Simone
Simon morreu dia 22 de fevereiro de 2005, com pouca
ou nenhuma atenção para o fato. Inútil
dizer como justificativa que ela mesma abandonou sua
carreira em meados dos anos 50, depois de duas pérolas
com Max Ophüls, já tendo anteriormente feito
filmes com William Dieterle, Allan Dwan e Jean Renoir
(A Besta Humana): para qualquer um que já
assistiu a algum desses filmes e em todo caso
é este Sangue de Pantera que toma a primazia
da memória, sem dúvida , esse rosto
tornou-se inesquecível para quem o viu
mesmo por uma única vez. Uma beleza estranha,
irradiada menos do equilíbrio dos traços
do que de uma espécie de sinuosidade viciosa,
um rosto pecaminoso em si, apesar de si mesmo,
do qual Jacques Tourneur consegue retirar todas as suas
potencialidades. Pois é em torno de sexualidade
e repressão feminina que gira e evolui a história
de Sangue de Pantera, e assim segue o percurso
do rosto de Simone Simon.
Primeiro fotograma: começo do filme, ela desenha
uma pantera no zoológico, enquanto nosso herói
está à espreita. Mal sabe ele que é
a própria presa: ela o arrebata por seu charme
e o conduz até sua casa, com o argumento de que
não tem amigos porque está a pouco tempo
no país e suas relações de trabalho
não lhe permitem tantos contatos. Comportamento
animal, instintivo, sangue de pantera que inicialmente
ela não recusa, muito ao contrário: tenta
lhe dar vazão completa. Simon sensual, rosto
levemente desequilibrado para a direita (esquerda da
tela), com olho menor e um sorriso de lado que,
junto com o sotaque fortemente estrangeiro que
seduzem o pobre projetista. À medida que a misteriosa
Irena Dubrovna vai se apaixonando pelo maravilhado Oliver,
nasce o problema com a maldição: o despertar
do desejo sexual na mulher é identificado com
o desejo assassino de matar sua presa. A entrada na
Lei (o casamento) se confunde com a auto-repressão.
Irena frígida.
Segundo fotograma: rosto equilibrado, neutro, angelical.
A iluminação incide diretamente sobre
o rosto de Irena, que sofre para contar de seu auto-isolamento
para não ferir ninguém. A conversa tem
lugar a 15 minutos de filme, logo antes da cena do jantar
de casamento. O périplo traumático contiuará
a funcionar mais fortemente após o casamento:
mais conversas sobre desejo, sobre o casamento não-consumado
(a ausência do ato sexual), ciúmes que
recaem sobre a bela colega de trabalho Alice Moore e
a raiva que também desperta em Irena seu lado
destruidor. Mas aqui nada disso. Aqui, é nossa
musa em seu aspecto mais frágil, mais um bebê
felino do que uma pantera.
Terceiro fotograma: no jantar de casamento, quando tudo
parece agradável e Irena Dubrovna, agora portando
o sobrenome Reed, finalmente parece aclimatada a Oliver,
a seus amigos e ao novo país, surge a pantera-irmã
para lembrá-la da maldição. Outro
rosto vicioso, rosto de gato ("looks like a cat",
diz um dos convivas do casal), que mia numa língua
inteligível apenas para sua colega de espécie.
Mau augúrio que irrompe no momento mais feliz
do filme para mostrar a Irena que ela não vai
escapar de seu destino. Mais uma vez, o vício
está carregado todo no olhar, no poder do primeiro
plano e na conformação visual do rosto,
e na relação especular que se estabelece
entre duas mulheres felinas.
Quarto e quinto fotogramas: grande elipse para o final
do filme. Aqueles que conhecem Sangue de Pantera
sabem que omitimos as duas cenas mais famosas, e aquelas
em que o suspense aparece com mais força: a cena
da caminhada de Alice Moore perseguida pelos sons de
pantera com a imagem ameaçadora tendo presença
imaginária apenas no fora-de-campo, e posteriormente
a cena em que essa mesma Alice se vê perseguida
pela pantera na piscina, numa cena em que igualmente
om perigo é todo construído pelo extra-campo,
sob a forma dos rugidos de animal e pela maneira como
o corpo de Alice se move na água (e pelos reflexos
fluidos nas paredes). Nosso estudo é sobre os
rostos. Assim, passamos diretamente ao momento em que
Irena, atendendo aos convites freqüentes de um
psiquiatra malandrão que deseja tirar proveito
de sua paciente, finalmente cede à tentação
e torna-se a pantera que ela tanto temia transformar-se
na frente de Oliver. Atenção para como
a transformação de Irena em pantera se
dá inicialmente em frente à câmera,
primeiro iluminada à Marlene Dietrich, em north
light a luz que vem do céu, que capta
o instante da liberação do instinto, a
concretização do destino para em
seguida obstruir a luminosidade e a visibilidade do
rosto de Irena. O rosto fica distorcido, o olho passa
a refletir um brilho assustador, e o corpo se retorce,
se aproxima da câmera e o rosto desce, se conformando
ao porte físico de um felino. O semblante extático,
de entrega aos instintos e ao destino, transforma-se
em olhar de estupor, quase de despersonalização.
Sexto fotograma: por fim, a continuação
da seqüência, a cena do ataque, que se dá
igualmente por sugestão, com a câmera flagrando
apenas através das sombras a luta entre Irena-tornada-pantera
e o doutor. Momento decisivo, e também o tipo
de cena que faz a fama de Tourneur, essa espécie
de "terror branco" (que encontra seu correlato
no paroxista "noir branco" de Fuga do Passado)
que se preocupa muito mais na criação
das atmosferas do que em recompensar o espectador mostrando
na tela o horror que ele tem que imaginar fora dela.
Mas essa cena só funciona sob medida, e nesse
aspecto de forma muito mais interessante do que a cena
da pantera no escritório, porque associamos imediatamente
a sombra na parede ao rosto de Irena que se transfigura
a nossa frente. É ainda um rosto, um primeiro
plano, que nos assombra e que vemos quando pressentimos
o ataque e posteriormente o presenciamos. Temor do inevitável,
e ao mesmo tempo compadecimento com a libertação
e com o horror de Irena. Como em Os Pássaros,
primo não muito distante de Sangue de Pantera,
perguntamos: que mal há em uma mulher se entregar
a um homem? por que tanta agitação?
(Infelizmente, a edição da Magnus Opus
não faz jus à grandeza do título.
O disco visto apresentava sérios problemas de
distorção na imagem, pixelização
em diversos dos movimentos de câmera, e no geral
uma imagem com definição menor do que
poderia. Como extra, um texto informativo de Luiz Nazário
que se atém mais à contextualização
histórica de Val Lewton como produtor, e um texto
introdutório pra lá de equivocado, a dizer,
por exemplo, que o filme está "ultrapassado",
como se Giotto ficasse ultrapassado a partir da invenção
da perspectiva.)
Ruy Gardnier
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