Comumente situa-se o período
1943-1949 como o grande ápice criativo da extensa
obra de Emilio "Índio" Fernandez. Após
esses anos, repletos de grandes filmes e de um número
considerável de obras-primas – citemos ao menos
Maria Candelária (1943), Bugambilia
(1944) e Pueblerina (1948) –, o autor se
acomoda com a afirmação de seu próprio
estilo e executa uma série de repetições.
O ano de 1950 inaugura não só uma nova
fase na obra de Fernández como também
um novo ciclo experimentado pela outrora poderosa indústria
cinematográfica mexicana. A imensa receptividade
popular, o glamour e os estrondosos sucessos da década
anterior agora são substituídos por uma
gradual etapa de decadência. Antes de encará-la
de frente a partir de 1961, quando realmente entrará
em seu período de crise, Fernández ainda
dirigirá, entre 1950 e 1956, 17 filmes. Entre
esses está Siempre Tuya, filme que, se
não está entre os grandes do autor, ao
menos nos fornece uma série de curiosidades que
fazem o mergulho na obra de Fernández se tornar
efetivamente mais profundo.
Primeiramente: o seu lado de crítica social.
Elemento que sempre existiu em seus outros filmes de
forma mais ou menos diluída, apresenta aqui uma
contundência particular, expressa também
através de sua crueza plástica. Na primeira
parte do filme, em que somos apresentados ao casal Ramón
García (o popular cantor-ator Jorge Negrete)
e Soledad (Gloria Marin), constatamos um realismo na
representação da miséria daquela
zona rural (Zacatecas) não encontrado em seus
filmes anteriores. Há uma grande diferença
no retrato da ambiência rural estabelecido em
Siempre Tuya e em Maria Candelária/
Pueblerina. O ambiente inóspito e seco,
a infertilidade da terra em analogia com a infertilidade
da mulher incapaz de produzir filhos nos evoca a repetição
de um traço estilístico bastante característico
do autor: a associação mulher /natureza.
Mulher e terra demonstram ser incapazes de prover o
homem, portanto ele se vê obrigado a adotar a
postura de abandoná-las. No entanto, Soledad
recusa-se a aceitar a condição de ficar
separada de seu homem e resolve segui-lo em sua aventura
à cidade grande.
A filmografia de Fernández, geralmente dividida
entre melodramas indigenistas rurais e melodramas urbanos
(Las Abandonadas, Salón México,
Víctimas del Pecado), apresenta uma delimitação
bem marcada entre campo e cidade. Eles são na
realidade territórios isolados e independentes,
dois mundos paralelos incomunicáveis. No entanto,
em Siempre Tuya ocorre uma reveladora mistura:
os dois ambientes aparecem no mesmo filme para suscitar
uma clara situação de confronto. De um
lado está o campo, o recanto original do verdadeiro
ser mexicano e do outro a cidade, lugar que seduz ao
oferecer ao homem falsos totens e equivocados valores.
No campo o homem apenas necessita do amparo da mãe-terra
para fornecer o fruto de sua subsistência, enquanto
na cidade o homem é obrigado a desejar sucesso,
dinheiro e bens materiais. No campo o homem conserva
o seu estado puro, enquanto na cidade ele é irremediavelmente
corrompido. A terra, força que precisa estar
em permanente comunhão com o homem, está
frágil e o obriga a abandoná-la e como
conseqüência o expulsa de seu habitat natural.
Na cidade grande, ambiente artificial e corruptor por
definição, o homem não tem escolha
a não ser sair de sua essência.
Entre os elementos corruptores que fazem parte do sistema
nocivo da metrópole está a indústria
cultural. Ramón, quando estava no campo, não
demonstrou em nenhum momento os seus dotes de cantor;
nenhum indicio do talento do personagem tinha sido revelado,
nem ao menos um assobio foi emanado de suas cordas vocais.
Eis que, depois de inúmeras dificuldades e peripécias
enfrentadas pelo casal na cidade grande, um amigo de
Ramón sugere que ele se inscreva em um programa
de calouros. Ramón segue o conselho, participa
do programa de rádio e de súbito revela-se
um cantor excepcional. O seu talento de cantor só
faz sentido quando ele está na cidade; no campo
esse recurso é dispensável, já
que inexiste uma indústria feita para criar mitos
descartáveis. A indústria cultural, signo
da cidade grande, tira proveito inclusive da origem
rural de Ramón. "O cantor mais mexicano do México":
este é o slogan que anunciará Ramón
como produto vendável. A sua origem campestre
é tida como estímulo exótico ao
mesmo tempo em que reforça a idéia de
algo genuíno, puro e de raiz. A própria
capital do México se apropria do conceito de
que a essência do mexicano não está
ali e sim no campo, mas por traz dessa apropriação
se escondem objetivos puramente mercadológicos.
