Emilio Índio Fernández
se encontrava no auge de sua carreira ao realizar Pueblerina.
Apesar de consagrado internacionalmente por seus melodramas,
que marcam a chamada era de ouro do cinema mexicano,
os seus filmes preocupavam os produtores pelo tempo
e dinheiro gastos em suas produções. Pueblerina
é uma mostra que Fernández fez, ao
lado de seus colaboradores tradicionais (Gabriel Figueroa
na fotografia e Mauricio Magdaleno no roteiro), do que
poderia realizar com um orçamento baixo. Sem
um elenco estelar, ao ser protagonizado por dois atores
até então de segundo escalão (Roberto
Cañedo e Columba Domínguez) e filmado
em apenas três semanas (Fernández demorava
cerca de cinco semanas, uma exceção na
indústria cinematográfica mexicana), Pueblerina
é considerado pela crítica e historiadores
do cinema mexicano o melhor filme de Fernández.
Sem sombra de dúvida, a única coisa que
o espectador tem a dizer, ao sair do cinema após
sua exibição, é: uma obra-prima!
Como analisar e compreender um filme tão marcante?
Nunca os elementos típicos do mundo emiliano
estiveram a serviço de uma história que,
por ser tão simples e universal, articula os
procedimentos de construção da narrativa
fílmica para condensá-los com simplicidade
e sinceridade. Os créditos iniciais do filme
são apresentados pelos gravados em linóleo
de Leopoldo Méndez, repetindo o mesmo procedimento
de RíoEscondido (1948). Tradicionalmente,
a plasticidade das imagens de Figueroa é comparada
à pintura, por seus contrastes e planos que tendem
à imobilidade (o que provoca certas críticas,
pois cinema é imagem em movimento). O
cinema ‘emiliano’ possui diversos planos nos quais a
fotografia beira um preciosismo pujante, através
do qual o olhar do espectador é convidado a apreciá-los
como uma atração em si, desvinculando-os
da função narrativa. A abertura através
das obras de Méndez nos indica a afinidade pictórica
de Fernández-Figueroa, mas que, em Pueblerina,
transcende o aspecto rebarbativo de uma estética
barroca e exagerada. Se o melodrama é um gênero
dramático-narrativo caracterizado pelo excesso
e pela clara divisão entre o Bem e o Mal, Pueblerina
é um melodrama que se define pela economia
de gestos e de elementos. Eis o que o caracteriza como
uma obra-prima.
A história é simples e, talvez, banal:
Aurelio sai da prisão, após cumprir a
pena por ter tentado matar Julio, que estuprou a sua
amada Paloma. Ao voltar para o seu povoado natal, toma
conhecimento dos ocorridos durante sua ausência:
sua mãe morreu, por desgosto de ver o seu filho
preso, e a sua amada Paloma vive retirada da comunidade,
em uma choupana, com seu filho Felipe, fruto da violação.
Aurelio não busca vingança, apenas reconstruir
seu lar e trabalhar a sua terra. Porém, os irmãos
González (Julio e Ramiro), os homens mais ricos
do povoado, estão obcecados em expulsar Aurelio
e impõe a todos o terror, caso suas ordens sejam
descumpridas. Isolados de todos, Aurelio, Paloma e Felipe
formam uma família ligada à terra, que
dá os seus frutos. Contudo, os González
não desistem de suas intenções
contra Aurelio, culminando em um duelo a três
sob um céu plúmbeo, carregado de nuvens.
