MANCHADA PELO DESTINO
Emilio Fernández, Pueblerina, México, 1949

Emilio Índio Fernández se encontrava no auge de sua carreira ao realizar Pueblerina. Apesar de consagrado internacionalmente por seus melodramas, que marcam a chamada era de ouro do cinema mexicano, os seus filmes preocupavam os produtores pelo tempo e dinheiro gastos em suas produções. Pueblerina é uma mostra que Fernández fez, ao lado de seus colaboradores tradicionais (Gabriel Figueroa na fotografia e Mauricio Magdaleno no roteiro), do que poderia realizar com um orçamento baixo. Sem um elenco estelar, ao ser protagonizado por dois atores até então de segundo escalão (Roberto Cañedo e Columba Domínguez) e filmado em apenas três semanas (Fernández demorava cerca de cinco semanas, uma exceção na indústria cinematográfica mexicana), Pueblerina é considerado pela crítica e historiadores do cinema mexicano o melhor filme de Fernández. Sem sombra de dúvida, a única coisa que o espectador tem a dizer, ao sair do cinema após sua exibição, é: uma obra-prima!

Como analisar e compreender um filme tão marcante? Nunca os elementos típicos do mundo emiliano estiveram a serviço de uma história que, por ser tão simples e universal, articula os procedimentos de construção da narrativa fílmica para condensá-los com simplicidade e sinceridade. Os créditos iniciais do filme são apresentados pelos gravados em linóleo de Leopoldo Méndez, repetindo o mesmo procedimento de RíoEscondido (1948). Tradicionalmente, a plasticidade das imagens de Figueroa é comparada à pintura, por seus contrastes e planos que tendem à imobilidade (o que provoca certas críticas, pois cinema é imagem em movimento). O cinema ‘emiliano’ possui diversos planos nos quais a fotografia beira um preciosismo pujante, através do qual o olhar do espectador é convidado a apreciá-los como uma atração em si, desvinculando-os da função narrativa. A abertura através das obras de Méndez nos indica a afinidade pictórica de Fernández-Figueroa, mas que, em Pueblerina, transcende o aspecto rebarbativo de uma estética barroca e exagerada. Se o melodrama é um gênero dramático-narrativo caracterizado pelo excesso e pela clara divisão entre o Bem e o Mal, Pueblerina é um melodrama que se define pela economia de gestos e de elementos. Eis o que o caracteriza como uma obra-prima.

A história é simples e, talvez, banal: Aurelio sai da prisão, após cumprir a pena por ter tentado matar Julio, que estuprou a sua amada Paloma. Ao voltar para o seu povoado natal, toma conhecimento dos ocorridos durante sua ausência: sua mãe morreu, por desgosto de ver o seu filho preso, e a sua amada Paloma vive retirada da comunidade, em uma choupana, com seu filho Felipe, fruto da violação. Aurelio não busca vingança, apenas reconstruir seu lar e trabalhar a sua terra. Porém, os irmãos González (Julio e Ramiro), os homens mais ricos do povoado, estão obcecados em expulsar Aurelio e impõe a todos o terror, caso suas ordens sejam descumpridas. Isolados de todos, Aurelio, Paloma e Felipe formam uma família ligada à terra, que dá os seus frutos. Contudo, os González não desistem de suas intenções contra Aurelio, culminando em um duelo a três sob um céu plúmbeo, carregado de nuvens.

O que salta aos olhos em Pueblerina é a tipificação dos personagens através de sua inserção na paisagem. Aurelio e Paloma marcam a pureza da família em seu trabalho na terra, evocando uma harmonia Homem-Natureza que é ameaçada pela comunidade dos homens. Trata-se de um casal cujo amor e força respondem ao sofrimento da solidão e da rejeição por parte da comunidade. São dois proscritos, que unidos tentam superar as adversidades impostas pela intriga e pela cobiça dos homens. O amor à terra une o casal rejeitado, caracterizado pela dedicação da mulher e a abnegação do homem. Aurelio condensa características já esboçadas em outros filmes de Fernández: o homem que tenta abandonar o seu passado de violência para se dedicar ao trabalho no campo, já que, como frisa García Riera, "el director no concibe labor más noble que la del campesino"1. Porém, o destino é maior, o que obriga o herói a retomar a força para garantir a sobrevivência de sua família.

Eis o nervo da narrativa: o amor à terra, quiçá o principal tema da obra de Fernández. Pueblerina é o auge desse culto emiliano, que é expresso do modo o mais simples, sem cair em ufanismos e diálogos pomposos, que é comum encontrarmos em seus filmes. Trata-se de um filme sobre a terra através de personagens ligados diretamente à terra, cujas vidas dependem dela. No caso, Fernández abre mão de discursos, mais preocupado em mostrar os seus personagens inseridos nessa terra. Por exemplo: logo após sair da prisão, na carroça que o conduz ao seu povoado, vemos um clássico "céu de Figueroa", um plano geral abarcando mais as nuvens do que os personagens. Depois, Aurelio mira de longe o seu povoado (contracampo em plano geral), e uma voz feminina (materna) over diz ao herói, que retorna ao lar, que esta é a sua terra. Mais adiante, quando são forçados a abandonar sua terra, Aurelio pensa (trata-se de um diálogo pensado, pois tanto Aurelio quanto Paloma não mexem a boca): "la tierra somos nosotros". E o duelo final, em plano geral, sob um céu (natureza) que espelha a tensão do conflito (homens). É relevante frisar que, em Pueblerina, diferente de outros filmes de Fernández, não encontramos personagens do "México culto", construtores da orgulhosa nação mexicana: professores, advogados, médicos, artistas, militares e intelectuais. É lícito afirmar que o mais datado nos filmes de Fernández é a retórica de seus diálogos, em geral, os proferidos pelos "cultos", com sua verve nacionalista e declamatória. Por sua vez, Pueblerina possui parcos diálogos: os personagens, simplesmente, agem e sofrem diante de nossos olhos, sem a necessidade de recorrer a diálogos edificantes e floreados. É um filme no qual o exibir vale mais que o narrar. Antes Stroheim do que Griffith.