Ganância, vício e futilidade: essas são
as principais características encontradas no
mundo dos ricos. Mundo a que Ramón inutilmente
tentará se integrar. A cantora texana Mirta (Joan
Page) será a encarnação da mulher-serpente
cuja função dramática é
justamente a de abrir para o protagonista as portas
do luxo e da perdição. A nacionalidade
da cantora fútil e rica, que corromperá
a mente de Ramón, não é norte-americana
por acaso. Enquanto o México possui nos recônditos
mais afastados agrupamentos que ainda conservam o seu
aspecto mais puro e original, os Estados Unidos representam
tudo que o México precisa recusar para continuar
sendo México. Se a capital já não
pode ser mais salva da nefasta influência norte-americana,
o interior continua sendo um poderoso reduto de resistência.
O México é a pureza e os Estados Unidos
são o veneno. Mirta embriagará Ramón
de tal forma que ele abandonará Soledad, que
desde o principio não via com bons olhos a fartura
proveniente da carreira do marido. A americana é
independente, bem arrumada, sedutora e vil. A camponesa
mexicana é bela, simples, pura e servil. A primeira,
após seduzir Ramón, irá traí-lo;
a segunda, mesmo depois de ser desprezada, continua
sempre à sua espera.
Após uma briga com Mirta e seu amante, Ramón
é levado ferido ao hospital. Lá, impotente
e imobilizado, o ingrato marido recebe os carinhos de
Soledad, que o faz finalmente perceber o seu grande
erro: achar que a riqueza é o sentido da vida.
A pobreza é na realidade a maior riqueza.
A mensagem explícita que Siempre Tuya
se engaja em propagar está em consonância
com uma série de filmes da época de
ouro do cinema mexicano. Além da trilogia
estrelada pelo também cantor-ator Pedro Infante
no papel de Pepe "el toro" (Nosotros los pobres,
de 1947, Ustedes los ricos, de 1948, e Pepe
el Toro, de 1952), temos o clássico Campeón
sin corona (1945), de Alejandro Galindo, cujo argumento
parece ter inspirado Siempre Tuya. A estória
é praticamente a mesma com algumas variações:
homem pobre recusa-se a aceitar sua condição
social, torna-se rico (aqui através da carreira
de lutador de boxe) e a partir disso a sua vida é
uma desgraça. Há também a namorada
rica que o despreza, e os EUA são dessa vez representados
pela figura do lutador inimigo Joe Ronda. Em ambos os
filmes temos esboçada a idéia de que o
pobre deve permanecer pobre porque só assim ele
entrará no reino dos céus. O repúdio
à riqueza não é de forma alguma
exclusividade do cinema mexicano, em diferentes cantos
do globo durante esse período (anos 40 e 50)
esse brado será constantemente exaltado. Encontramos
essa mensagem na produção de Bollywood,
em filmes como Shree 420 (Raj Kapoor, Índia,1955)
e Pyaasa (Guru Dutt, Índia,1957), no cinema
americano (notadamente Frank Capra) e no cinema brasileiro
(Nadando em Dinheiro, Abílio Pereira de
Almeida, Brasil, 1952). Um fenômeno universal
que adquire no cinema mexicano contornos especiais.
O espantoso surto industrial experimentado pelas principais
grandes metrópoles da América-Latina (Cidade
do México, Buenos Aires e São Paulo) modifica
o perfil de seus respectivos países, antes essencialmente
rurais, para efetivos pólos industriais. Isso
acarreta o êxodo rural, amplifica as desigualdades
sociais na metrópole e carrega consigo o conceito
de que tradições e costumes profundamente
fincados poderão ser eliminados com o evento
da modernidade. Fernández demonstra o seu receio
e desconfiança ao deter a sua câmera no
rosto do progresso. O que antes poderia ser uma conciliação
entre o arcaico e o moderno através da união
entre o médico da cidade e a curandeira do povoado,
em prol da salvação de Maria Candelária,
em Siempre Tuya, através da seqüência
final que mostra Ramón e Soledad retornando ao
velho lar como se tivessem alcançado as graças
do paraíso, comprova-se sem nenhum pudor que
ao menos por agora essa conciliação já
não tem mais o seu lugar ao sol.
Estevão Garcia
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