O que salta aos olhos em Pueblerina é
a tipificação dos personagens através
de sua inserção na paisagem. Aurelio e
Paloma marcam a pureza da família em seu trabalho
na terra, evocando uma harmonia Homem-Natureza que é
ameaçada pela comunidade dos homens. Trata-se
de um casal cujo amor e força respondem ao sofrimento
da solidão e da rejeição por parte
da comunidade. São dois proscritos, que unidos
tentam superar as adversidades impostas pela intriga
e pela cobiça dos homens. O amor à terra
une o casal rejeitado, caracterizado pela dedicação
da mulher e a abnegação do homem. Aurelio
condensa características já esboçadas
em outros filmes de Fernández: o homem que tenta
abandonar o seu passado de violência para se dedicar
ao trabalho no campo, já que, como frisa García
Riera, "el director no concibe labor más noble
que la del campesino"1. Porém,
o destino é maior, o que obriga o herói
a retomar a força para garantir a sobrevivência
de sua família.
Eis o nervo da narrativa: o amor à terra, quiçá
o principal tema da obra de Fernández. Pueblerina
é o auge desse culto emiliano, que é
expresso do modo o mais simples, sem cair em ufanismos
e diálogos pomposos, que é comum encontrarmos
em seus filmes. Trata-se de um filme sobre a terra através
de personagens ligados diretamente à terra, cujas
vidas dependem dela. No caso, Fernández abre
mão de discursos, mais preocupado em mostrar
os seus personagens inseridos nessa terra. Por exemplo:
logo após sair da prisão, na carroça
que o conduz ao seu povoado, vemos um clássico
"céu de Figueroa", um plano geral abarcando mais
as nuvens do que os personagens. Depois, Aurelio mira
de longe o seu povoado (contracampo em plano geral),
e uma voz feminina (materna) over diz ao herói,
que retorna ao lar, que esta é a sua terra. Mais
adiante, quando são forçados a abandonar
sua terra, Aurelio pensa (trata-se de um diálogo
pensado, pois tanto Aurelio quanto Paloma não
mexem a boca): "la tierra somos nosotros". E o duelo
final, em plano geral, sob um céu (natureza)
que espelha a tensão do conflito (homens). É
relevante frisar que, em Pueblerina, diferente
de outros filmes de Fernández, não encontramos
personagens do "México culto", construtores da
orgulhosa nação mexicana: professores,
advogados, médicos, artistas, militares e intelectuais.
É lícito afirmar que o mais datado nos
filmes de Fernández é a retórica
de seus diálogos, em geral, os proferidos pelos
"cultos", com sua verve nacionalista e declamatória.
Por sua vez, Pueblerina possui parcos diálogos:
os personagens, simplesmente, agem e sofrem diante de
nossos olhos, sem a necessidade de recorrer a diálogos
edificantes e floreados. É um filme no qual o
exibir vale mais que o narrar. Antes Stroheim
do que Griffith.
Três cenas, tradicionalmente citadas pelos críticos
e estudiosos de Fernández, exemplificam o "exibicionismo"
no qual o lirismo do filme está assentado. A
primeira é a da formação do casal.
Paloma rejeita as investidas de Aurelio, pois se sente
"manchada" e, por conseguinte, não
digna de ser a sua esposa. No rio, ao lado de outras
mulheres, Aurelio, isolado de todos, é obrigado
a lavar a sua roupa sozinho. Na outra margem do rio,
aparece Paloma (os dois se encontram em margens opostas,
o casal ainda não está unido). Os dois
trocam olhares e ela, por iniciativa própria,
recolhe a roupa de Aurelio e vai embora. Nenhuma palavra
é pronunciada, apenas um mero gesto, que transforma
Paloma em mulher de Aurelio. Outra seqüência
é a das bodas do casal. Após os preparativos
da festa, ninguém aparece para comemorar com
os recém-casados. O plano geral em plongé
com as mesas enfeitadas e vazias, o conjunto de mariachis
ao fundo e o casal prostrado são de uma tristeza
solene. Se recusando a não aproveitar a festa,
o casal dança "La paloma y el palomo", um son
jarocho (ritmo oriundo de Veracruz, embora a história
se passe no Vale do México). A dança ritualiza
o cortejo do pombo à pomba, ou seja, uma dança
mais do que propícia para uma festa nupcial.