Três cenas, tradicionalmente citadas pelos críticos e estudiosos de Fernández, exemplificam o "exibicionismo" no qual o lirismo do filme está assentado. A primeira é a da formação do casal. Paloma rejeita as investidas de Aurelio, pois se sente "manchada" e, por conseguinte, não digna de ser a sua esposa. No rio, ao lado de outras mulheres, Aurelio, isolado de todos, é obrigado a lavar a sua roupa sozinho. Na outra margem do rio, aparece Paloma (os dois se encontram em margens opostas, o casal ainda não está unido). Os dois trocam olhares e ela, por iniciativa própria, recolhe a roupa de Aurelio e vai embora. Nenhuma palavra é pronunciada, apenas um mero gesto, que transforma Paloma em mulher de Aurelio. Outra seqüência é a das bodas do casal. Após os preparativos da festa, ninguém aparece para comemorar com os recém-casados. O plano geral em plongé com as mesas enfeitadas e vazias, o conjunto de mariachis ao fundo e o casal prostrado são de uma tristeza solene. Se recusando a não aproveitar a festa, o casal dança "La paloma y el palomo", um son jarocho (ritmo oriundo de Veracruz, embora a história se passe no Vale do México). A dança ritualiza o cortejo do pombo à pomba, ou seja, uma dança mais do que propícia para uma festa nupcial. Porém, a melancolia perpassa todo o número musical, com os olhos tristes de Columba Domínguez, que, ao não suportar tanta tristeza, interrompe a dança bruscamente e cai, aos pés de seu parceiro, soluçando. Toda a cena é montada em planos gerais, sem primeiros planos para conduzir a atenção do espectador (nessa seqüência, é necessário frisar a importância do olhar fixo dos parceiros em qualquer dança "de corte", como o tango argentino ou a cueca chilena, por exemplo. No caso, os olhos fixos de Domínguez ao seu parceiro Cañedo intensificam a tristeza de sua expressão – sem recorrer ao primeiro plano! –, sendo um dos números musicais mais impressionantes no cinema). Para o desfecho dessa seqüência lúgubre, a bebedeira de Aurelio: ele deitado, se lamentando, e com Paloma encostada, dormindo aos pés da cama. Um único e longo plano médio, com a câmera flagrando, com distância e respeito, esse momento íntimo de dor.

Bazin, em seu artigo célebre intitulado "O western ou o cinema americano por excelência"2, afirma que, embora o western seja um gênero intimamente ligado à formação nacional dos Estados Unidos, a fabricação de seus mitos o transformou em algo universal (o que explica o seu sucesso em platéias as mais variadas). A estética e a ética do western são frutos da leitura de um processo histórico nacional como um discurso épico (o que torna possível Bazin aproximar o western do cinema soviético!). Em suma, a partir de elementos históricos e sociais singularmente específicos, criou-se uma épica que, como toda narrativa desse gênero, aponta para elementos universais da condição humana. A temática do amor à terra, que perpassa toda a obra de Emilio Índio Fernández, elevada a um grau de lirismo ímpar em Pueblerina, é a questão que resume a Revolução Mexicana. O vínculo do homem com a sua terra e a sua dedicação tanto a ela quanto à sua mulher (pois ambas engendram o futuro da nação) é o ideal emiliano para o povo mexicano. Porém, esse ideal deve ser conquistado, para começar, pela ruptura com o passado violento, para que tal harmonia possa ser instaurada. A criação do futuro PRI pelo general Cárdenas é a instauração de um vigilante (no caso, o Partido) dos ideais da Revolução que busca, após anos de um conflito fratricida, uma construção nacional, uma concórdia. O passado sangrento da Revolução deve ser sublimado em nome de um reino de justiça e de paz. Flor Silvestre (1943) resume essa proposta ao alinhar três gerações de mexicanos (o casal protagonista e sua antecedência e descendência) pelo viés da Revolução. Porém, o que esse filme possui de verborrágico e de solene (mas que não chega a prejudicá-lo) é simplificado ao máximo em Pueblerina. Uma história que, por sua simplicidade e pela contenção de gestos e palavras, condensa os elementos do mundo emiliano. Por outro lado, vemos que um filme excessivamente mexicano é, simultaneamente, tão universal! A relação do homem com a natureza, o conflito do homem com a sua violência inerente (e a sua redenção por intermédio de uma mulher), a dignidade e a honra feminina, os amantes renegados pela comunidade... Eis aspectos que transcendem fatores nacionais e históricos, nos interpelando a todos. É por isso que o espectador, emocionado, somente encontra uma palavra para se referir a esse filme, após ver a sensibilidade do cineasta através do vigor das imagens, o ritmo das seqüências, a delicadeza de seus personagens e os olhos tristes de Columba Domínguez...

Fabián Núñez

1. Emilio García Riera, Emilio Fernández (1904-1986). Guadalajara: Universidad de Guadalajara/Cineteca Nacional de México, 1987, p. 147

2. André Bazin, O cinema: ensaios. Trad. Eloisa Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 199-208.

 

 





Pueblerina (1949)