinema –, onde de repente nos vemos diante
de um corpo ganhando forma, de um homem ganhando centro.
É um momento final tão sublime quanto
o melhor Rossellini.
Filipe Furtado
|