Porém, a melancolia perpassa todo o número
musical, com os olhos tristes de Columba Domínguez,
que, ao não suportar tanta tristeza, interrompe
a dança bruscamente e cai, aos pés de
seu parceiro, soluçando. Toda a cena é
montada em planos gerais, sem primeiros planos para
conduzir a atenção do espectador (nessa
seqüência, é necessário frisar
a importância do olhar fixo dos parceiros em qualquer
dança "de corte", como o tango argentino
ou a cueca chilena, por exemplo. No caso, os
olhos fixos de Domínguez ao seu parceiro Cañedo
intensificam a tristeza de sua expressão – sem
recorrer ao primeiro plano! –, sendo um dos números
musicais mais impressionantes no cinema). Para o desfecho
dessa seqüência lúgubre, a bebedeira
de Aurelio: ele deitado, se lamentando, e com Paloma
encostada, dormindo aos pés da cama. Um único
e longo plano médio, com a câmera flagrando,
com distância e respeito, esse momento íntimo
de dor.
Bazin, em seu artigo célebre intitulado "O western
ou o cinema americano por excelência"2,
afirma que, embora o western seja um gênero
intimamente ligado à formação nacional
dos Estados Unidos, a fabricação de seus
mitos o transformou em algo universal (o que explica
o seu sucesso em platéias as mais variadas).
A estética e a ética do western são
frutos da leitura de um processo histórico nacional
como um discurso épico (o que torna possível
Bazin aproximar o western do cinema soviético!).
Em suma, a partir de elementos históricos e sociais
singularmente específicos, criou-se uma épica
que, como toda narrativa desse gênero, aponta
para elementos universais da condição
humana. A temática do amor à terra, que
perpassa toda a obra de Emilio Índio Fernández,
elevada a um grau de lirismo ímpar em Pueblerina,
é a questão que resume a Revolução
Mexicana. O vínculo do homem com a sua terra
e a sua dedicação tanto a ela quanto à
sua mulher (pois ambas engendram o futuro da nação)
é o ideal emiliano para o povo mexicano. Porém,
esse ideal deve ser conquistado, para começar,
pela ruptura com o passado violento, para que tal harmonia
possa ser instaurada. A criação do futuro
PRI pelo general Cárdenas é a instauração
de um vigilante (no caso, o Partido) dos ideais da Revolução
que busca, após anos de um conflito fratricida,
uma construção nacional, uma concórdia.
O passado sangrento da Revolução deve
ser sublimado em nome de um reino de justiça
e de paz. Flor Silvestre (1943) resume essa proposta
ao alinhar três gerações de mexicanos
(o casal protagonista e sua antecedência e descendência)
pelo viés da Revolução. Porém,
o que esse filme possui de verborrágico e de
solene (mas que não chega a prejudicá-lo)
é simplificado ao máximo em Pueblerina.
Uma história que, por sua simplicidade e pela
contenção de gestos e palavras, condensa
os elementos do mundo emiliano. Por outro lado, vemos
que um filme excessivamente mexicano é, simultaneamente,
tão universal! A relação do homem
com a natureza, o conflito do homem com a sua violência
inerente (e a sua redenção por intermédio
de uma mulher), a dignidade e a honra feminina, os amantes
renegados pela comunidade... Eis aspectos que transcendem
fatores nacionais e históricos, nos interpelando
a todos. É por isso que o espectador, emocionado,
somente encontra uma palavra para se referir a esse
filme, após ver a sensibilidade do cineasta através
do vigor das imagens, o ritmo das seqüências,
a delicadeza de seus personagens e os olhos tristes
de Columba Domínguez...
Fabián Núñez
1. Emilio García
Riera, Emilio Fernández (1904-1986). Guadalajara:
Universidad de Guadalajara/Cineteca Nacional de México,
1987, p. 147
2. André Bazin, O cinema:
ensaios. Trad. Eloisa Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 1991, pp. 199-208.
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